Helio Herbst: Em vários depoimentos, Ciccillo Matarazzo afirma que sofreu pressões de toda ordem, do chefe de obras da prefeitura, imprensa, de grupos de artistas, etc... O senhor acompanhou este processo?
Guimar Morelo: Bom, o Ciccillo Matarazzo sempre sofreu pressão. O Chateaubriand, o que ele podia fazer para impedir que o Ciccillo tivesse êxito numa exposição, qualquer coisa que projetasse o Ciccillo, fazia...
HH: O senhor acha que ele estava interessado em mostrar o que era feito, sem estar preocupado em construir um Museu tradicional? Ele não queria uma instituição mais dinâmica, por assim dizer?
GM: Eu não sei o que se passava na cabeça de Ciccillo, mas ele queria criar polêmica com as premiações. A Bienal até hoje é polêmica. O Ciccillo e a Yolanda doaram o acervo particular para criar o Museu de Arte Contemporânea. A obra dele era a Bienal. Quando um arquiteto é contratado, agora foi contratado o Paulo Mendes da Rocha, que nunca fez uma Bienal. Ele está apavorado, veio falar comigo e eu disse: é só não inventar e não querer ser o grande artista da Bienal que você faz tranquilamente. Nesses anos alguns arquitetos quiseram ser maiores, você deve ter visto na última Bienal, o arquiteto quis ser o maior artista e inventou essa cor verde, coisa que na Bienal pelo que eu aprendi não se deve usar. O Alexandre Wollner também fez isso numa ocasião. Ele não é arquiteto. É programador visual e usou cores. O último [arquiteto] que fez [a Bienal] quis ser o grande artista e pintou o elevador de azul e a entrada de roxo. Isso prejudica a montagem das obras de arte, [pois] pelo que eu aprendi devemos usar cores neutras, para não interferir de forma nenhuma na obra.
HH: Isso foi feito desde a primeira Bienal?
GM: Sim, era preto, branco e cinza. O chão na I Bienal era cimento, na cor natural, e agora a Bienal está voltando a essa cor natural. Você não leu o livro sobre o Ciccillo?
HH: Eu li O franciscano Ciccillo, de Fernando de Almeida...
GM: Exatamente, você tem o livro?
HH: Não. Eu tenho uma cópia...
GM: Eu vou te dar o livro, eu tenho aqui.
HH: Obrigado! Mas ainda sobre a primeira Bienal, Ciccillo afirma que teve muita coragem para "demolir o Trianon e lá construir um barracão" (8). O senhor concorda com esta afirmação?
GM: Demoliram o Trianon deve ser modo de dizer, porque não demoliram.
HH: De acordo com Lourival Gomes Machado, no catálogo da primeira Bienal, “Não há experiência sem percalços". O senhor se recorda de algum em especial?
GM: Lourival Gomes Machado foi o diretor da I Bienal. Na segunda ele não estava porque teve um atrito com a Yolanda Penteado. Isso é intriga de bastidores, mas eu sei porque gostava muito dele, eu era moleque na época, [tinha] dezesseis ou dezessete anos, estava no ginásio. Ele, como diretor, me acompanhava, era professor de Sociologia na USP. Todo fim de mês me dizia: quero ver sua carteira [escolar], quero ver suas notas. Isso marcou muito minha vida. Ele tinha interesse que eu chegasse a ser alguma coisa. Krajcberg como artista é o meu ídolo, o Lourival é como intelectual, um pai, o pai da Bienal.
HH: Ainda no catálogo, o então diretor artístico afirma: “que não se perca a experiência e, de futuro, melhor ainda se agasalhem as exposições internacionais de arte em São Paulo” (9). O senhor acredita que a construção do Pavilhão do Trianon serviu como exemplo para outras mostras de arte, inclusive na passagem para o Ibirapuera?
GM: O Pavilhão do Trianon? Ele foi um marco. A Bienal foi um marco na história da arte no Brasil. Em todos os sentidos: até então não existiam galerias, depois teve um boom de galerias. Eu tive uma galeria de arte (10). No centro de São Paulo tinha um sindicato dos donos de galeria. Eu acho que a Bienal foi um marco, tem que se ver [o panorama artístico] antes da Bienal e depois da Bienal. O Aldemir Martins era um ilustre desconhecido, tanto que era operário na primeira Bienal. Depois foi premiado em Veneza e na própria Bienal [de São Paulo]. O Manabu Mabe estaria pintando gravatas até hoje se não fosse a Bienal. A partir da primeira Bienal o Brasil, pelo menos em termos de arte e arquitetura, deixou de ser terceiro mundo.
HH: Na época em que foi feita a Bienal, a arquitetura brasileira já era conhecida internacionalmente. Eu tenho curiosidade para saber mais uma coisa: o senhor acredita que o Pavilhão do Trianon serviu como porta-voz das ideias da arquitetura e da arte do Brasil?
GM: Não, eu acho que o barracão serviu apenas para abrigar as obras. Eu não me recordo de alguém ter comentado que a partir da primeira Bienal a arquitetura [brasileira] tenha mudado. Muito mais importante foi a Bienal de Arquitetura [?] feita alguns anos depois.
HH: Mas houve uma mostra de arquitetura na primeira Bienal.
GM: Sim, mas foi pequena. Depois teve uma Bienal de Arquitetura. Eu acho que essa Bienal [?] projetou mais a arquitetura brasileira do que a mostra da primeira Bienal, que ocupava um espaço muito pequeno, com algumas maquetes. O importante é que até então só era conhecido o Oscar Niemeyer e o que ele havia feito aqui e em Israel, as universidades. Por falar em arquitetos, o Oscar Niemeyer vai fazer uma grande exposição na Argentina e depois esta exposição vai para a Bienal de Veneza (11).
HH: Muito obrigado pela entrevista.
GM: Eu vou te dar o livro sobre o Ciccillo.
HH: Muito obrigado!
notas
8
Ciccillo concedeu em 1977 depoimento à Rádio e Televisão Cultura, que se encontra disponível em áudio no Museu da Imagem do Som, em São Paulo.
9
MAM-SP. I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo. São Paulo, 1951, p. 16-17.
10
Guimar Morelo foi proprietário da Galeria Guimar, na rua Haddock Lobo. Ver: MESQUITA, Ivo. Guimar Morelo. In: Catálogo da 28ª Bienal de São Paulo. São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 2008, p. 18.
11
Oscar Niemeyer recebeu o Leão de Ouro na VI Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, realizada em 1996. Ver: Oscar Niemeyer / vida. Fundação Oscar Niemeyer <https://bit.ly/3r4BqSJ>.