Coração americano
Acordei de um sonho estranho
Um gosto vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte
Coração americano
Um sabor de vidro e corteMilton Nascimento, San Vicente
As leituras que vimos fazendo da obra de Sérgio Buarque de Holanda nos levam a perceber que, como autor, o próprio historiador encarnava o “homem americano”, cuja constituição tantas vezes o veremos propugnar ao longo de Raízes do Brasil. Cumpre esclarecermos que americano em sua concepção recebe sentido totalmente distinto daquele que veio a se popularizar na língua corrente. Nesta, o senso comum acolhe o termo americano como designação limitada aos patrícios dos Estados Unidos da América. Em Sérgio Buarque de Holanda, ao contrário, a palavra é muito mais abrangente, assume sentido continental, endereçando-se ao homem do Hemisfério Americano como um todo. Ao assim defini-lo, o historiador contempla ainda as contradições presentes na constituição deste homem, os opostos que nele convivem.
As oposições e os contrastes, nós os encontraremos na própria argumentação do historiador, pois a obra que aqui abordaremos se estrutura por conceitos polares. No respeitante a esta forma de elaborar a atividade cognitiva, o crítico literário Antônio Cândido esclarece que é tipicamente latino-americana. Segundo o crítico, desde Sarmiento (1), a reflexão sobre a realidade social foi marcada no pensamento latino-americano pelo “senso dos contrastes e mesmo dos contrários” (2)
A manifestação dessa tipicidade em Raízes do Brasil é assinalada pelo crítico, em cuja visão, este livro “é construído sobre uma admirável metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana” (3). Ademais, Cândido adverte que nesta obra o esclarecimento através dos conceitos polares se dá pelo jogo dialético, diferenciando-a, assim, do que ocorria em Sarmiento e em Euclides da Cunha. Sua compreensão é a de que nesses dois autores o recurso aos conceitos polares se manifestava por opção prática ou teórica. Por fim, Cândido diferencia esta abordagem buarqueana inclusive daquela de Max Weber, cujo influxo é reconhecido na formação de Sérgio Buarque de Holanda. Em texto datado de 1967, o crítico elucida essa diferenciação nos seguintes termos:
“A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no sentido forte do termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento. Neste processo, Sérgio Buarque de Holanda aproveita o critério tipológico de Max Weber; mas modificando-o, na medida em que focaliza pares, não pluralidades de tipos, o que lhe permite deixar de lado o modo descritivo, para tratá-los de maneira dinâmica, ressaltando principalmente a sua interação no processo histórico” (4).
Nós identificaremos aqui dois desses pólos, expressos de forma implícita na argumentação do historiador, mas que nela detectamos, quais sejam: o cosmopolitismo e a tradição. Consideramo-los implícitos porquanto a eles não recorre o historiador como contrastes principais, tal como se vale dos tipos “semeador” e “ladrilhador”, por exemplo. Certamente não ambicionamos, com isto, atingir o entendimento dialético que logrou alcançar o historiador com os pares de pólos por ele usados. Tão somente, ao descrevê-los e analisá-los na obra em apreço, queremos interpretar seu relacionamento, almejando especular sobre suas eventuais permanências ou ressonâncias na urbanidade brasileira atual.
Por fim, resta-nos admitir que a dicção por opostos, tão profícua em casos literários como O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino, quanto nos poemas fundados em oximoros de João Cabral de Melo Neto, é um dos motivos maiores de nosso interesse na obra do historiador. É consabido que a filosofia, desde suas prístinas eras, foi ensinada na forma de diálogos, prática que o adágio popular segundo o qual “é conversando que a gente se entende” só veio a referendar. Encontramos nos textos de história e de crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda, sempre, o diálogo. Uma conversa que se faz mais ainda atrativa por se dar entre opostos, alguns deles aparentemente inconciliáveis, mas que o historiador e crítico nos fazem compreender constitutivos de um só ideal, ou de uma só personagem histórica. Este é o caso do homem americano, tipo ideal que reúne o semeador e o ladrilhador, o aventureiro e o trabalhador. Esse entendimento, cremos nós, foi tão acurado em Sérgio Buarque de Holanda por ter sido ele um homem urbano, mais ainda, um cosmopolita.
A convicção acima assumida nos leva a especular sobre um relacionamento do cosmopolitismo com o pensar por opostos. Consideração que cremos justificada pela própria história urbana, afinal, – o que é a cidade senão o lugar do encontro, do diálogo? Será esta mesma, talvez, uma das razões que tenha concorrido para um formidável ditado que se popularizou na Europa na época dos grandes descobrimentos – “o ar da cidade liberta!”
O cosmopolitismo e o diálogo de opostos
A palavra cosmopolita etimologicamente remete a pólis do cosmo, à cidade universal. Em filosofia, recebeu, ainda na Grécia antiga, a acepção de “verdadeira natureza humana, cujo pertencimento à humanidade – a cidadania mundial – supera qualquer vinculação a um Estado específico.” (5) Ainda em filosofia, desta feita já no Iluminismo de vertente kantiana, o cosmopolitismo é definido como a dissolução das fronteiras nacionais que caracteriza a culminância do desenvolvimento histórico da humanidade, decorrência de uma racionalidade plena e da pacificação nas relações humanas (6).
É interessante relacionar essa acepção dada por Kant com a idéia de cosmologia do mesmo filósofo. Para tanto, é necessário, anteriormente, recuperarmos a noção de cosmologia tal como se faz presente em Wolff (7):
“estudo das leis gerais do universo e da sua constituição de conjunto, tanto do ponto de vista experimental como do ponto de vista metafísico.[...] Partindo daí, Kant chama cosmologia racional ao conjunto dos problemas relativos à origem e à natureza do mundo, considerado como uma realidade. São estes problemas que engendram as antinomias” (8).
Enseja-se, agora, que resgatemos algumas acepções do conceito de antinomia. Na ótica do Direito e da Teologia, define-se como a “contradição entre duas leis ou princípios na sua aplicação prática a um caso particular” (9). Em Kant, envolvendo as acima citadas grandezas filosóficas da ordem da cosmologia racional e do fenômeno, recebe a acepção de “conflito entre as leis da razão pura” (10). Por extensão da doutrina kantiana e do ceticismo, a antinomia comporta o sentido de “contradição entre quaisquer princípios, doutrinas ou prescrições”, ou ainda, “posição ou disposição totalmente contrária; oposição” (11).
Como visto em Kant, o problema das antinomias relaciona-se à cosmologia. Recuperados alguns sentidos de antinomia, percebemos que sua conceituação é correlata a dos opostos, dos pólos contrários. Destarte, podemos dizer que o entendimento dos pólos opostos, igualmente ao dos antinômicos, longe de constituir-se numa compreensão de partes, associa-se, antes, a uma visão de conjunto, no caso, do todo cosmológico. Quer nos parecer que o mesmo se aplica ao cosmopolitismo. Trata-se de um conceito vinculado ao todo cosmológico, ao universo, e, em Kant, decorrente de uma racionalidade plena e da pacificação nas relações humanas. Portanto, é plausível pensarmos que a formação cosmopolita propugnará uma visão racional e um diálogo dos opostos. Tal é a formação que encontramos no historiador Sérgio Buarque de Holanda, doravante abreviado por SBH.
Cosmopolitismo e tradição em Raízes do Brasil
Como já externamos o conceito de cosmopolitismo, antes de abordá-lo no texto buarqueano, cumpre versarmos sobre o significado de tradição. Ensina-nos Lalande, que no sentido ativo e original, tradição é transmissão, podendo ser aplicado àquilo que é transmitido. Assim, ela compreende “aquilo que numa sociedade e particularmente numa religião, se transmite de uma maneira viva, quer pela palavra, quer pela escrita, quer pelas maneiras de agir” (12).
Todavia, destaca o filósofo que a palavra, neste sentido, assume o caráter de louvor, sendo ela considerada “como uma intenção laudativa e respeitosa”. Este destaque, Lalande o faz em referência à compreensão de Maurice Blondel, para quem tradição “não designa principalmente, nem mesmo talvez propriamente, aquilo que é só oral; nem aquilo que poderia ser escrito, [...] compreendido e traduzido por uma reflexão analítica e didática” (13) Neste pensamento blondeliano que nos oferece Lalande, divisamos, além do etimológico, o sentido progressista que pode assumir a tradição, pelo que, cumpre transcrevermos o juízo do próprio Blondel.
“É que, segundo a imagem que evoca o sentido ativo da etimologia, e que não é uma simples metáfora, a tradição veicula mais do que idéias suscetíveis de forma lógica: ela encarna uma vida que compreende ao mesmo tempo sentimentos, pensamentos, crenças, aspirações e ações. Ela entrega por uma espécie de contato fecundante aquilo de que as gerações sucessivas têm igualmente de compenetrar, e aquilo que elas têm de legar como uma condição permanente de vivificação, de participação numa realidade em que o esforço individual e sucessivo pode indefinidamente beber sem esgotar nunca. Por conseqüência, implica uma comunhão espiritual de almas que sentem, pensam e querem, sob a unidade de um mesmo ideal patriótico ou religioso; e ela é, precisamente por isso, também, condição de progresso” (14).
Quer nos parecer, que será por semelhante pensamento que Maurice Halbwachs considere a tradição o maior dos âmbitos, posto que abriga a cultura. Feitas essas considerações conceituais, talha-se a vereda para nossa entrada na obra buarqueana.
SBH assevera em Raízes do Brasil que nossas formas de convívio, instituições, idéias foram importadas e teimosamente implantadas no ambiente brasileiro, que lhes era desfavorável e hostil. Reflexão que timbra na assertiva de que somos uns desterrados em nossa própria terra. O problema que assim se lhe impõe é o do exame de até onde temos podido representar as formas de convívio, instituições e idéias desse modo herdadas.
Essa herança vem pioneiramente de Portugal, donde recebemos, na visão de SBH, a forma de nossa cultura, sendo o restante considerado pelo historiador como matéria que bem ou mal se sujeitou a essa forma. SBH afirma que, ainda no tempo da escrita deste livro, manifestava-se a associação do Brasil àquele país e à Península Ibérica, por uma tradição “longa e viva”.
Entre as características dessa tradição manifestas entre nós, cita a tendência dos ibéricos à baronia e à fidalguia. Contudo, ressalva que esse prestígio pessoal, independe do nome herdado, e continuou-se nas nações ibéricas em épocas mais gloriosas da sua história. O historiador encontra nesta independência pelo menos um ponto em que tais nações podem considerar-se legítimas pioneiras da mentalidade moderna (15). Não obstante, vincula aquele pendor à nossa dificuldade em estabelecer um acordo coletivo durável. Este, entre nós só se fazia possível por submissão, respeito e temor a uma força externa, donde a facilidade de implantação de ditaduras em terras nacionais.
Adverte, porém, que não representa fenômeno moderno essa ausência de coesão em nossa vida social e que, portanto, equivocam-se os que, desejosos de recuperá-la, defendem uma volta à tradição. Entrevemos nesta assertiva do historiador uma provável referência aos integralistas que marcavam a cena política e cultural naqueles anos trinta do século passado. Essa tendência de revivescimento, SBH questiona se não seria, ela, antes “um índice de nossa incapacidade de criar espontaneamente.” Ao que contrapõe uma verdade histórica: “As épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação. A escolástica na Idade Média foi criadora porque foi atual” (16).
Comparativamente aos portugueses, SBH sublinha o diferencial dos holandeses. Conquanto externe que estes dificilmente se perpetuariam entre nós como povo, pela inerente inadaptação dos europeus do norte aos trópicos, o historiador assinala nos holandeses a mentalidade urbana e cosmopolita. A qual mentalidade rendeu à nossa história uma pioneira e única manifestação de cosmopolitismo no período da colonização, profetizando a futura divisão entre campo e cidade.
“População cosmopolita, instável, de caráter predominantemente urbano, essa gente ia apinhar-se no Recife ou na nascente Mauritsstad, que começava a crescer na ilha de Antônio Vaz. Estimulando, assim, de modo prematuro, a divisão clássica entre o engenho e a cidade, entre o senhor rural e o mascate, divisão que encheria, mais tarde, quase toda a história pernambucana.
Esse progresso urbano era ocorrência nova na vida brasileira, e ocorrência que ajuda a melhor distinguir, um do outro, os processos colonizadores de “flamengos” e portugueses. Ao passo que em todo o resto do Brasil as cidades continuavam simples e pobres dependências dos domínios rurais, a metrópole pernambucana ‘vivia por si’.” (17)
Pois é justamente na prevalência entre nós, por tanto tempo, da herança rural, onde SBH localiza um óbice ao desenvolvimento urbano, e, mais ainda, ao cosmopolitismo.
O historiador mostra que o quadro configurado pela robustez do domínio rural e tibieza do urbano, típico dos primórdios do período colonial, persistiria até a segunda metade do século XVIII. Excede tal contexto somente Pernambuco, estado onde os esforços holandeses de induzir a imigração para o campo fracassaram. Assim, conclui que o ruralismo foi típico dos colonizadores portugueses, e não uma imposição do meio. Esse ruralismo, SBH considera-o também sob o ponto de vista de uma misteriosa força centrífuga, própria ao meio americano, que poderia ter impulsionado a aristocracia rural a trocar a cidade pelo isolamento dos engenhos e pela vida rústica nas terras de criação.
Ainda no âmbito da tradição, SBH situa o patriarcado, remarcando que na sociedade colonial brasileira a tirania deste e da lei doméstica, sobrepuja até mesmo a instituição jurídica. Predominam assim, em toda a vida social, os sentimentos próprios à comunidade doméstica, que é particularista e antipolítica, dessa forma operando uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família. Este aspecto de nossa sociedade continua tão atual, que recentemente foi denunciado pelo filósofo Roberto Romano (18), referindo o hábito do Presidente da República em se definir pela metáfora de “pai do povo” (19). Assim, podemos identificar em tal recorrência um legado da tradição brasileira.
A transição do rural para o urbano, SBH a explica em termos de um processo gradativo, precipitado pela vinda da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808, e posteriormente pela independência. Nessa marcha é que a proeminência dos senhorios rurais começa a decair em concomitância com o florescer dos centros urbanos e a ascensão das profissões que lhes são peculiares, como as liberais, a política e a burocracia. Estas passam a ser ocupadas primeiro pelos senhores ligados às lavouras e aos engenhos, que subitamente arrebatados para as cidades, a elas comunicam suas mentalidades, seus valores e preconceitos.
Contudo, esses primeiros ensaios de cosmopolitismo eram por demais incipientes, revelando-o, inclusive, a produção escapista de nosso romantismo literário, em cuja análise por SBH vemos pronunciar-se o crítico na fala do historiador.
Tornando possível a criação de um mundo fora do mundo, o amor às letras não tardou em instituir um derivativo cômodo para o horror à nossa realidade cotidiana. Não reagiu contra ela, de uma reação sã e fecunda, não tratou de corrigi-la ou dominá-la; esqueceu-a simplesmente, ou detestou-a, provocando desencantos precoces e ilusões de maturidade. Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa” (20).
Assim, essa elite informará à cidade o beletrismo como valor maior, em detrimento da especulação intelectual como organizadora do progresso. Na visão de SBH, esta inteligência não conducente ao progresso é antimoderna e incompatível com a lógica da máquina. Assim explicado pelo historiador, esse quadro de instauração do Brasil urbano nos leva a concluir que a ausência de um pensar cosmopolita se manifesta, entre nós, desde essa incipiente urbanidade. Tal conclusão se avigora, para nós, pela assertiva do historiador de que, ali, mesmo o desejo de mudança, ainda se fazia amparado na tradição, no preservar do legado colonial, valores acionados tanto por tradicionalistas, quanto por iconoclastas.
Exemplificando esse comportamento, SBH cita a revolução pernambucana de 1817, considerando que essa,
“embora tingida de ‘idéias francesas’, foi, em grande parte, uma reedição da luta secular do natural da terra contra o adventício, do senhor de engenho contra o mascate. Vitoriosa, é pouco provável que suscitasse alguma transformação verdadeiramente substancial em nossa estrutura político-econômica. Sabemos bem que, entre os condutores do movimento, muitos pertenciam de fato à chamada nobreza da terra, e nada indica que estivessem intimamente preparados para aceitar todas as conseqüências de seu gesto, despindo-se das antigas prerrogativas” (21).
SBH evoca o fato histórico de que a prevalência da sociedade de raízes rurais aqui instaurada pela colonização portuguesa viria a ser abalada somente quando da proibição do tráfico negreiro. A esta supressão precisamente, correlaciona um imediato estágio posterior marcado por vitalidade fora do comum em negócios dirigidos por – e em proveito de – especuladores geralmente sem raízes rurais.
A propósito, o historiador relembra a conhecida correlação direta e indireta que as circunstâncias favoráveis à proibição do tráfico mantêm com o nativismo lusófobo. Onde entrevemos que, já aí, a ruptura com o passado português sinalizava progresso, transformação. Não obstante, não será a cessação do tráfico suficiente para tanto, posto que a instabilidade das novas fortunas arrazoava aqueles nostálgicos do sistema rural e patriarcal. Trata-se ainda de uma imaturidade nacional, e SBH assim a elucida:
Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente [...] se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao abstrato o corpóreo e o sensível, o citadino e cosmopolita ao regional ou paroquial. A presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocrata para transformações que lhe alterassem profundamente a fisionomia. Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos mercadores e especuladores urbanos, mas a obra começada em 1850 só se completará efetivamente em 1888” (22).
Também politicamente o poder agrário dominaria a cidade ainda no Império e na República, sendo o campo o mandatário da cidade, no que diferimos do resto do mundo. Distinção que SBH esclarece relembrando que em todo o mundo e em todas as épocas, vigeu a regra de que prosperidade dos meios urbanos dava-se à custa dos centros de produção agrícola, portanto, o oposto do que se deu no Brasil.
Na visão de SBH tais condições da transposição da mentalidade da casa-grande às cidades e suas profissões urbanas, torna-se ainda mais compreensível quando se considere a seguinte constatação: – no Brasil, assim como na maioria dos países de história colonial recente, mal existiam tipos de estabelecimento intermediários entre os meios urbanos e as propriedades rurais produtoras de gêneros exportáveis.
Destarte, compreendemos a existência da cisão, até hoje presente entre nós, entre de campo e cidade. O que, inclusivamente, se manifesta na forma idílica com que muitas vezes o campo é aludido pelos citadinos, denotando um oásis ainda preservado das mazelas da urbanização. Ademais, as falas relativas ao morador do campo envolvem-no numa tal aura de pureza, que sua descrição chega a ressoar uma hagiografia. Essas idiossincrasias, nós as interpretamos como um ressaibo daquelas condições de transposição de mentalidade rural ao urbano. Trata-se de mais um legado tradicionalista a objetar o desenvolvimento do cosmopolitismo em terras nacionais.
O movimento contrário ao dos portugueses, SBH identifica nos espanhóis, na célebre antinomia que constrói entre o português-semeador e o espanhol-ladrilhador. Recobra o historiador que os espanhóis, assim como várias nações, tiveram na construção de cidades seu terminante instrumento de dominação. Outrossim, que as cidades espanholas na América Latina, constituem as primeiras cidades abstratas edificadas pelos europeus no continente sul-americano. Na visão de SBH, o traçado em linhas retas, que as caracteriza, já expressa a determinação de submeter e dominar a paisagem segundo a vontade de um fim “previsto e eleito”, o caráter ladrilhador do espanhol.
SBH identifica na vontade criadora do colonizador espanhol aquilo que a distingue do trabalho português no Brasil. Enquanto para os espanhóis a colônia era uma extensão da metrópole, para os portugueses, tanto governo, quanto súditos, a colônia era local de passagem para enriquecimento. Tanto assim, que os espanhóis preferiram edificar suas povoações em locais onde a altitude permitisse aos europeus, mesmo nas zonas tórridas, o desfrute de um clima semelhante ao que lhes era familiar em seu país de origem. Esse afã de fazer das colônias uma extensão da metrópole vem a corroborá-lo a prístina criação de universidades nas novas terras. Entre as instituições citadas por SBH, destacamos a Universidade de São Domingos, criada em 1538; e a de São Marcos, em Lima, fundada por cédula real datada de 1551, mesmo ano daquela da Cidade do México.
Contrariamente, os portugueses preferiram a colonização litorânea, cuja influência, SBH considerava, na época da escrita de Raízes do Brasil, ainda atual. Tal consideração o historiador a justifica pelo fato da palavra interior denotar, ainda nos anos trinta, o mesmo que significava no século XVI: uma região de escasso povoamento, e apenas tocada pela cultura urbana. A relação entre litoral e interior, sendo o litoral mais rico e comercial, SBH a assimila àquela entre rural e urbano, em que o rural é esplendoroso e o urbano miserável. Nestas duas manifestações o historiador assinala uma significação particular, porquanto elucidativas das fases de nosso desenvolvimento social.
Entretanto, ressalva que a iniciativa bandeirista difere disso, pois, embora não ousasse se desfazer os vínculos com a metrópole, tem um caráter de autonomia em relação a ela, logrando conferir ao Brasil “sua atual silhueta geográfica”. Nós encontramos no entendimento buarqueano do caso bandeirista um esboço de visão cosmopolita por parte daqueles desbravadores.
No que tange à formação intelectual, SBH destaca a sobranceria da América Espanhola em relação à portuguesa. Explica-o pela já citada presença de universidades, e, outrossim, pela existência de imprensa e publicação de livros, desde as primícias da colonização espanhola em terras latino-americanas. Ademais, ressalta que tal formação não era interessante aos propósitos dominadores de Portugal, que via na circulação de novas idéias uma provável ameaça para a estabilidade de seu poder. A esse respeito, sublinha ainda, que embora tolerassem estrangeiros trabalhando na colônia, não agradava à Coroa a possibilidade da entrada aqui de adventícios que lhes parecessem difusores de idéias de insubordinação. Tal foi o motivo da ordem real para o atabalhoamento da viagem do alemão Alexandre Humboldt pelo Brasil no limiar do século XIX.
Não obstante o quão tardio foi o nosso desenvolvimento intelectual, SBH o associou à formação de quadros capazes na política brasileira, como se segue:
“E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriram numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais, de ‘viver por si’, libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades” (23).
O acima exposto nos autoriza a concluir que em SBH, a saída do meio rural em sentido sagital para a cidade representa libertação humana. Igualmente era em termos libertários que o historiador defendia a emancipação pessoal, o que vem a ser endossado pela assertiva abaixo.
“No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje” (24).
A relação entre a emancipação individual e a urbanidade assim colocada constitui, para nós, o cume da reflexão que vimos fazendo ao longo deste texto. É o ponto cimeiro que nos permite reforçar no conceito buarqueano de cosmopolitismo o enunciado de libertação.
Atingido tal ponto, podemos precisar qual enunciado emerge no olhar do historiador para a tradição.
Não por mera coincidência, o encontramos no capítulo intitulado “Nossa Revolução”. Essa, no dizer do historiador, se dá lentamente pós-abolição, evento que inflete o curso dos acontecimentos, marcando o fim do predomínio agrário. A partir daí, busca-se uma forma adequada para a nova composição social. No dizer de SBH, testemunham ainda, aqueles anos trinta, ressonâncias do lento cataclismo que significara aquela inflexão, cujo sentido se afigura como o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura, para inaugurar um estilo novo. A este estilo o historiador crisma – advertindo que o faz ilusoriamente –, de americano, pela rapidez com que seus traços se acentuam no nosso hemisfério. Em suas próprias palavras:
“Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do ‘americanismo’, que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente” (25).
Percorremos, ao longo desta análise, as searas da tradição em suas manifestações ibérica, patriarcal, e rural. Em todas estas vertentes, em SBH ela se manifesta absolutamente contrária à faculdade progressista lhe atribui Blondel. Por fim, perante as considerações de SBH expostas imediatamente acima, somos conduzidos a interpretar que a consolidação interna do homem americano é o que nos libertaria decisivamente da tradição. Esta, num movimento contrário, define-se em Raízes do Brasil como o grilhão que nos impede de tal desenvolvimento libertador. O enunciado que emerge de tal conceito é, portanto, o de amarra, de um visgo que está no fulcro da vagareza do desenvolvimento de nosso homem americano – ele mesmo a representação cabal de cosmopolitismo.
A compreensão da emergência do enunciado libertário do cosmopolitismo, em contraste com o enunciado apresador de tradição, em Raízes do Brasil, evade, para nós, o problema de como a tradição poderia imbuir positivamente nossa cultura citadina. Nos incita à indagação de como integrá-la à memória urbana, tendo em vista que, a todo o momento, a vimos ser contraposta à urbanidade por SBH. Atingir esta compreensão se nos afigura como penetrar o “coração americano”, quiçá amadurecendo e apaziguando seus contrastes no homem e na cidade brasileira.
notas
1
Domingo Faustino Sarmiento (San Juan de la Frontera, 1811 – Assunção, Paraguai, 1888). Político e escritor argentino, Presidente da República de 1868 a 1874 em governo animado por espírito progressista. Autor de Facundo (1845), sobre (Juan) Facundo Quiroga (caudilho e político argentino, 1790 – 1835). Livro que é considerado, no Dicionário Koogan Larousse, a um só tempo: romance biográfico, estudo sociológico do país e história de uma época.
2
CÂNDIDO, Antônio. O significado de Raízes do Brasil. In: BUARQUE DE Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994, p. xlii.
3
Idem, ibidem, loc.cit.
4
Idem, ibidem, loc.cit.
5
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.05 a. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
6
Idem, ibidem.
7
WOLFF ou WOLF, Christian, barão VON. (Breslau, 1679 – Halle, 1754). Filósofo alemão discípulo de Leibniz.
8
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 216. Grifo nosso.
9
Idem, ibidem, p. 72.
10
Idem, ibidem, loc.cit.
11
HOUAISS, Antonio. Op. cit. Grifo nosso.
12
LALANDE, André. Op. cit., p. 1147.
13
Idem, ibidem, loc.cit.
14
Idem, ibidem, loc.cit., p. 1147-1148. Grifo nosso.
15
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994, p. 7.
16
Idem, ibidem, p. 5.
17
Idem, ibidem, p. 33. Grifo nosso.
18
Cf. ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. São Paulo, Brasiliense, 1981.
19
ROMANO, Roberto. “A genética do PT”. In Veja, Rio de Janeiro, ano 38, n. 7, p. 14, fev. 2005. Entrevista concedida a Otávio Cabral.
20
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. cit., p. 121. Grifo nosso.
21
Idem, ibidem, p. 55
22
Idem, ibidem, p. 46. Grifo nosso.
23
Idem, ibidem, p. 104. Grifo nosso.
24
Idem, ibidem, p. 105.
25
Idem, ibidem, p. 127. Grifo nosso.
sobre o autor
Eliane Lordello, arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura, PROARQ/FAU/UFRJ, doutoranda do MDU/UFPE