Nuno Tavares da Costa: É a história relacionada com a pergunta que Edmund Wilson sempre faz quando um trabalho lhe interessa: “Porque é que você fez isso?”
Paulo Mendes da Rocha: É essa história que eu ia-te contar! Pois é, isso me persegue sempre que surge esse tipo de questão. Então, teria que se perguntar não da arquitetura brasileira, da arquitetura portuguesa, mas porque diabo fizeram aquilo lá, no Brasil? Porque o território é novo, e não vamos repetir! Portanto, do ponto de vista de uma crítica construtiva aqui, para a Europa, levanta-se a questão de o que é que se chama de tradição, e porque é que se repete tanto isso que, formalmente, se chama de cultura? Mas, a cultura não é feita para repetir. A cultura é feita para usar a experiência e enfrentar o novo enquanto desejável novo. Portanto, toda a arquitetura devia ser brasileira, digamos assim. Toda a arquitetura devia ser americana. A partir de quinhentos anos atrás, como um ápice do sistema de navegações, da descoberta da condição do planeta. Quinhentos anos não é nada. Desde aí surge uma outra arquitetura.
Você imagina se a aventura de Veneza pudesse ser, por hipótese (como se faz na ciência), enfrentada hoje. Hoje, você querer fazer (porque não existia) um porto lá dentro da Europa, para que a mercadoria chegasse lá, fosse lá e encontrasse a coisa como foi encontrada no século 7 (Torcello (1), as primeiras coisas de Veneza), o que você faria? Um porto, porque é isso que você quer com os navios. Ainda não há um outro recurso. Avião de carga existe, mas não se compara com 400 mil toneladas que um navio sustenta. Então, teria que ser para navios, um mercado etc. Não se ia fazer a mesma coisa. E não seria uma arquitetura brasileira, também, justa. Portanto, o problema da arquitetura não é um problema da forma, mas é um problema da qualidade com que se enfrenta a construção para realizar atuais desejos e necessidades humanos.
NTC: Manfredo Tafuri, nos anos 1980, referiu que a arquitetura europeia ainda não saiu da produção do edifício icónico. Porventura, até o Museu dos Coches pretendeu ser, enquanto objeto de encomenda, um edifício marcante. Porque os edifícios culturais são, hoje em dia, também eles, uma forma de mostrar o poder governamental das cidades, não concorda?
PMR: O poder não concordo muito, com a palavra. Mas, a ideia de êxito enquanto realização de desejos eu acho interessante. Cada vez mais, para nós, a ideia de poder não tem muito sentido. É uma coisa que ficou de outros tempos. Ao contrário, a virtude, hoje, de governo é, justamente, não possuir poder nenhum, mas ter a autoridade da opinião pública. A força não é mais poder.
NTC: Essa questão faz-me lembrar um outro aspeto que o Paulo tem referido ultimamente, e que é o facto de, na Europa, ser preciso fazer, forçosamente, uma revisão do que foi o colonialismo. O que é que quer dizer com isso exatamente?
PMR: Essa ideia está numa frase que eu tenho repetido: revisão. Eu nunca teria dito, ou gostaria de dizer, revisão do colonialismo, mas revisão crítica da política colonial. Da intenção fundamental que gera o que se chama política. Porque política, a origem da palavra é polis (2). Mas não é só disso que está se falando hoje em dia. Ou sim, porque nós não vivemos noutros lugares a não ser cidades. Mas a política surge, depois, com sentido metodológico de como implantar qualquer coisa. O desejo tem de estar antes. Essa é a questão fundamental. Portanto, a crítica não é propriamente do colonialismo, mas é, justamente, dessa genealogia que gera uma política que executa a tarefa colonial, de colonizar, que varia conforme o lugar. Você tem que primeiro negar os credos e as crenças que geralmente estão sempre lá onde há agrupamento humano. Mas você não nega por negar. Nega para pôr, então, o seu. É o que os jesuítas, por exemplo, sempre fizeram. Você é capaz de dizer para o índio, por exemplo, que Tupã (3) é uma tolice. Não existe, existe um outro deus, que é o seu deus. Não é o colonialismo em si que deve ser criticado, mas a política colonial que foi exercida no mundo inteiro. É muito oportuna essa revisão crítica da política colonial (eu penso), porque ela justamente se voltou contra. Não é bem contra, mas se voltou para mostrar para o próprio colonizador o desastre dos seus erros. É o que se está vendo na Europa agora. Eu quero dizer que estamos todos no mesmo barco. Mais ou menos para voltar à mesma questão — porque diabo pensamos assim? —, que não é brasileira, mas é nossa, agora, de todos, a questão. Apenas a descoberta da América, como um espaço (e principalmente porque se dizia que não havia), é muito emblemática; e, então, fala-se disso: da questão americana, da questão brasileira. Mas não é. É de todo o género humano, a questão. Nesse instante, surge uma ideia e uma palavra que eu penso que é indispensável para essa reflexão que você está fazendo, que é a questão da liberdade. O que caracteriza essa arquitetura então nova que surgiu? É esse confronto com a natureza. Mais uma vez, para a transformação necessária para você poder viver ali. Portanto, não podia deixar de ser uma invenção, já que aqui, por tradição, só havia repetições, manifestação de poder, e tudo isso. É uma revisão crítica muito profunda e muito interessante. A sua tese é muito bonita, levando tudo isso em consideração.
Não se trata de transformar por transformar, para manifestar poder. Trata-se de transformar porque parece extremamente desejável. Você veja a cidade, todas elas, como estão?! Entre outros maus sintomas existe a questão do congestionamento, da estupidez do transporte individual, o famigerado automóvel, tão comentado como praga hoje no mundo inteiro. Aqui mesmo, em Lisboa, uma cidade tão gentil e que se conhece há tanto tempo, nunca imaginava que hoje, mais do que nunca, houvesse congestionamentos de trânsito brutais que atrasam meia hora um encontro qualquer que se resolveria em dez minutos. Coisas incríveis! Para você imaginar, como se faz na ciência, por absurdo até (uma coisa que não é assim que vai acontecer), para extinguir esses automóveis todos, você teria de ter um sistema de transporte público que se for esse de enfiar metro para servir o traçado... Se você fosse desenhar agora a cidade, teria um outro desenho. E esse desenhar agora a cidade aparece com a descoberta do planeta. Assim, como um todo. América, no nosso caso o território chamado Brasil. Portanto, esse confronto de sempre a mesma coisa, agora, com uma coisa nova, é muito (como não podia deixar de ser) magnífico. Exuberante como questão. E desde já é preciso ver que não cabe a palavra fenómeno. Não é fenómeno. Fenómeno acontece com a natureza. O que o Homem faz é tudo consequência do projeto dele. Usa-se muito mal a expressão fenómeno urbano, por exemplo. Não existe fenómeno urbano.
notas
1
Pequena ilha a Norte da região de Veneza.
2
Cidade-Estado na antiguidade grega, cujo poder era exercido por cidadãos livres.
3
Tupã será a manifestação do deus Nhanderuvuçú da mitologia tupi-guarani.