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architexts ISSN 1809-6298

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Tornou-se comum no Brasil a utilização do inventário como instrumento de proteção ao patrimônio público. Este artigo problematiza seu uso como “instrumento de proteção”, a partir de suas matrizes, características e especificidades regionais


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OLENDER, Marcos. Uma “medicina doce do patrimônio”. O inventário como instrumento de proteção do patrimônio cultural – limites e problematizações. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 124.00, Vitruvius, set. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.124/3546>.

“Casa da Bahia”, Andrelândia, 2009
Foto Fabiana Mendes Tavares

“O inventário é uma espécie de 'medicina doce' do patrimônio” (1)

Segundo André Chastel, “a ideia de um 'inventário geral' dos bens culturais” teria surgido “na época das 'Luzes”, mais especificamente a partir da ação das academias provinciais que elaboraram, entre 1770/1780, “perspectivas gerais, por vezes publicadas sob o título ingrato de 'estatística'“, e onde “se fazia menção, ao lado dos recursos agrícolas, econômicos etc., às obras históricas interessantes” (2). Mas o próprio Chastel reconhece, como faz Choay, que foi com a Revolução Francesa que tomou corpo, pela primeira vez, uma inventariação sistemática dos bens culturais.

O inventário dos bens culturais surgiu, efetivamente, aponta Choay, como inventário de uma herança “deixada” pelas classes hegemônicas do Antigo Regime (Nobreza e Clero) para a França revolucionária. Fazia-se necessário identificar precisamente os bens do espólio que havia sido nacionalizado, caracterizá-los e descrever o seu real estado de conservação. Era, portanto, um levantamento de bens já protegidos, ou melhor, que encontravam-se sob a guarda do novo Estado até que se decidisse o que se fazer com eles (3). A sistematização e a orientação desta coleta de dados se deu, em 1793, com a publicação da “Instruction sur la manière d'inventorier”, por Felix Vicq D'Azyr. Este renomado cientista, “especialista em anatomia do cérebro e um dos criadores da anatomia comparada”, informa-nos Choay:

“[...] transpôs para o domínio dos monumentos históricos tanto a terminologia como os métodos descritivo e taxionômico que o celebrizaram em sua disciplina. Pôs também a serviço da proteção do patrimônio nacional seu saber pedagógico e a experiência do zoneamento territorial da França, que ele havia desenvolvido em suas pesquisas sobre epizootias. [...] [Vicq d'Azyr] constitui o exemplo de uma nova figura, pela primeira vez prática, das relações fecundas entre as ciências naturais e o estudo dos monumentos históricos. Em matéria de arquitetura, a ficha-padrão estabelecida meio século mais tarde sob a direção de Mérimée, não será mais precisa que a da seção XI da Instruction” (4).

“Casa de D. Odete”, Andrelândia, 2006
Foto Marcos Olender

As intenções e/ou iniciativas de inventariação havidas durante o século XIX não lograram um efetivo êxito. Delas, Chastel ressalta a empreendida por Philippe de Chennevières-Pointel que, após ser nomeado diretor da Academia de Belas Artes, em 1873, inicia a elaboração do “Inventaire general des richesses d'art de la France” que resultaria em um “modesto ‘ficheiro arqueológico’” (5) publicado em poucos volumes. Demoraria até o início da década de 1960 para que, a partir da iniciativa do próprio Chastel, o escritor André Malraux – então Ministro da Cultura francês – instituísse, em 1964, a “Comissão nacional encarregada do Inventário Geral dos monumentos e obras de arte da França”. Coube a esta comissão a elaboração e implementação do citado Inventário que apresentava-se como um “inquérito base”, um recenseamento das potencialidades culturais e artísticas existentes em solo francês, muito mais próximo, portanto, da iniciativa de Chennevières-Pointel, de 1873, do que daquela implementada pela Comissão de Artes do governo revolucionário, a partir de 1793. Como afirma o seu próprio idealizador, André Chastel:

“A finalidade do projeto tinha-se tornado clara: identificar tudo o que é digno de nota no terreno, de modo a provocar uma tomada de consciência das populações interessadas; estudar e classificar, de acordo com as técnicas mais eficientes, edifícios e objetos, de modo a inscrevê-los na memória nacional” (6).

Realizado até hoje, estruturado regionalmente e tendo sua gestão compartilhada com as regiões e municípios franceses, o “Inventário geral”, cuja vocação é “para a descrição e para o conhecimento” não pode ser confundido, como ressalta o próprio Chastel, “com o serviço dos Monumentos Históricos”, ou seja, com as ações mais imediatas envolvendo a proteção, como o tombamento e a restauração. O seu maior objetivo é o de contribuir com a ampliação do conhecimento sobre a arte e a cultura, tendo como objetivos específicos: “guiar as organizações de turismo, dar suporte às finalidades do ensino, orientar a pesquisa arqueológica e histórica, e dar, enfim, às comissões responsáveis pelos monumentos históricos e pelo urbanismo, os elementos de ação suficiente” (7).

Como aponta seu sucessor na subdireção do Inventário Geral, Jöel Perrin, o:

“Serviço do Inventário foi concebido em paralelo ao Serviço dos Monumentos Históricos. Este estava encarregado da gestão dos monumentos e obras de arte, enquanto que aquele estava concebido como um serviço de investigação sem nenhuma preocupação legal ou administrativa” (8).

Ou ainda, como afirma Michel Melot, que sucede Perrin na coordenação deste inventário a partir de 1995 (e até 2003), é um:

“serviço de pesquisa [...] desligado de toda finalidade partidária. Esta é a condição de sua eficácia e de sua missão democrática. A resposta não é dada antes da questão. A escolha não é feita antes do inventário. Os gostos e as ideologias patrimoniais são voláteis, e ninguém pode prejulgar as escolhas próprias a cada época, a cada comunidade. Muitos esperam do inventário uma escolha entre o bom patrimônio e o mau, o útil e o inútil. Em breve, [esperarão] uma espécie de permissão para demolir ou uma classificação de guia turístico. Uma tal classificação é sempre possível a partir das informações fornecidas pelo inventário mas não tem mais valor do que lhe dá seu autor e pertence a cada um de fazer o seu. O Inventário assinala os objetos que merecem ser protegidos, mas ele deve, também, conservar a memória daqueles que vão ser destruídos. Sua irresponsabilidade é a condição de sua sinceridade. O que não quer dizer que ele seja inocente. O fato de reter ou não um objeto valoriza este objeto ou o desqualifica. O inventário é uma espécie de 'medicina doce' do patrimônio” (9).

Este “Inventário Geral” tem função diferente, na própria gestão da preservação do patrimônio cultural francês, daquilo que é denominado de “Inventário suplementar dos monumentos históricos”, figura existente, segundo Paulo Ormindo de Azevedo, desde 1948, na legislação francesa, complementando a lei de 31 de dezembro de 1913 sobre os monumentos históricos. Esta figura encontra-se, também, explicitada no “Code du Patrimoine – Partie Legislative”, de 2005 e funciona como uma classificação (como o tombamento é denominado na França) emergencial, complementar e mais flexível. Tanto que a própria legislação diz que, suscitada por uma demanda de intervenção no bem constante deste “inventário suplementar” pelo proprietário do mesmo, a autoridade administrativa terá um prazo (de até cinco anos, dependendo do caso) para proceder à sua classificação (ou tombamento) definitiva. Esta figura do “Inventário suplementar” foi transposta, também, para a atual “Lei de Bases do Patrimônio Cultural”, de Portugal, promulgada em 08 de setembro de 2001.

“Casa de D. Ninita”, Andrelândia, 2006
Foto Marcos Olender

Duas espécies de inventários presentes na gestão do patrimônio cultural francês e que têm objetivos e funções diferentes, porém complementares, a partir do momento que, como diz o próprio idealizador do Inventaire Général, André Chastel, este último tem como uma das suas principais funções a de fornecer elementos e, com isso, subsidiar as ações das “comissões responsáveis pelos monumentos históricos e pelo urbanismo” (10). Comissão dos Monumentos Históricos, por sua vez, responsável pela elaboração do citado “Inventário Suplementar”.

Atualmente, estes dois significados de inventário aparecerão nas legislações e procedimentos da gestão do patrimônio cultural, de diversos níveis, no Brasil, sendo que, como veremos, o primeiro dos significados, ou seja, a figura do inventário, enquanto sistematização de conhecimento (ou identificação), encontra-se consolidada historicamente tanto em nível nacional quanto regional, sendo aquela utilizada rotineiramente em nosso Estado das Minas Gerais.

Institucionalmente, a preocupação com a inventariação do nosso patrimônio encontra-se presente desde os primórdios do SPHAN. Em 1939, Rodrigo Mello Franco de Andrade já apontava para a necessidade desta ação, como pressuposto básico para a proteção do nosso patrimônio. Diz ele:

“[...] torna-se necessário proceder pelo país inteiro a um inventário metódico dos bens que pareçam estar nas condições estabelecidas para o tombamento e, em seguida, realizar os estudos requeridos para deliberar sobre a respectiva inscrição” (11).

Neste mesmo sentido, Lúcio Costa em seu Plano de Trabalho para a Divisão de Estudos e Tombamento da DPHAN, escrito em 1949, ano no qual assume a direção da citada divisão, aponta para a necessidade vital, para o bom funcionamento da instituição, de coletas de informações para a especificação do “acervo histórico-monumental de interesse artístico que nos incumbe preservar”. Coletas estas que se dividem entre aquelas “de natureza técnico-artística” como as de um “inventário de fotografias e plantas”, somadas “as decorrentes da observação direta” e as “informações de natureza histórico-elucidativa”.

A importância deste trabalho é tão grande que Lúcio não se furta em afirmar que, se fosse necessário não se:

“[...] vexaria de recomendar a paralisação quase completa das obras em andamento e o cancelamento dos novos serviços [...] a fim de que as verbas da dotação anual do DPHAN fossem integralmente aplicadas, durante dois ou três exercícios consecutivos, nessa empresa de colheita e compilação maciça de informações – fundamento sobre o qual deverão assentar todas as iniciativas da repartição”.

Só que, orientado por uma visão historicista do que devia ser considerado patrimônio nacional, ou seja, privilegiando os bens oriundos do nosso passado colonial, Lúcio compara esta coleta de informações com uma “espécie de aventura que deverá ser levada a cabo sem pressa, com o espírito esportivo próprio dos caçadores”. A utilização da figura do “caçador”, não é porém a mais apropriada para caracterizar o trabalho do inventariante pois, “diferente da ideia do explorador, já parte para a aventura sabendo o que deseja encontrar” (12). Lúcio desobedece, pois, uma das regras fundamentais da inventariação, segundo Melot, a de que: “A resposta não é dada antes da questão. A escolha não é feita antes do inventário”.

Igreja Matriz de São Sebastião, Piraúba, 2007
Foto Fabiana Mendes Tavares

Somente, porém, na década de 1970, o inventário, enquanto “inventário de conhecimento”, desenvolve-se de forma mais estruturada no Brasil. Isto deve-se à atuação de Paulo Ormindo de Azevedo, que implementou, a partir de 1973, o “Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia (IPAC-BA)”. Este descende, diretamente do “Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural Europeu”, cujas diretrizes metodológicas foram publicadas, em 1970, na Itália (13). Como o seu ancestral italiano, o IPAC-BA seguia a definição de “inventário de proteção” dada pela Confrontação A, reunião realizada em Barcelona, em 1965, que dedicou-se exatamente à elaboração de “critérios para um inventário de sítios e conjuntos históricos ou artísticos com vista à sua conservação e valorização” (14). Nela definiu-se “inventário de proteção” como sendo aquele capaz de “identificar e reunir as informações indispensáveis à preservação dos bens culturais” (15).

O IPAC-BA, afirma Paulo Ormindo, não se restringia ao levantamento do patrimônio já reconhecido legalmente, como faziam alguns países, pois isto eliminava “uma de suas mais importantes funções, a de recenseamento do universo cultural mais amplo, não seletivo”. Com ele, procurava-se realizar “um cadastramento cultural sistemático do território, que pudesse servir de base ao planejamento urbano-territorial e não apenas à preservação de alguns edifícios isolados”.

Seguindo esta mesma orientação, a partir da década de 1980, multiplicaram-se dentro do IPHAN, iniciativas de elaboração de “inventários de conhecimento”. Em 1995, como uma primeira tentativa de sistematização destas experiências com a inventariação, é realizado o “Encontro de inventários de conhecimento do IPHAN”. Neste encontro, alterou-se a denominação deste para “inventário de identificação” por ser o “termo utilizado pela UNESCO para trabalhos com esse caráter de investigação” (16).

Sobre estes inventários, e a forma como eles atendem a atribuição dada a eles pelo artigo 216 da Constituição Brasileira de 1988, de instrumento de promoção e proteção do patrimônio cultural, afirma a equipe responsável pela elaboração e coordenação dos mesmos:

“Os inventários de identificação têm-se constituído no instrumental técnico para atender a essa nova demanda [expressa na Constituição de 1988], possibilitando a seleção e o registro de novos valores para preservação, assim como a reflexão sobre novas alternativas ´para o cumprimento das competências e deveres da instituição” (17).

No que concerne ao Estado de Minas Gerais, dez anos depois do início do IPAC-BA, em 1984, instala-se o seu congênere mineiro, o IPAC-MG, desenvolvido desde então pelo Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) e que, segundo suas próprias normas, publicadas pelo Instituto em 1985, como informa Leonardo Castriota, “vai ser [...] um 'inventário de conhecimento', voltado para a 'identificação dos bens de interesse de preservação', com vistas a estimular 'sua proteção e estudo posterior’” (18). Parte, diz Castriota, “de uma concepção ampliada de patrimônio e procura evitar a discriminação monumental”, mas não avança por não procurar uma forma de subsidiar, também, o planejamento urbano visto, também, pelo citado autor, como outra possível forma de preservação. Algo que estava presente em outra iniciativa de “inventário de conhecimento” da mesma época da instalação do IPAC-MG, o “Inventário Geral do Patrimônio Ambiental e Cultural Urbano de São Paulo”, iniciado em 1983 e que, além de ser pensado como

“[...] mero registro ou preparação para o tombamento [...] passa a pretender participar nas políticas e planos de desenvolvimento urbano, no que diz respeito às áreas a serem preservadas e outras sujeitas à renovação urbana, objetivo que é respondido com a elaboração de propostas específicas de preservação e de regulação urbana (1987)” (19).

Tal foi o caminho também trilhado, uma década depois, pelo IPUC-BH (Inventário de Patrimônio Urbano e Cultural de Belo Horizonte), iniciado em 1993 e que aprimora a metodologia utilizada na metrópole paulista, preocupando-se em “reconhecer e documentar o patrimônio, entendido em sua forma mais abrangente e contemporânea, [o que] possibilita a elaboração de propostas de preservação integradas com a política urbana geral para o município” (20).

A partir de fins de 1995, Minas Gerais conta com uma nova legislação de redistribuição do ICMS. Batizada de “Lei Robin Hood”, a parte da documentação a ser encaminhada pelo município para atendimento do quesito “Patrimônio Cultural” é coordenada e avaliada pelo IEPHA-MG. É inegável que a aplicação de tal lei, na área concernente à preservação do patrimônio cultural, contribuiu muito para a difusão e para o desenvolvimento das ações concernentes a esta preservação na maioria dos municípios mineiros. Desde 2001, um dos itens a serem atendidos pelos municípios é o da realização de um “Inventário de Proteção ao Acervo Cultural (IPAC)”. Este, informa a deliberação normativa elaborada pelo próprio IEPHA: “é instrumento de orientação às ações do poder público e das comunidades para a implementação da política cultural local, bem como às ações de preservação nas esferas estadual e federal”. No próprio modelo de “Lei Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural”, disponibilizado pelo IEPHA aos municípios, aparece a concepção de inventário como “inventário de conhecimento”. No capítulo III, concernente aos instrumentos de proteção, o inventário é definido, no art. 7º como: “o procedimento administrativo pelo qual o poder público identifica e cadastra os bens culturais do Município, com o objetivo de subsidiar as ações administrativas e legais de preservação” (21).

Por outro lado, a partir do artigo inscrito por Paulo Ormindo na revista comemorativa do cinquentenário do IPHAN, em 1987, a concepção de inventário enquanto “suplementar” ao tombamento, aparece como possibilidade no Brasil. Esta se encontra presente, por exemplo, na legislação, em diversos níveis. Em nível municipal, como no 2º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental do município de Porto Alegre (Lei nº. 434 de 01 de dezembro de 1999) onde, no Capítulo IV, referente à “Qualificação Ambiental” o artigo 14 apresenta, junto à figura do tombamento, as figuras das edificações “Inventariadas de Estruturação ou de Compatibilização”, sendo que: “I - de Estruturação é aquela que por seus valores atribui identidade ao espaço, constituindo elemento significativo na estruturação da paisagem onde se localiza; II - de Compatibilização é aquela que expressa relação significativa com a de Estruturação e seu entorno, cuja volumetria e outros elementos de composição requerem tratamento especial”.

“Casa das Tias”, Andrelândia, 2009
Foto Fabiana Mendes Tavares

A este se junta, em nível estadual, o Decreto nº 10.039 de 03 de julho de 2006, do Governo da Bahia que, já em seu primeiro artigo do primeiro capítulo, aponta como um dos “institutos” de proteção do seu patrimônio cultural, o “Inventário para a Preservação”, que possui a mesma função preservadora do “Inventário Suplementar” francês, possuindo, inclusive, como no caso do Tombamento, os seus livros de inscrição específicos: os Livros “do Inventário para a Preservação dos Bens Imóveis e Conjuntos” e “do Inventário para a Preservação dos Bens Móveis e Coleções” (22).

Note-se que, toda vez que a figura do inventário aparece, em solo brasileiro, em alguma legislação com um significado diferente daquele tradicionalmente assumido, ela apresenta-se adjetivada (“de estruturação”, “de complementação”, “para a preservação”). Quando ela aparece com este significado já consolidado, aparece simplesmente denominada de “inventário”, ou então como “inventário de conhecimento”, “de identificação” ou “de proteção”.

Neste caso, nos provoca um certo incômodo quando, em 2007, a deputada Gláucia Brandão, apresenta como proposta de projeto de lei para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, uma regulamentação do “regime jurídico dos bens materiais inventariados como patrimônio cultural” na qual torna equivalente os bens inventariados aos bens tombados, como bem explicita, por exemplo, os seus artigos 4º (“os bens culturais inventariados somente poderão ser demolidos, destruídos, deteriorados, descaracterizados ou alterados mediante prévia análise e autorização, tecnicamente justificada, do órgão do patrimônio cultural competente”) e 5º. Após passar pela Comissão de Constituição e Justiça, o projeto teve a sua redação “amenizada”, mas manteve a sua disposição inicial, como se observa no art 3º que constitui-se em uma transcrição literal do art. XX da lei portuguesa de 2000, onde o inventário aparece como sinônimo do “inventário suplementar dos monumentos históricos” do Código Patrimonial francês.

Entendemos que, a partir do momento que, historicamente, o inventário se consolida, no Brasil, como aquilo que denominamos de “inventário de conhecimento ou de identificação” e que, nos últimos anos – principalmente a partir da própria atuação do poder judiciário – começa, concomitantemente, a ser utilizado como sinônimo daquilo que na França é denominado de “inventário suplementar” nos cabe, para não incorrermos em uma confusão que será bastante prejudicial para o desenvolvimento das políticas e das práticas de preservação do patrimônio em nosso país, partir para uma melhor denominação das ações hoje empreendidas com este nome. Penso que possuímos, neste caso, duas opções: 1) manter-se a denominação de inventário para aquela ação que já encontra-se há mais tempo consolidada e criando-se outra denominação para o citado “tombamento flexível”; ou 2) adjetivar, sempre, os dois tipos de inventário aqui apresentados, denominando-se aquele inventário que entendemos já consolidado como “inventário de conhecimento”, “inventário de identificação” ou “inventário de proteção” e o segundo tipo de “inventário para a preservação” (como faz a legislação baiana), ou “inventário de estruturação e de complementação” (como faz a gaúcha), ou algum outro termo que o diferencie do anterior. Só assim, poderemos contribuir para a resolução desta questão que, infelizmente, provoca um desacordo entre diversos e importantes agentes responsáveis pela preservação deste patrimônio.

Praça Coronel José Eugênio e Igreja Matriz de São Vicente Ferrer, São Vicente de Minas, 2009
Foto Fabiana Mendes Tavares


notas

[O presente artigo foi apresentado no XVI Encontro Regional da Associação Nacional de História (ANPUH) – Seção Minas Gerais tendo sido publicado em seus respectivos Anais, em julho de 2008]

1
MELOT, Michel. “Le grand inventaire”, Situ, n° 6, setembro, 2005; “Patrimoines en situation: l'Inventaire général entre histoire et prospective”. Disponível em: <www.revue.inventaire.culture.gouv.fr/insitu>

2
CHASTEL, André. “A invenção do inventário”, Revue de l'Art, n°. 87. Paris, CNRS, 1990. Tradução e notas de João B. Serra. Disponível em: <www.cidadeimaginaria.org/pc/ChastelInventaire.pdf>

3
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade / UNESP, 2001, p. 98-100.

4
Idem, p. 115.

5
CHASTEL, André. Op. cit., p. 3.

6
Idem, p. 4.

7
Apud FONSECA, Maria Cecília Londres. “A Noção de Referência Cultural nos Trabalhos de Inventário”. In: MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz Resende. Inventários de Identificação: um panorama da experiência brasileira. Rio de Janeiro, IPHAN, 1998, p. 29-30. Ver, também, a mesma citação em: MELOT, Michel. Op. cit., p. 1.

8
PERRIN, Jöel. “El inventario del patrimonio histórico en Francia”, In: INSTITUTO ANDALUZ DEL PATRIMONIO HISTÓRICO. Cuadernos: Catalogación del Patrimonio Histórico. Sevilha, Junta del Andalucia, 1996, p. 129.

9
MELOT, Michel. Op. cit., p. 3.

10
Neste sentido discordamos do Dr. Marcos Paulo de Souza Miranda, quando este, considera como inventário apenas aquele procedimento correlato com o do "Inventário suplementar dos monumentos históricos franceses". Ver. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. O inventário como instrumento constitucional de proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11164&p=2>.

11
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN. Rio de Janeiro, MinC / SPHAN / Pró-Memória, 1987, p. 51 e 52.

12
EQUIPE DE INVENTÁRIOS E PESQUISAS DO DID/IPHAN. “Diagnóstico dos Inventários de Identificação do IPHAN”, In: MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz Resende (org.). Op. cit., p. 14.

13
GAZZOLA, Pietro. L'inventario di protezione del patrimonio culturale. Settore dei beni immobili. IPCE. Scopo e norme di esecuzione. Verona, 1970. Ver: AZEVEDO, Paulo Ormindo. “Inventário como Instrumento de Proteção: A Experiência Pioneira do Ipac-Bahia”, In: MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz Resende (org.). Op. cit., p. 64.

14
A Confrontação A, reunião realizada em Barcelona, em 1965, foi o primeiro – de um total de cinco – dos encontros convocados pelo Conselho da Europa, para discutir-se a implementação da Recomendação 365, editada pelo citado Conselho, em 1963, para orientar a "defesa e valorização dos sítios e conjuntos históricos europeus". Idem, p. 61.

15
Idem, p. 65.

16
MOTTA, Lia; SILVA, Maria Beatriz Resende (org.). Op. cit., p. 7.

17
EQUIPE DE INVENTÁRIOS E PESQUISAS DO DID/IPHAN. Op. cit., p. 12.

18
CASTRIOTA, Leonardo Barci. “Inventários urbanos como instrumentos de conservação”, In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck; MALEQUE, Miria Roseira (org.). Espaço e cidade: conceitos e leituras. 2 ª ed. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2007

19
Idem, p. 74.

20
Idem, p. 75.

21
IEPHA-MG, Modelos ICMS Patrimônio Cultural. Disponível em: <http://www.iepha,mg.gov.br>

22
Decreto nº 10.039 de 03 de julho de 2006. Disponível em: <http://www.ipac.ba.gov.br/>

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