Beatriz de Abreu e Lima: E sobre a concepção de diagramas no discurso arquitetônico atual?
Patrik Schumacher: Existe uma concepção comum e não-problemática do diagrama como uma descrição abstrata em que o diagrama figura mais como escrita do que desenho. Pode-se, por exemplo, diagramar apenas as relações das adjacências de um prédio; podendo isto ser feito apenas com sólidos simples como cubos. Não há necessidade de escala ou qualquer similitude formal com os elementos cujas relações adjacentes serão representadas. Isto se chama abstração, e é uma técnica bem poderosa porque se pode investigar um aspecto isoladamente enquanto ignoramos todos os outros aspectos. Um desenho, por exemplo, já fornece por si só muito mais informação: não trata somente das adjacências, mas também da geometria e proporções dos espaços e as medidas do prédio. Então, o desenho, comparado ao diagrama, se apresenta muito mais como uma simulação multidimensional. O uso de diagramas ajuda a especular sobre aspectos isolados muito rapidamente, não é preciso desenhar e se perder em considerações. (…) E este nível de abstração ajuda a manipular, sem maiores preconceitos, por exemplo, o tema adjacência, tornando possível sua transformação em qualquer outra coisa no futuro. É um processo mais aberto, mas ainda assim o diagrama estabelece claramente o que significa e o que não significa; a sua função, no caso da investigação das adjacências, por exemplo, é claríssima. Os modernistas introduziram esta concepção comum do diagrama que eu acabo de descrever. Gropius investigou em corte a penetração de luz e outros fizeram uso de diagramas com figuras geométricas, que não eram ainda plantas baixas etc. Recentemente surgiu outra interpretação do diagrama...
BAL: Qual a diferença entre este “diagrama comum” e o diagrama contemporâneo?
PS: Cada vez mais nós temos procurado abstrair aspectos utilizando diagramas distintos, mas isto é trivial. Além disso existe ainda o processo diagramático. Falo de um processo diagramático, em vez de apenas do diagrama, porque é essencial pensar num processo, ou até mesmo numa prática; e não em um objeto. E isto diz respeito ao tipo de diagrama que nós chamamos “Deleuziano”. A maneira como Deleuze usa a palavra “diagrama” é apenas vagamente relacionada com o “diagrama comum”, e não deve ser confundida com ele. O diagrama “Deleuziano” é algo que pode parecer com um diagrama comum ou mesmo com um desenho ou maquete, mas não é usado da mesma forma. A diferença entre o diagrama “Deleuziano” e o “comum” só pode ser identificada se observamos o padrão geral das práticas de projetar que determinam o significado pragmático específico de qualquer elemento do projeto. Qualquer diagrama ou desenho é (…) um tipo de aparato formal que requer uma interpretação ativa para que seja útil. A diferença entre o diagrama “Deleuziano” e, digamos, um desenho normal ou um “diagrama comum” é que estes dois últimos representam algo determinado muito precisamente. A interpretação é trivial, uma rotina comum, não problemática e imediata. Duas linhas num desenho em escala 1:50 representam a espessura de uma parede, certo? A interrupção dessas duas linhas representa uma porta nesta parede. Você pode nomear o desenho e sabe o que fazer com ele, talvez se torne uma instrução para um empreiteiro, para que possa medir a parede e construí-la. O diagrama “Deleuziano” pode também ser constituído por linhas, que por sua vez podem sofrer transformações de significado. Por exemplo, Eisenman estica, dobra, e realiza inúmeras operações com um desenho, mas não existe um propósito ou significado claro. Ainda não se pode dizer se as linhas representarão paredes ou dobras, limites entre diferentes materiais de construção ou eixos de visão. Ainda não há um significado claro, somente a pura manipulação de algo que poderá ser interpretado em um estágio posterior. O diagrama é aberto em termos do que ele pode vir a significar e guarda significados latentes porque é similar a certos desenhos conhecidos e poderíamos voltar (1) e começar a ler os elementos de uma forma coerente; mas não há garantias de que isso seja possível. As linhas foram manipuladas, deslocadas, transformadas, sem controle consciente. A sua regularidade e coerência ainda estão por serem descobertas e exploradas para que sejam traduzidas em algo útil e significativo. E se isto acontecer terão sido produzidos significados dos quais nunca se ouviu falar.
BAL: Existe uma preocupação atual com a possibilidade da aplicação literal de concepções originadas por diagramas...
PS: Sim, sim. Em termos de diagramas com formas geométricas... por exemplo, se alguns círculos forem usados para esclarecer as adjacências de um projeto – o que tem que estar lado a lado, o que tem que estar apenas relacionado – desenha-se uma linha entre os círculos, que mais tarde poderá vir a ser uma porta, ou mais tarde ainda, os círculos poderão não estar mais lado a lado, mas um sobre o outro. E sabe-se, antecipadamente, que será necessário encontrar uma solução arquitetônica para isso porque o diagrama é feito em um só plano e você poderá, por exemplo, fazer uma interligação através de uma escada para um outro plano. Então, não se tratava de uma representação literal. Ninguém espera que você construa círculos unidos por linhas e diga que isto é um hospital, certo? Você não poderia usá-lo como se fosse um desenho em escala. É óbvio que não tem este sentido literal. No entanto, o diagrama está, de maneira indeterminada, determinando o prédio. De um modo ou de outro você obedece ao diagrama, e interliga os dois espaços representados pelos dois círculos. No caso do diagrama “Deleuziano” é bem diferente, não existe uma tradução literal nem uma tradução não-literal, não existe tradução alguma, ainda. Você sabe como traduzir um diagrama com figuras geométricas, mas um diagrama “Deleuziano”, qualquer coisa que você faça com ele, pode ser chamada de tradução. Ele é só um agente provocador, somente sugestivo, um mecanismo criativo, um recurso de brainstorm (2). Você tem total liberdade de fazer o que quiser com ele, desde que o que você obtenha, admita uma justificativa. Mais tarde você pode, retrospectivamente, atribuir significado ao diagrama e falar dessa descoberta como sendo uma tradução. Não existe verdade nem literal nem não-literal neste tipo de tradução do diagrama. Outra condição para se obter uma tradução retrospectiva é poder reconstruir o caminho acidental de descoberta como algo que seguiu regras de procedimento. Isto é possível mesmo quando você não sabia que estava seguindo alguma regra. Retrospectivamente você pode fundamentar aquilo que produziu e abstrair aspectos que permitam a repetição do mesmo tipo de processo. Tudo o que leva a resultados úteis deve ser aplaudido, e se for baseado numa tradução literal feita a partir de um desenho intuitivo, então tudo bem. O que quer que o diagrama sugira, faça, não rejeite esta maneira de fazer por ser "literal demais", quero dizer, que tipo de critério é este? Se a tradução literal permite que você crie um espaço com significado, quem poderia ser contra e dizer: "o que você faz é uma tradução literal”. E daí? Tanto melhor e mais elegante assim. O diagrama “Deleuziano” não é nada mais que um desenho que ainda não tem sentido, como um rabisco, um provocador. Você provoca a si mesmo enquanto rabisca, e o diagrama é somente algo externo a você para provocar a sua imaginação. Isto é uma ferramenta legítima agora mas teria sido descartada 20 anos atrás. Iriam te perguntar: "O que quer dizer isto?" e você não poderia responder "Espere aí, deixe-me responder em uma semana"."Espere, você está perdendo seu tempo e não sabe o que está fazendo". Hoje há mais espaço para deixar que a ordem se cristalize a partir do caos.
BAL: E esta mudança de atitude está relacionada com uma mudança de paradigma, de algo que é racional para algo não-linear?
PS: Está relacionado com o fato de que o mundo não é mais tão previsível e que se modifica tão rapidamente que as soluções não são mais conhecidas com antecedência. Você precisa gastar mais tempo e recursos com pesquisas, com a sua própria adaptação, com experimentações livres, apenas para poder ter mais opções para observar, explorar e selecionar. Realmente precisamos disso agora, enquanto que antes isto era visto como uma perda de tempo, porque já conhecíamos a solução para todos os nossos problemas rotineiros, tudo era baseado em rotinas estáveis. Não havia desafios para que fossem apresentadas coisas totalmente diferentes. Agora existe a idéia de que algo totalmente diferente pode ser na verdade mais funcional porque não podemos confiar nos limites das soluções conhecidas. É hora de inovações radicais, as pessoas estão preparadas para experimentar e descobrir que coisas novas e nunca vistas podem funcionar. Por exemplo, pode-se dizer que Zaha propôs formas arquitetônicas “estranhas” e nunca vistas, distorções isométricas ou elementos espalhados pelo espaço etc. E, apesar de ter trabalhado com elementos formais tão estranhos, ela foi capaz de empregá-los de maneira sistemática, construindo uma linguagem arquitetônica nova e consistente, que poderia ser usada para articular complexas relações institucionais e contextuais. A arquitetura foi enriquecida. Você pode observar que em certos prédios, os ângulos e espaços distorcidos são ferramentas para adequá-los às limitações, tornando os espaços e as limitações legíveis. Então, podemos racionalizar e finalmente entender certas decisões que inicialmente pareciam irracionais. É necessária uma irracionalidade temporária para se encontrar algo que funcionará melhor do que aquilo que teríamos obtido se tivéssemos sido puramente racionais desde o início. Iniciar uma sessão de brainstorm é uma decisão racional, mas tudo que se segue tem a ver com “ser irracional”, é essencialmente um movimento negativo, um cancelamento de todas as boas razões para dar espaço ao que ainda não é reconhecido como razoável.
BAL: No dia-a-dia do escritório ou no Laboratório de Pesquisa em Projetos (DRL: Design Research Laboratory), o senhor aceita bem quando, por exemplo, alguém está projetando a partir de algo aparentemente irracional?
PS: Sim, eu sempre tenho que me lembrar "espere, deixe acontecer, espere, você não precisa saber tão rapidamente o que quer". Tenho sempre que me lembrar e não ser impaciente.
notas
1
Patrik refere-se, com esta operação de “voltar”, a uma análise retrospectiva da criação da forma, para entender como esta foi gerada.
2
Recurso ou técnica de criação e discussão em que as idéias e possibilidades devem fluir livremente durante o processo de análise e solução de uma questão. A princípio, nenhuma idéia é rejeitada, não importando quão irrelevante pareça.