Santiago de Compostela sempre acompanhou com ancestral fervor religioso a paixão pela arquitetura e pelo urbanismo, como o demonstram a coerência de seu tecido urbano e o valor estético de seus monumentos. Daí não surpreender a presença na última semana de novembro, de mais de 200 arquitetos e urbanistas provenientes da América Latina, Espanha e Europa, reunidos para discutir os projetos apresentados ao concurso "O modelo europeo de ciudad. Historia, vigencia e proyección de futuro. Contrastes en Iberoamérica", organizado pela Prefeitura, pelo Consórcio de Santiago de Compostela e pelo Colégio de Arquitetos da Galícia.
Os anos noventa significaram um despertar da cidade para o debate arquitetônico e urbanístico internacional, promovido pelo prefeito-arquiteto Xerardo Estévez. Arquitetos famosos europeus e norte-americanos foram convidados a construir alguns edifícios públicos: Álvaro Siza, John Hejduk, Joseph Kleihues e Giorgio Grassi, entre outros. Então, se decidiu abrir o diálogo com a América Latina. Com o apoio do prefeito Xosé Antonio Sánchez Bugallo, Antonio Vélez Catraín, experiente organizador dos concursos da Europan na Espanha, foi convidado a organizar uma competição entre algumas cidades do Novo Mundo e Santiago de Compostela, visando evidenciar os ares inovadores existentes entre os jovens profissionais de ambos lados do Atlântico, e a possibilidade de uma continuidade, ou não, dos traçados urbanos originários, hispânicos ou lusitanos.
Elegidos os nove locais do concurso – Buenos Aires, Montevidéu, Rio de Janeiro, Santiago de Cuba, Santo Domingo, México D.F., Lagos de Moreno, Santiago de Querétaro e Santiago de Compostela –, na primeira metade do ano se celebrou uma primeira fase livre na qual participaram 312 equipes de países europeus e latino-americanos, cujas apresentações foram submetidas a jurados locais, selecionando-se três projetos de cada sede. Os 21 concorrentes premiados passaram à etapa final, julgados por um juri internacional de onze membros, reunido em Santiago de Compostela na última semana de novembro e composto por figuras reconhecidas, entre elas Clorindo Testa da Argentina, Manuel Gallego e Manuel Solá Morales da Espanha, Henk Döll de Holanda, Sebastián Irarrazábal do Chile, Javier Sordo Madaleno do México, entre outros –, que outorgou três prêmios e cinco menções.
Duas causas motivaram o amplo interesse suscitado pelo concurso entre os jovens profissionais: primeiro, o estreito vínculo estabelecido com as prefeituras de cada cidade, comprometidas a levar adiante as propostas ganhadoras; segundo, o debate que a primeira etapa e a apresentação pública e coletiva dos projetos gerou localmente, antes do veredito em Santiago de Compostela. Esta nova modalidade, que sem dúvida abrirá uma nova dinâmica nos concursos que se realizarão no presente século, demostrou sua efetividade ao estabelecer uma comunicação mais direta entre arquitetos, membros do tribunal e público em general, e sem dúvida uma maior transparência das críticas emitidas pelos juizes.
Os projetos selecionados demostraram a certeza dos postulados essenciais do concurso: a cidade latino-americana, pese a irrupção dos modelos asiático e norte-americano, se mantiveram fiel aos princípios de continuidade, articulação e coerência do modelo europeu. O que não significa o rechaço ou negação dos condicionantes atuais, baseados na fragmentação, suburbanização, ghetização, privatização, segregação e anonimato que imperam nas metrópoles da região; mas de salvar a sociabilidade do espaço urbano – central ou periférico – e sua capacidade de congregação dos diferentes grupos comunitários que habitam a cidade. Este objetivo foi uma constante na maioria das propostas.
A quase totalidade dos locais selecionados se caracterizavam pela deterioração da área urbana e da sua potencialidade futura como geradora de funções vitais. Em Montevidéu, o vazio existente ao longo da costa, entre o porto, a cidade "velha" e a Rambla qualificada arquitetonicamente requeria uma articulação que sintetizasse os três elementos contextuais. Daí a complementação da proposta da grande plataforma pública e sua envoltura verde proposta por Glinka Crisci, e a densificação habitacional proposta por Conrado Pintos, cujo tecido compacto prolonga até o rio a quadrícula colonial. Em Buenos Aires, a confusão e heterogeneidade do bairro de Chacarita, definida pelo cemitério, a avenida Corrientes e a estação de estrada de ferro Lacroze, é controlada pelas sugestões de Castro e Corrá, que intervieram com duas atitudes similares mas de desenho divergente: o primeiro assume a articulação entre o pólo da estação e a direcionalidade da avenida Corrientes com as estruturas arquitetônicas, rodeadas de um verde lúdico, fragmentado como pelos lotes coloniais. O segundo, ordena o espaço a través de um ondulado passeio homogêneo que resgata o caos circundante.
Frente aos angustiantes espaços urbanos supérfluos que vão de Houston a Shenzen; de Berlim até Kuala Lumpur, administradores e arquitetos da cidade latino-americana desejam resgatar o significado funcional e simbólico do espaço público para seus habitantes, opondo-se à invasão privatizante de arranha-céus, shoppings e luxuosas torres de habitações. Desaparecido o Estado centralizado e benfeitor, município e comunidade lutam pelos atributos válidos da integração urbana frente à dispersão gerada pelo capital globalizado. A utopia da polis continua sendo sonhada nesta parte do mundo.
O modelo europeu de cidade
Giulio Carlo Argan havia se incomodado ante a convocação do concurso sob o lema "O modelo europeo de cidade: historia, vigencia e proyecção de futuro/ contrastes en Iberoamérica". Afinal, em seus ensaios sobre a arquitetura e a cidade, demostrou a significação conceitual do tipo, sua latitude programática, e o perigo da mímese devido o caráter fechado da perfeição do modelo. Ao tornar este em um paradigma formal e espacial absoluto, não mais corresponderia às transformações e variações ocorridas historicamente na cidade européia. Portanto, a qual modelo urbano nos referimos?. De que tempo e lugar? A interrogação é a seguinte: caso existam persistências atemporais, estariam definidas por modelos ou tipologias? Sem dúvida alguma, desde a Antigüidade Clássica até hoje, se sucederam no Velho Continente tanto modelos alternativos como sistemas tipológicos, que logo se difundiram pelo mundo.
O êxito alcançado pelo concurso organizado pela Prefeitura e pelo Consórcio de Santiago de Compostela demostrou que, tanto na Europa como na América Latina, os jovens participantes não assumiram mecanicamente um "modelo" como referência formal ou espacial, mas que interpretaram sua latitude e amplitude em termos conceituais. Na realidade, se tratava de debater sobre o significado da herança histórica nos princípios diretores da cidade futura e a validez do "urbano", frente à desagregação suburbana e à dispersão territorial que pressionam a região, sob a influência dos "modelos" asiáticos ou norte-americanos. Nestes tempos de fragmentação, atomização e multiplicação de teorias e realidades, se borram os limites definidos das idéias e das formas físicas, sob o domínio da hibridização e da mestiçagem, em particular, nas cidades do chamado Terceiro Mundo.
O significado inovador desta opção redundou na abertura de um diálogo socrático entre arquitetos e urbanistas da região, confrontando suas propostas com aquelas desenvolvidas na Europa, em um plano de igualdade. Nunca, até o presente, fora de congressos e seminários, se havia debatido e refletido na América Latina sobre propostas concretas de projetos urbanos semelhantes em cidades dessemelhantes, cruzando os aportes dos arquitetos de diferentes países. O clímax se alcançou em Santiago, ao apresentar cada um dos participantes suas proposta diante do público, dos concorrentes e do jurado, logrando um diálogo vital e esclarecedor que invalidou o velho esquema do silêncio e anonimato de painéis e representações gráficas, friamente lidas no resguardo do conclave do tribunal. Esta experiência constitui um exemplo a seguir, que abrirá uma nova dinâmica nos futuros concursos urbanísticos e arquitetônicos.
Os projetos apresentados no debate final em Santiago, demostraram as múltiplas leituras possíveis da cidade européia e a persistente vigência de alguns "modelos" urbanos. Quem sabe o mais impregnante seja a quadrícula arcaica filtrada através das Leis das Índias: a proposta de Conrado Pintos Ricetto para Montevidéu e os participantes colombianos em Santo Domingo e no Rio de Janeiro – Eduardo Samper e Gabriel Jaime Giraldo – conservaram a estrutura cartesiana das quadras coloniais tradicionais, com a conseqüente mudança de escala e de estrutura compositiva. O sistema monumental, que na Europa se corresponde com o urbanismo romano e a continuidade barroca na Paris acadêmica, possui sua vertente alternativa na América nos grandes conjuntos cerimoniais aztecas, maias e incas. Esta dupla herança foi assumida no México D.F. por Francisco Covarrubias Gaitán, na plataforma periférica, convertida em um centro de comunicações e serviços, e ao mesmo tempo símbolo de entrada da megalópole.
Nestes tempos de crises, de temores ante as formalizações estritas – sejam elas platônicas ou corbusianas –, de refutação a toda herança clássica e cartesiana, os "modelos" assumidos da cidade medieval e das primeiras expansões periféricas de finais do século XIX – a Cidade Jardim de Ebenezer Howard ou a Cidade Linear de Soria e Mata – encontraram seus adeptos em alguns dos concorrentes. No Rio de Janeiro, Washington Meneses Fajardo assume a liberdade compositiva e a arbitrariedade da expansão urbana que vincula as favelas com os traçados medievais (segundo Le Goff), ao definir "ilhas" funcionais em constante transformação. Por sua vez, em Buenos Aires, em Santiago de Compostela e em Santiago de Cuba, as propostas de Javier Fernández Castro, Juan Currá, Daniel Rivoira Zecca e Gloria Iriarte Campo, privilegiam o diálogo com a natureza, como elemento regenerador da qualidade urbana da periferia: o espaço verde comunitário constitui o ponto de encontro estético e funcional dos golpeados habitantes da cidade "cinza", parafraseando Carlo Aymonino. Tanto natureza livre, como os pequenos campos "arados" pela vizinhança e as utópicas piscinas da cidade oriental de Cuba, expressam um otimismo regenerador da urbe do futuro.
Por último, a contemporaneidade alcança sua expressão na mescla e articulação de tendências dessemelhantes, buscando não o centro mas as bordas; o dinâmico e não o estático; o subjetivo e não o objetivo; o informal e não o formal. Alguns arquitetos jovens não se sentem ligados à herança histórica, mas à complexidade e à diferença do presente vivido. Este fato se manifesta em um dos primeiros prêmios, elaborado para Montevidéu por Glinka Criski, cujo sistema plataforma-verde, deixa espaços livres de projeto para o futuro da centralidade; e também no universo "pop" criado em Santiago de Querétaro por Juana Canet Roselló, tão próximo aos recentes projetos holandeses do grupo Mecanoo. Espaços urbanos em constante transmutação rizomática, como os implantados em Santo Domingo por Juan Mubarak e Alejandro Herrera Gómez. Em resumo, América Latina entra no século XXI com um pensamento urbano e arquitetônico maduro e inovador, abandonando todo complexo de periferia dependente. Como já se disse em outras oportunidades – recordando Ramón Gutiérrez –, no mundo atual, o centro está na periferia.
nota
1
Este artigo é resultado da fusão de outros dois artigos: Peregrinos urbanos publicado no jornal El País (Madrid, 16 de dezembro de 2000, Suplemento Literario Babelia, p 21); e Modelo, tipología y creatividad periférica. El concurso urbanístico de Santiago de Compostela para América Latina, a ser publicado na revista Pasajes, de Madri
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.