“Entra en la ciudad de tus sueños”, observava-se escrito, há alguns meses, numa rua de Alcalá. Tratava-se de uma placa comum de obra urbana, a qual tinha por objetivo a captação de atenções para o que se fazia nas proximidades e que os tapumes, propositadamente imperfeitos, convidavam a entrever. Surgiria ali mais uma etapa de renovação de um espaço histórico. Ao evocar esse slogan, desejaria assinalar a relação entre arquitetura, história e sonho, ali presente, e que me parece uma relação elementar do imaginário de nosso tempo.
Um dos fenômenos mais incisivos desses “nossos tempos” – iniciados na última década de século XX e, em termos de arquitetura, aqui mesmo na Espanha, em Barcelona e em sua renovação, para ser preciso – é o da renovação dos centros urbanos, freqüentemente associada à reorganização e revitalização de seus centros históricos. A equação arquitetura / história / sonho se lançaria, a nosso ver, como um paradigma desse tempo, marcado pelo desejo ecológico por um habitat mais racional e pelo estilema pós-moderno de um historicismo resoluto.
A esse fenômeno, cabe associar um outro, de natureza similar: o fato de que, nos últimos anos, a arquitetura se converteu no principal símbolo de progresso de uma cidade. Aqui na Espanha têm-se muitos exemplos dessa equação. Para não nos delongarmos na já referida reorganização de Barcelona, que foi uma intervenção longamente refletida e que, como se sabe, encanta ainda hoje a comunidade internacional, pode-se citar a construção do museu Guggenheim em Bilbao (1) como um fato arquitetônico (mais que museológico) que pôs essa cidade num circuito mundial.
Com efeito, a Espanha é pródiga em exemplos dessa equação. Poderia citar a recuperação do litoral de La Coruña com sua inteligente associação entre museus e centros de investigação científica, a solução dos “corredores verdes” de Santiago de Compostela, a intervenção no bairro da Ribera, em Córdoba, o “anillo verde” de Vitória, a “ecociudad de Sarrigurren” em Pamplona e, por fim, a “Ciudad de les arts i de les ciéncies” de Valência.
O que têm em comum todas essas intervenções urbanas? Elas, de um lado, proclamam restaurar valores urbanos esquecidos, mas presentes e mesmo “naturais” às cidades nas quais se dão e elas, por outro lado, apresentam-se como etapas fundamentais, a um só tempo empíricas e simbólicas, de um progresso urbano que, na Espanha, demarca aos espíritos que o país passa o ocupar o lugar central que, por sua cultura e por sua história, merece ter no cenário internacional. Lembremos que a Espanha pós-franquista associa-se à idéia de uma Europa “também” ibérica, e, na verdade mais que isso, à idéia de uma modernidade universal fundamentalmente ibérica.
Ora, a união do empírico com o simbólico é a condição mesma da arquitetura. O que nos parece novo é a atualização do tom político da arquitetura. Ainda que a política constitua um elemento importante a toda arquitetura, sendo farta, a história, de exemplos dessa relação, numa sociedade globalizada e pós-industrial a tríade simbólico / empírico / político ganha uma nova dimensão, engendrando uma arquitetura de mensagem cujas marcas centrais seriam, a nosso ver, a procura de uma relação entre o memento mori e a ars vivendi e o empenho teatral.
A “ciudad de tus sueños” prometida nos tapumes entreabertos de Alcalá de Henares é a síntese banal e cotidiana desse fenômeno: a releitura da história, pela arquitetura, transforma o lugar num espaço teatral, num espaço de encenação aberto para o mundo. Os habitantes do lugar devêm atores dessa releitura histórica, tão ao gosto pós-moderno do fake, do remake, da reprise criativa, que, ao evocar elementos dispersos de uma subjetividade histórica, demarcam, conformam, a noção contemporânea de progresso.
Em nenhum outro lugar do mundo essa equação pós-moderna e contemporânea parece estar tão clara como na Espanha. As condições técnicas e históricas para essa efusão são bem conhecidas: o “despertar” dos país após o franquismo, o qual engendrou um desejo profundo de renovação e o resgate de uma vitalidade que parecia adormecida; a urbanização crescente e relativamente tardia do território; a abundância de sítios históricos a serem renovados, alguns dos quais escondidos pela modernidade franquista ao longo do século XX; a integração do país à Comunidade Européia e o crescimento econômico promovido pelo partido socialista, dentre outras.
Há seis cidades, na Espanha, com mais de 500 mil habitantes – Madrid (3.010.000), Barcelona (1.508.000), Valência (746.000), Sevilha (700.000), Zaragoza (613.000), Málaga (549.000) – 21 cidades com mais de 200 mil e 55 cidades com mais de 50 mil (2). O crescimento industrial e o êxodo rural dos anos 1980 exigiram respostas pragmáticas dessas cidades aos desafios de nosso tempo, os quais passam, certamente, pela elaboração de sistemas de transporte de massa, pela questão do alojamento social, pela racionalização das zonas industriais e comerciais, pela preservação dos espaços históricos e pelas reivindicações ecológicas e culturais.
A maioria das soluções empreendidas, se as vemos em seu conjunto, ensejam soluções “locais”, construídas à partir de uma vivência local, à percepção de uma demanda própria ao local. Alguns arquitetos espanhóis estão diretamente associados às cidades nas quais intervieram – normalmente suas cidades de nascimento ou de vivência – como é o caso, notadamente, de Dolores Alonso em Alicante, Peña Ganchegui en San Sebastián, Orial Bohigas em Barcelona e do escritório Cruz y Ortiz en Sevilla.
O caso de Peña Ganchegui parece-me particularmente interessante porque seu trabalho associa-se ao de um outro grande artista de San Sebastián, o escultor Eduardo Chillida e a um material, o ferro. Se Chillida havia já imposto o ferro como uma marca característica dessa urbe litorânea, Ganachegui revalorizou esse feito, transpondo várias dimensões da obra do escultor para o plano arquitetônico e urbanístico.
Talvez deva dizer, com o recato e com a inconveniência de uma consideração pessoal, que nenhuma outra cidade espanhola me encanta mais que San Sebastián. Sua composição litorânea, marcada por uma sensação de ferro velho renovado, parece-me evocar o que seria um barroco do século XXI. O uso de cores fortes, a volumetria regular mas permanentemente escavada a fim de dar lugar a varandas e janelas, a sobreposição de frisos e de platibandas, os frontões verticulários, enfim, esse conjunto de objetos arquitetônicos e temáticos que alí se vê, parece-me, fazem de San Sebastián uma experiência urbana única na Espanha e mesmo na Europa.
Porém, essa experiência única que é San Sebastián, se insere no contexto mais geral da também única experiência que é o urbanismo espanhol contemporâneo. Não sendo os meus olhos os de um arquiteto ou de um urbanista, mas sim os de um sociólogo interessado nos signos e nas mensagens de nosso tempo e de nosso mundo, observar San Sebastián ou qualquer outra das cidades espanholas que já aqui referi, converte-se na experiência de encontrar o referencial para alguns modelos estéticos de estar no mundo que resultam, em nosso tempo, na experiência arquitetônica.
Talvez caiba refletir se as origens da efervescência arquitetural espanhola não se encontram, justamente, na cooperação Ganchegui / Chillida. Lembremos que a “Peine de los Vientos”, esse estranho arranjo de pedra, ferro forjado e mar que projeta San Sebastián sobre o Atlântico, é um projeto de 1977. Lembremos ainda que a cooperação entre esse arquiteto e o escultor gerou a “Plaza de los Fueros”, de Vitória-Gasteiz, em 1982, obra que, a um só tempo, reivindica uma identidade Vasca e prefigura o espírito que será reproduzido em todo o país na década seguinte.
Para não ficar somente no país Vasco, embora se pudesse fazê-lo e também se pudesse, aí, encontrar fontes importantes para tudo o que se está falando aqui, caberia encontrar coerências capazes de explicar a similitude de todos os fenômenos arquitetônicos aqui referidos. O modelo sociológico imporia a necessidade de conhecer o perfil societal dos arquitetos responsáveis pela “movida” espanhola contemporânea e, por outro lado, de sistematizar as características sólidas do trabalho por eles empreendido. Seria um começo que se o fizesse. Quem são esses arquitetos? Além dos já referidos Ganchegui, Dolores Alosno, Orial Bohigas, Cruz y Ortiz, caberia falar em Óscar Tusquets, Alejandro Zaera, Álvaro Soto, Javier Maroto, Patxi Mongado, Iñaki Abalos e Juan Herreros, dentre certamente outros e dentre, ainda, o português Álvaro Siza, que conta com um grande prestígio internacional e que têm na Espanha a maior parte de suas atividades profissionais (3).
Em sua maioria compõem eles uma geração nascida entre 1940 e 1955 e que se marca por uma sólida formação acadêmica. Quase todos fizeram seus estudos em universidades espanholas e completaram-nos em instituições estrangeiras, sejam elas academias ou escritórios de arquitetura. Quase todos mantém uma carreira acadêmica paralela a seus escritórios, o que parece constituir uma fonte de prestígio e mesmo, entre seus pares, uma condição de capital simbólico. Essas carreiras acadêmicas, não raro desenvolvem-se também no exterior, em prestigiosas instituições, sobretudo norte-americanas. Todos eles possuem gabinetes de arquitetura que têm, dentre suas principais atividades, a elaboração de projetos para os grandes concursos internacionais, os quais parecem constituir-lhes outra fonte de prestígio. Enfim, cabe referir que seus escritórios estão solidamente inseridos num circuito internacional de demandas e que é crescente a tendência à internacionalização de seus trabalhos.
Exemplo completo desse perfil é Alejandro Zaera. Formado em universidades espanholas, prosseguiu cursos de pós-graduação em Harvard e obteve, em seguida, um estágio no escritório do prestigioso arquiteto holandês Rem Koolhas. Em 1992 fundou o Foreign Office Architects (FOA), implantado em Londres e que hoje agrupa uma equipe com cerca de 150 arquitetos. Suas atividades profissionais não o impedem, observe-se, de lecionar em três diferentes universidades – Columbia, Princeton e Yokohama. Enfim, observe-se que o FOA é um participante ativo nos diversos concursos internacionais de projetos, tendo logrado ser um dos seis finalistas do programa Zero Zone, que, como se sabe, planeja a ocupação do espaço deixado vacante pelas torres gêmeas de Nova York.
Em relação ao “modelo” arquitetônico observado, pode-se, igualmente, encontrar variáveis comuns à maioria dos projetos. A nosso ver, seriam elas:
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Pesquisa histórica importante, com atenção aos modelos não-evidentes e aos “não-ditos” do lugar – ou seja, à subjetividade social local – numa atitude que em muito ultrapassa o paradigma modernista-funcionalista em arquitetura;
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Atenção ao caráter físico da imagem projetada pela obra, com a percepção de que a intervenção possui, também, uma dimensão de marketing e comunicação que, numa sociedade globalizada e mediatizada, se mostram como fundamentais para a própria obra empreendida;
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Complexidade no processo de planejamento, implementação e manutenção da intervenção, para os quais concorrem atores sociais não-raro divergentes, tais como comunidade, poder público, entidades sociais e sindicais e empresas mas, notadamente colaborativos, entre si, em função do projeto comum;
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Presença de “âncoras” sólidas na intervenção – por vezes correspondentes a espaços naturais ou histórico inevidentes e construção lúdica de uma relação simbólica entre essa “âncora” e os conjuntos do entrono: áreas de lazer, de comércio, de turismo, museus, marinas, aquários e habitação;
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Preocupação com o desenvolvimento sustentável do modelo empreendido.
Em síntese, poderia resumir esse modelo de revitalização urbana como uma espécie de inversão da lógica modernista. Inversão no sentido de que não apenas abandona, mas, igualmente, desacredita aos preceitos positivistas do espírito moderno no que eles tinham de racionais e tecnicistas. Esse modelo abandonaria a perspectiva asséptica e neutra dos espaços partindo à procura, justamente, do que a modernidade procurava dissimular: a riqueza sócio-cultural.
Enfim, seria interessante frisar que o modelo contemporâneo de revitalização dos centros históricos atua como uma forma de ação integrada preocupada com a valorização dos aspectos subjetivos do conjunto urbano.
A equação arquitetura / história / sonho, com a qual iniciamos este artigo, se lançaria, a nosso ver, como um paradigma do diálogo público contemporâneo, ele mesmo marcado pelo desejo ecológico por um habitat mais racional e pelo estilema pós-moderno de um historicismo resoluto. E marcado ainda, ele também, por esse fenômeno de mediatização do espaço arquitetônico capaz de convertê-lo no principal símbolo de progresso de uma cidade.
notas
1
Projeto do arquiteto norte-americano Frank Gerhy, inaugurado em 1997.
2
75% dos espanhóis concentram-se em 7% dos municípios do país. O fenômeno de urbanização do espaço espanhol envolve a conclusão de cerca de 500 mil novas moradias por ano, sendo que a planificação do desenvolvimento urbano é de competência exclusiva das Comunidads autónomas (regiões federais), nas quais o país está dividido.
3
Observe-se ainda que, além de Álvaro Siza, outros renomados arquitetos não-espanhóis têm se ocupado de numerosas obras no país, como é o caso de Jacob van Rijs, David Chipperfield, Zara Hadid, Dominique Perrault, Toyto Ito e Richard Rogers.
sobre o autor
Fabio Horácio-Castro é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Pará, onde coordena o Laboratório de Sociomorfologia e o Programa de Pós-Graduação Imagem e Sociedade. Pesquisador do Centre d’Etudes sur l’Actuel et le Quotidien, em Paris, França. Doutor em sociologia pela Université René Descartes (Paris V)