“La tetera se había vuelto mais bella tras haberse roto e haber sido depois reparada com primor, por ese elemento de WABI, imperfecção, irregularidad de a grieta reparada”(Gillo Dorfles, Elogio de a inarmonia)
Enric Miralles (1955-2000) – graduado em Arquitetura em 1978 – começou a colaborar no escritório de Albert Viaplana e Helio Piñón em 1973. Em 1984 montou escritório em Barcelona em sociedade com Carme Pinós, sendo o projeto para o Cemitério de Igualada o mais destacado gerado pelo trabalho comum. A associação terminou em 1989. Nesse ano Miralles estabeleceu o escritório no qual trabalhou até sua morte. Simultaneamente, desde 1981, trabalhou como docente em diversas universidades da Europa e Estados Unidos.
Entusiasticamente se ressaltam nos trabalhos de Miralles uma série de capacidades e qualidades: o diálogo que suas obras estabelecem com o território e a paisagem onde se implantam e sua forte identidade mesmo diante das influências – a conjunção de numerosas tradições assimiladas até derivar na formação de um espírito/caráter autóctone, o que nos obriga a afirmar que a arquitetura de Miralles só poderia ser obra surgida do lugar ao qual o arquiteto pertence.
Depois de termos conversado um longo período com ele e termos feito algumas anotações sobre suas idéias para realizar um artigo, levantamos o olhar. Miralles corria de um lado para outro de seu imenso escritório: não podia perder nem por um instante o controle de seus projetos. Deslocava-se majestoso, com uma brutal harmonia. Como um mestre medieval, manifestava sua visão aos seus subalternos.
Sua arquitetura surpreende (como quase um século depois continua surpreendendo a obra de Antonio Gaudí) possivelmente porque a obra do catalão, mestre que aprendeu bem a Alquimia da Arquitetura, que através de golpes de força, humor (negro) e desembaraço, segue ainda conservando uma poesia capaz de provocar mediante a percepção visual uma experiência que redimensiona a realidade.
“Eu afirmo o seguinte: temos que chamar Arquitetura não a uns objetos construídos de acordo com certas técnicas e materiais, mas a um modo de imaginar” (2).
Até agora, grande parte de meu trabalho era secreto ou mais pessoal. Hoje estou mais interessado em mostrar o tipo de material que está em torno das coisas, para que as coisas sejam entendidas (mesmo que se entenda mal). Eu diria que quase tudo sempre nasce de referências conceituais. Por exemplo, quando falamos de um agrupamento de gente em um estádio com capacidade para 150.000 pessoas, que é maior que uma pequena cidade... Algo me ocorre: esses textos fantásticos de Elias Canetti que nos fala sobre a massa e seu movimento, usando uma série de belas analogias, como é o caso do sentido das palavras praia e costa, o ir e o voltar. Canetti fala de como isso nos suscita a imagem de um movimento contínuo. Então me ocorreu que o penteado seria uma das melhores analogias físicas: pensar que o grupo de pessoas nunca estivera concentrado, preso, como tantos edifícios dos quais nos aproximamos e funcionam como uma barreira... Esse tipo de construção em que imaginamos que a massa vai demolir o edifício. Gostava da idéia de que as pessoas haviam se perdido e se reagruparam... Gostava muito da analogia do cabelo: o ato de reagrupar-se eu entendo como um ato similar ao de pentear-se... A liberdade que temos de modificar a forma de nosso cabelo. E achei curioso pensar nas máscaras japonesas, como as do Teatro No, aonde se nega qualquer expressão à face e a figura se delineia com o modo de se mover o cabelo. Estas são coisas privadas e pessoais, que só têm interesse no sentido de estabelecer uma comunicação, um entendimento, mais do que conferir uma espécie de categoria essencial a nada.
Normalmente nos sentimos tentados a classificar ou comparar um certo fato arquitetônico com outros que o precederam. A dificuldade deste exercício pode ser maior ou menor. Mas levá-lo a cabo nem sempre é necessário para ampliar nosso conhecimento. Somente em certas ocasiões pode transformar-se no caminho de fácil acesso à obra de um autor, mas em outras se torna fútil e terminamos fazendo desta uma desnecessária necessidade incondicional.
Possivelmente, o que mais nos importa na arquitetura de Enric Miralles é a busca incansável da liberdade como motivo em sua obra. A noção de nos sentirmos diante de uma forma de pensar arquitetura que se redescobre, que é curiosa frente à enrijecida formalização de outras e à fácil codificação cujo fator mais indispensável é a possibilidade de sentir.
Para mim, a forma está completamente relacionada com tecer as hipóteses construtivas. Não serve de nada desenhar uma viga, pois prefiro saber onde está, quais qualidades têm.
A idéia fundamental é que o projeto nasce de uma conversação com outras pessoas, de maneira que essa espécie de conversação nos permite entrar na realidade não de um modo imposto. Eu acredito que a melhor maquete de um projeto é a conversação. Relacionado com isto existe um trabalho próprio do arquiteto e que a mim me parece muito importante.
O impulso muito pessoal que me fez avançar era o desejo de aprender a profissão. Eu diria sobre minha arquitetura, mesmo que ela tenha resultados muito concretos, que uma das suas qualidades principais é de estar baseada na curiosidade, na descoberta de outros projetos, na descoberta de idéias que alguém foi capaz de pensar. É um trabalho fundamentalmente curioso. Desde muito jovem me interessei mais por aprender uma profissão através de casos particulares... Deixar-me levar muito mais pela curiosidade e pela intuição do que pelo pensamento sistemático.
“As pessoas preocupadas com o método não estão interessadas nos afetos da Arquitetura. Só estão interessadas no processo, o processo do processo, o metaprocesso” (3).
Por isso acredito que o método, a palavra, tem outras conotações. Diria que não sei trabalhar com ela. Significa que, se analisar meu trabalho, logicamente, nele existe algumas idéias básicas, sem dúvida existe um modo de trabalhar, mas nada que possa apresentar como método (no sentido estrito que pressupõe a Arquitetura como uma espécie de disciplina autônoma).
“A condição de acabado ou trabalhado não implica em critérios de finalidade. Muitas metas (métodos) não são alcançadas, pois nunca são consideradas definitivas” (4).
Não me preocupo tanto, do ponto de vista profissional, ter que avançar nas hipóteses ou lançar um credo antes de fazer um projeto. Prefiro que as idéias se movam com liberdade e depois, quando o projeto está terminado e já construído – após uns cinco anos, por exemplo – voltar a repensar as coisas e entende-las, quem sabe melhor.
O que eu tento sempre em minhas conferências é explicar os edifícios como havendo uma continuidade entre eles: como se houvesse um único trabalho que vai passando de um projeto ao seguinte e, sobretudo, mais do que passar de um edifício concreto a outro, penso tudo como uma única obra. Eu diria que isto nasce de uma forma de considerar a profissão que é muito difícil de comentar.
Aqui posso falar em métodos e disciplinas, de uma parte muito importante de nosso trabalho, onde o esforço do que foi feito, do que foi terminado, se encontra com o que está sendo feito, com o que está em processo. O esforço do que foi feito anteriormente continua sendo de interesse. Acredito que, do ponto de vista conceitual, tenho que rodear o que já fiz e começar a pensar como o vejo agora, voltar a interpretá-lo, não deixar simplesmente o projeto como uma espécie de coisa que se abandona.
“Em alguns momentos, o projeto toma vida própria. Transforma-se então em um animal volúvel, de patas inquietas e olhos inseguros” (5).
Tua obra vai avançando com a opinião que você próprio tem dela. Nesse sentido, eu diria que me movo com mais liberdade, a ponto de acreditar que ao final do processo de Arquitetura seja difícil que encontre soluções com outra Arquitetura.
Escutando a Miralles pensamos sobre a necessidade de dar forma ao que surge em nossa mente (com uma estrutura imaterial imperfeita) impulsivamente. A Arquitetura é a segunda variante da capacidade de linguagem em Miralles.
Quem melhor sabe falar sobre como pensa é um literato, para quem a palavra é seu próprio instrumento de trabalho; é quem melhor sabe descrever as obras com maior precisão.
Sempre me impressionaram os poetas. Como sentem a necessidade de fazer antologias de suas obras. Quando vemos um poeta recopilando seu trabalho constantemente – por exemplo, as antologias fantásticas de Gerardo Diego – nos damos conta de como os poetas vão redescobrindo e reordenando a própria obra. E, neste sentido, eu diria que as antologias podem ser usadas como modelos formais deste tipo de trabalho. Evidentemente o pensamento disciplinar é muito importante, mas o é de um ponto de vista curiosamente muito pessoal, muito secreto, não como um argumento que permite à obra estar na realidade.
Eu sempre considerei que nossa própria obra torna a Arquitetura presente. O Presente é muito denso. O Presente são muitas gerações e não podemos tomar um Presente ligado a nossa própria idade. Eu sempre estive no papel de ser o mais jovem da minha geração. Mas sempre tive preocupações muito amplas. Ou seja, parece que o presente está relacionado com a época de nossa formação, mas se porventura nos colocamos qual é o Presente que um arquiteto como Álvaro Siza pode ter neste momento, vai contar – além de sua formação – o esforço de Siza por estar sempre presente.
"Sempre tenho falado da idéia do presente. O presente para mim é a qualidade de um espaço que se mantém transgressor da tipologia e da Arquitetura por um longo período de tempo" (6).
Se uma impressão se fizesse sentir sobre a fragilidade da obra de Miralles, que sua obra perdeu a força que destilava em seus primeiros tempos, deveríamos rechaçá-la porque seria uma falácia.
Eu quero que a pessoa que aprende comigo seja consciente do momento em que está vivendo e não do que a Arquitetura tem que fazer. Tem que ser consciente do momento em que está vivendo e das possibilidades que estão a seu alcance e ter uma certa consciência crítica do que faz. Eu acredito que esta é a melhor maneira de aproximar-se da profissão, muito melhor do que pensar que uma certa referência estilística lhe dará o caminho de entrada.
Se tivesse que estabelecer uma analogia cinematográfica, poderíamos comparar Enric Miralles a Federico Fellini e, por conseguinte, dizer que ele, tal como o cineasta de 8 ½, não faz um projeto (filme), mas que todos seus projetos (filmes) é um só, onde nos conta sua vida. Se o olhar é sensível, poderá perceber uma continuidade. Um desenvolvimento inevitável.
O real é que nos encontramos com uma arquitetura mais humana que precisa do estímulo autêntico, à qual possamos considerar como o ponto oposto ao cool. Através da obra de Miralles podemos começar a ter prazer da poesia do Arquiteturar, de uma arquitetura desgarrada e enervada. Uma arquitetura que nunca termina de construir-se e que tira partido de suas imperfeições.
notas
1
Entrevista com Enric Miralles realizada em seu escritório em Barcelona, Espanha, no mês de julho de 1996. Publicada na revista espanhola Transversal, n. 4, nov. 1997.
2
QUETGLAS, Josep. No te hagas ilusiones. El Croquis, Madrid, n. 42, 1991.
3
EISENMANN, Peter. In ZAERA-POLO, A. Una conversación con Peter Eisenman. Madrid, El Croquis, n. 83, 1997.
4
BRONER-BAUER, K. La arquitectura y la cebolla. Modelo de la realidad (entrevista com Reima Pietilä), Fisuras, n. 2, jan. 1995.
5
SIZA, Alvaro. Construir. In: C. Muro (ed.) Escrits. Barcelona, UPC, 1995.
6
EISENMANN, Peter. In ZAERA-POLO, A. Op. cit.
sobre os autores
Fredy Massad (Buenos Aires, 1966). Arquiteto formado em 1993 pela Universidad de Buenos Aires (UBA. Na mesma universidade foi professor de Morfologia. Em 1996 funda ¿btbW na Espanha, onde reside desde esse ano.
Alicia Guerrero Yeste (Lleida, España, 1974). Licenciada em Historia da Arte pela Universidad de Lleida (Espanha).Em 1996 funda ¿btbW.