É a primeira vez que vejo uma posse em Brasília. Estou há 15 anos vivendo na capital, vindo de Minas, e me considero candango. Talvez um neocandango.
Reflexões à parte sobre o neologismo posto, talvez alguns não me considerem um candango (cheguei tarde para usufruir da definição tradicional do termo, e com função meramente acadêmica - não vim construir Brasília em sua materialidade). Também não posso me dizer pioneiro (título restrito à aristocracia convidada/incentivada à vir a Brasília), cheguei tarde e sem posses ou cargos.
Mas assim como os trabalhadores que aqui chegaram ao final dos anos 1950 e início dos 1960, vim para construir Brasília, ou reconstruí-la. Não do zero ou a partir de um gesto “primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. Cheguei no planalto para me fazer, para pensar e para continuar o “fazimento” da cidade-capital do Brasil, (usando uma conjugação cara à Darcy Ribeiro).
Por mais crítico que eu seja em relação ao urbanismo moderno, presente em Brasília, me emocionei ao ver esta cidade-capital cumprindo uma de suas mais importantes funções: a de ser suporte para os mais importantes acontecimentos do Estado brasileiro.
Até então nunca havia assistido a uma posse presidencial. Deixo isso bem claro. Me mudei para a capital sob o governo Lula. Votei Dilma em segundos turnos, mas a realidade nunca me permitiu ver qualquer posse presidencial. Temer não tomou posse, usurpou a faixa e seu lugar no Planalto.
De Bolsonaro sempre quis distância e sua posse foi um dia triste em que eu queria me ver longe da Esplanada, mesmo vivendo no Plano Piloto, Asa Norte - colado aos Ministérios.
Diferente das anteriores, a posse de Lula foi um acontecimento que não só eu queria ter conhecimento, como desejava estar presente e participar. Quando estudamos história e analisamos conjuntura, sabemos bem quando um fato histórico vai acontecer. É questão de entendimento do presente de quem consegue mirar o futuro (estudamos história!).
Pois, em 01 de janeiro de 2023, estava eu e queridas amigas/os na Esplanada – esse grande vazio cercado de poder por todos os lados.
Não vou falar da emoção de ver um presidente sensível subindo as rampas planejadas e caminhando nos grandes espaços dessa cidade única. Me atenho não à pessoa, à figura, mas ao seu fundo.
Penso que Lucio Costa e Oscar Niemeyer ficariam satisfeitos ao ver sua obra servindo de suporte a um momento único da democracia.
Imagino que pensaram Brasília para esse momento. Lembro de Vladmir Saflate falando da potência de uma ideia quando encontra seu tempo. De uma cidade quando encontra seu tempo. Ali, no meio da multidão, sob o sol do cerrado, sem água e com comida fácil para se adquirida – precisaríamos de horas em filas – Brasília – uma ideia construída – encontrou seu tempo.
Um momento potente. Chorei. Choramos.
O povo subiu a rampa para entregar uma faixa presidencial. O povo brasileiro ocupou seu lugar no tempo, na história e seu lugar.
O povo.
O palácio (moderno, tropical, nunca visto).
O tempo.
A história.
O urbanismo e a arquitetura de Brasília como fundo. Como suporte. Como expressão de um povo que tem altives. Um povo criativo, elegante, culto, fazedor.
A decolonização se fez presente, visível. Uma cidade como suporte para relações e representações. Patrimônio intangível absolutamente material.
(Re)Vejo nosso presidente caminhando pelos grandes pavimentos de mármore. O desenho modernista dos espelhos d’água. Colunas de palácios como nunca se viu (desde Grécia). O grito de um indígena, que se banha nas cascatas do Palácio da Justiça, rompe o espaço e nos mostra que somos muito mais. Não apenas admiramos prédios e suas. Vivemos prédios e colunas e gentes. Sob o sol escaldante e belo.
Após ouvir parte do melhor da produção musical brasileira, em palco que nunca se viu tão bonito e importante em Brasília, caminhamos no gramado milimetricamente planejado.
A luz e o céu de Brasília nos arrebata. A catedral está logo ali, com fundo rosa. O teatro, vazio, abandonado, mantem sua importância e dignidade apesar dos pesares.
Sentamos na sarjeta no início da asa norte esperando um uber.
Uma companheira chega, desde Niterói, e comenta sob seu espanto, cansaço e alegria.
Um Brasil novo começa a ser erguido sentado naquele meio-fio da L2 norte. Um Brasil cansado mas cheio de esperança. Um Brasil do futuro que se reencontra e começa a ser forjado. Zweig gostaria de estar conosco ali, não tenho dúvidas.
Ao som de Baiana System, sentimos que uma ideia de fato encontrou seu tempo. Brasília cumpriu parte de seu papel. O sonho do patriarca, ou talvez e principalmente o sonho da resistência ao patriarca, de certa forma se forjou.
(Foda-se o patriarca.)
Naquele dia p Brasil se fez (ou se mostrou) gigante e diverso. E subiu a rampa.
Três estrelas brilhavam no planalto central do brasil. As três marias que guiam caminhantes desde tempos imemoriais.
Desde a imensidão do planalto, penso que podemos ser um povo feliz de novo.
O sol nasce iniciando nova Alvorada.
Horas depois, rampas, colunas e palácios testemunham tico-ticos violentos que protegem ferozmente seus territórios. Seus, por direito. Acho que algo querem nos dizer sobre geografia.
Sob a sombra de um pequizeiro pensamos tudo o que poderíamos ter sido e o que somos.
Lançamos sementes às chamas para que germinem. Não esqueçamos que Brasil vem de brasa.
sobre o autor
Luiz Eduardo Sarmento é arquiteto e urbanista, diretor cultural do IAB, conselheiro superior do IAB pelo DF, mestrando em arquitetura e urbanismo pela UnB.