Eduardo Augusto Costa: Quando vocês iam fotografar ou mesmo quando fizeram esta viagem para Minas Gerais, havia um diálogo de como deveria ser uma foto para o patrimônio? Ou isso era uma atividade mais livre?
Júlio Abe Wakahara: Eu já dava aula no cursinho. E a aula era de composição, desenho ao ar livre. De composição, eu entendia muito. Eu tenho umas fotos, da década de 1970, no livro do Décio Tozzi (20). Ele considera que aquelas fotos foram as melhores já tiradas da obra dele. Fotos minhas. E tem muitas outras coisas assim, que fiz na década de 1970. Eu também sou bom em fotografia. Eu sou bom, justamente na composição. Disso, eu entendia. Por isso, o Saia deixava por minha conta. Ele nunca deu palpite. Documentação, eu entendo um pouco. A fotografia você pode dividir em duas categorias. Ou de uma forma puramente formal, artística ou uma foto de documentação.
EAC: E o que diferencia elas?
JAW: Ai é que está o negócio! Fomos, no ano passado, fazer fotos de São Luiz do Paraitinga, durante a Festa do Divino. O fotografo era de moda, um profissional muito bom. Falei para ele que precisávamos de fotos de documentação. Se quiser fotos artísticas, pode até fazer, mas é a parte. Eu fiz, em 1973, um filme em Itu sobre Samba de Roda. Uma antropóloga viu o filme este ano e falou: “Mas que filme bom! Isso é antropologia visual. Todos os detalhes que um antropólogo tem que ver estão no filme. Está tudo lá!”. Eu era bom! [risos]. Em determinados trabalhos, o que deve ser feito é documentação. No Iphan, eu fiz as fotografias tendo um objetivo. Isso aqui (mostra um objeto), eu posso fotografar de diversas maneiras. Posso pegar isso, isso, isso e dizer que é isso. Agora, se quiser fotografar bem, tenho que fazer assim, assim e assim (mostra as vistas do objeto), no mínimo. No mínimo, três fotos ou quatro. Tem formas de documentar. Por isso, eu disse aquilo para aquele fotógrafo em Paraitinga. Ele entendeu. Eu pedia para ele fazer detalhes daquilo e ele dizia: “Já fiz!”. Depois, ele apresentou as fotos e estava tudo perfeito. No meio delas, tinham também outras bonitas. Então, o que quer dizer foto documental: Se você for fotografar um andor, ele tem uma pessoa carregando aqui, um elemento aqui... Então, você tem a visão do andor inteiro. Isso é um andor. Você faz essa descrição. Agora, eu posso fazer uma foto com a objetiva próxima no rosto do santo e só ver as fitas, etc... E intitular ‘Andor de São Benedito’. [risos]. Esta vai para um livro. Aquela outra não vai para o livro, mas eu preciso dela para a documentação de patrimônio, de antropologia. Fotografia documental é isso. Se você quiser uma foto do Cristiano Mascaro (21) de São Paulo, ótimo! Mas, se você pegar todas as fotos do Cristiano e pedir um detalhe do Edifício Martinelli, ele não tem! Você tem a sombra do Martinelli. São pontos de vista, formas de fotografar.
EAC: Então, esta fotografia do Cristiano Mascaro não é uma fotografia que informa um estudioso do patrimônio?
JAW: Não. E outra coisa: O primeiro trabalho que nós fizemos com o Zetas, no início de 1970, foi um concurso para fotografar o Museu de Arte Sacra. Os melhores fotógrafos de São Paulo participaram. Deram um cálice de prata do Anchieta para fotografar. Todo amassado. Você jogava uma lâmpada sobre a superfície e dava reflexo para todo lugar. Eu e o Zetas fomos lá. E a alternativa que ele encontrou para lidar com o reflexo, ao invés de diminuir os reflexos, foi colocar cem por cento de reflexo no objeto. Fizemos uma caixa de papelão e iluminamos o objeto para dar bastante reflexo. Conseguimos a foto do cálice com todos amassados e com o nome do Anchieta visível. Ganhamos o concurso para fazer 1300 fotos do Museu de Arte Sacra. Isso é qualidade técnica.
EAC: Isso para mim é bastante importante. Você disse que tem um conhecimento de composição, que vem da sua formação de arquiteto...
JAW: Sim! Para mim interessa, principalmente, a informação. Qual informação que estou querendo (transmitir com a fotografia)? Por isso que, depois, eu passei para o Museu de Rua (22). Ali, usamos a foto como informação e não como fotografia artística. Para mim, interessa a história. E a minha briga com o pessoal da Prefeitura era isso. Eu conto uma história com o documento.
EAC: Isto de constituir um documento rico para o patrimônio, você acha que vem mais da sua formação ou também desta experiência de olhar esta documentação do Iphan? De que forma isso se constitui?
JAW: Isso é das minhas aulas, meus trabalhos de museu. Principalmente dos meus trabalhos de museu, porque eu procuro o significado. Quando se procura significado, entra-se na teoria da informação. Eu comecei a estudar teoria da comunicação antes de existir o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]. O pessoal da FAU já estudava um pouco, mas eu procurei bibliografia. Até [Jean] Piaget eu procurei nesta época. E eu peguei toda parte da semiótica da FAU. Depois, descobri que a semiótica é uma linha paralela à semiologia. Eu tinha essa compreensão e a coisa que eu mais detestava, quando era professor de cursinho, quando também era artista, era raiva da palavra significado. Porque você desenhava e eles perguntavam: “O que significa isso”? Como era modernismo, eu ficava bravo. Não era significado. “Olha”, eu dizia. “Olha e inventa uma história”. Até hoje, nós falamos isso. Cada um percebe aquilo de acordo com sua experiência. Pouco a pouco fui absorvendo a questão do significado. Hoje, sou um grande especialista em significados, tanto de palavra, como de objeto. A palavra significado, eu sei o que significa. Aliás, eu comecei a aprender todas as teorias da comunicação usando a palavra. Porque uma coisa é dizer que significa isso ou aquilo. A outra coisa é você usar. Você usa a palavra e você percebe do que se trata. Outra coisa: O Zen Budismo, o que ele nos ensina? Você tem que ver a realidade sem intermediação. Se conseguir ver sem intermediação, você consegue ver a essência. Se você tem uma árvore que é assim e você tem a palavra árvore e você, você pode ver a árvore sem ter ouvido a palavra árvore. E você pode imaginar a árvore ouvindo a palavra. Outra coisa é você ver a árvore sem intermediação. Faz uma grande diferença. Mas certas coisas você precisa da palavra para chegar naquilo que é imaterial, por exemplo. Então, você tem que ter uma palavra de mediação. É ela que é a ponte para o significado. Aprendi o que significa o significado. O Zen fala isso ha dois mil anos. O Hegel fala isso ha duzentos anos (risos!). Isso é meditação budista. Ver as coisas sem mediação. Trata-se do preconceito. Você não está vendo o conceito, mas o preconceito. Em geral, o preconceito deforma a coisa. É um ruído.
notas
20
José Roberto Hofling, arquiteto paulista formado pela Faculdade de Arquitetura Mackenzie.
21
Cristiano Mascaro, fotógrafo formado em arquitetura pela FAU USP.
22
Idealizado pela Júlio Abe Wakahara, o Museu de Rua foi uma iniciativa da Prefeitura Municipal de São Paulo, que teve início em 1978. Através do método comparativo, este projeto instalava estruturas flexíveis e itinerantes, apresentando reproduções de fotografias antigas da cidade, situadas em ângulos semelhantes no espaço público.