“O memorável é o que pode sonhar-se acerca do lugar. Uma vez neste lugar palimpsesto, a subjetividade se articula sobre a ausência que a estrutura como existência e a faz ‘estar ali’” (1)
Significados urbanos
As cidades reproduzem ediliciamente sua história; inscrevem no território a condição humana de seus habitantes; narram espacialmente a realidade social que contém. A imagem da cidade é uma construção coletiva definida pela cultura de uma determinada população e que, materialmente, a representa.
No caso brasileiro em geral, como em um mecanismo de ação e reação, as grandes cidades responderam ao objetivismo tecnocrático predominante na formulação da questão urbana, a serviço do nacional-desenvolvimentismo, com um crescimento descontrolado, excludente e desenraizador. A realidade social que habita esses ambientes urbanos não poderia ser senão a imagem do individualismo, da atomização e da massificação humanas, resultando num processo que cria “consumidores/usuários” em detrimento da valorização do indivíduo como construtor da cidadania e da cidade (2).
Esta realidade social perversa, que infelizmente não se limita às fronteiras nacionais, origina ambientes urbanos onde os espaços abertos e as massas construídas são definidos pela lógica privada sobreposta sobre os interesses da coletividade. O imediatismo e o privilégio a questões supostamente funcionais deram, e dão, as notas que compõem a desafinada sinfonia urbana onde o símbolo da cidade é público, porém não coletivo. Não é que a cidade já não tenha significado, senão que significa exatamente a exclusão a que a maior parte de seus habitantes está submetida. “O resultado foi a dissolução do caráter eminentemente comunitário da cidade. O organismo coletivo, tão sua característica, perdeu toda a sua antiga coesão social. [...] Esse desenvolvimento desordenado e chamado espontâneo é como um pedaço da natureza selvagem dos trópicos deixada a si mesmo. Em pouco tempo, o mato tudo invade. É que o ‘progresso’ do laissez faire é o inimigo do espírito comunitário” (3).
São Paulo representa, no âmbito brasileiro, o melhor (ou pior) exemplo dessa realidade urbana. Habitat de Penteado, onde cresceu e desenvolveu seu ideal de arquitetura, na metrópole paulistana arranha-céus e grandes avenidas aproveitam a escassez de espaços públicos generosos e de edifícios representativos para converterem-se na imagem mesma da cidade, uma grande massa amorfa e impessoal. “Como paisagem urbana, São Paulo é de uma tristeza absoluta” (4).
“O skyline de São Paulo, por exemplo, é um verdadeiro urbograma do poder. No espigão da avenida Paulista, elevam-se os arranha-céus do sistema bancário, de onde partem as linhas quebradas descendentes que vão até à periferia, onde escasseia o verde e se comprimem os barracos das favelas. A acrópole megapolitana paulista trava o diálogo do poder com suas co-irmãs espalhadas pelo mundo inteiro” (5).
A “Chicago Sul-Americana” rapidamente engoliu os símbolos de seu passado histórico e arquitetônico, voltando-lhe as costas para continuamente reconstruir o meio urbano à imagem e semelhança das forças hegemônicas do presente. A metrópole perdeu a capacidade de criar centros referenciais que estimulem a vida comunitária. Os símbolos urbanos que sobrevivem, fagocitados pela cidade, estão em desacordo com a nova escala e desaparecem em meio ao contexto urbano. Ícones da urbanidade paulistana, como o Teatro Municipal e o edifício Martinelli, ou a própria Catedral da Sé, por exemplo, exigem certo esforço para serem notados em meio à densidade material erigida em seu entorno. Sobrevivem como exemplares objetuais que, assim como o passado, perderam seu poder comunicativo e significativo.
A constatação de Lévi-Strauss de que as cidades do novo mundo “passam diretamente da vicissitude à decrepitude sem nunca parecer antigas” (6) capta o espírito da época e reconhece na ausência de vestígios do passado sua própria significação. A velocidade das mudanças na paisagem acompanha a agilidade do “progresso” e inaugura novas formas de percepção espacial, caracterizadas pela constante perda de referências perenes na trama da cidade. “Talvez as cidades se deteriorem ao mesmo tempo em que os procedimentos que as organizaram” (7).
(Re) valorizar o monumento
As cidades devem ter o poder de criar geradores de significados que vinculem sentimentalmente a população, estabelecendo um sentimento de pertinência e identificação entre o humano e o urbano. Tais significações provêm de caminhos diversos e complexos, englobando dimensões histórico-culturais diversas, como a arte, passando pela oralidade, a música e a literatura, até a arquitetura. Essa convergência de fatores característicos e singulares de cada aglomeração humana cria verdadeiros símbolos, que configuram a imagem da urbanidade e que reúnem em torno de si os significados da cidade. “O grego symbolon aponta para acepções semelhantes às do uso corrente atual: signo, marca, alegoria, convenção, tratado, conjectura. Mas o étimo symbol recupera ideias e atos mais primitivos, genéticos: confluência, reunião, embate, trança (em cordoaria), local de encontro ou reunião de rebanhos” (8).
O símbolo, ao requerer a unidade social através de um significado comum, oferece às coletividades determinadas características próprias que determinam o espírito que habita e dá sentido ao lugar que compartilham. Este genius loci cria o contexto singular que transforma a cidade em lugar familiar para seu habitante.
No cenário urbano os monumentos são potentes comunicadores e geradores referenciais. Marcam a paisagem da cidade e, em muitos casos, a definem. Esta capacidade expressiva relaciona-se ao forte poder imagético e posicionamento excepcional dos artefatos na trama urbana, convertendo-se em elementos significantes ao ressemantizar a forma urbana circundante, da qual passa a ocupar o lugar central.
O sentido de recordação que encerra o termo latino monumentum permite estender o denotativo a toda e qualquer obra artística ou arquitetônica que contenha e emita significado ao local que a abriga, independentemente de seu objetivo funcional originário. Os monumentos realizam a conexão entre o presente e o passado; sempre buscam a evocação de algo pretérito, algo que codifique simbolicamente a alma comunitária, ainda que muitas vezes apontem em direção ao futuro.
A realidade metropolitana em geral manifesta a ausência simbólica na maior parte de seus edifícios, através de uma dinâmica autodestrutiva que termina por matar os raros espaços e obras socialmente representativas. “Se perdemos a capacidade de criar monumentos e de solenizar as festas em comum, se esquecemos a verdadeira significação dos centros comunais, tudo isso se encontra estreitamente relacionado com o fato de que chegou a considerar-se a experiência sentimental como algo não essencial, como uma circunstância puramente privada. O estado das cidades de hoje o expressa com voz bem clara” (9).
O esvaziamento do sentido comunitário na metrópole atual desata os laços que unem a imagem da cidade ao imaginário do cidadão; desestimula a criação de novos símbolos comuns; enfraquece a mensagem dos já existentes. Os dispositivos simbólicos que articulam o discurso da cidade e conformam a percepção sobre ela se desagregam, se confundem, e encontram na cidade “sem rosto” um novo ponto a partir do qual reorganizar-se. A característica cambiante, aclamada como nova imagem da urbe moderna e pragmática não logra, contudo, estabelecer a desejada relação de reconhecimento e afetividade do cidadão para com a cidade.
“Dos edifícios destinados à sua sensibilidade social e à sua vida comunal, o povo anseia algo mais que uma mera satisfação funcional. Deseja que neles se tenha em conta sua ânsia de monumentalidade, de alegria e de íntima exaltação” (10).
Em meio ao cenário urbano instrumentalizado e artificioso, Penteado propõe edifícios cujas formas funcionam como definidores de lugares psicológicos, obras de arte pública que sintetizam um objetivo comum. Suas obras desbordam exigências programáticas, unificam sob uma nova hierarquia o que se encontrava disperso e vão ao encontro da necessidade de celebrar a vida comunitária, plasmada em arquiteturas que contém a escala da multidão. Em sua obra, a arquitetura é proporcional ao tamanho da cidade, recupera o valor do monumento na trama urbana e unifica as dimensões contemplativa e funcional através de uma monumentalidade que recusa a formalidade e conduz à reunião de maneira espontânea. “A obra de arte pública vale por seu conteúdo. Erigir no meio de uma comunidade uma obra de arte é como a criação de uma simples fé comum” (11).
Genius Loci
A vitória conquistada sobre os americanos na batalha deflagrada em 1961 na pequena Playa Girón (12), localizada na Baía dos Porcos, consolidou a implantação da Revolução Cubana de 1959, fato extremamente presente no imaginário libertário da década de 60 “como uma promessa de socialismo mulato nos trópicos, sem as sombras cinzentas da Europa do Leste” (13). O concurso convocado em 1962 para o monumento comemorativo à vitória inaugurou a construção de emblemas que pretendiam ilustrar a nova etapa da história cubana.
O caráter requerido pelo certame e sua localização permitia uma obra isolada na paisagem e sugeria uma forma escultórica e monumental. A solução se constitui em um verdadeiro desafio técnico, uma escultura feita com vigas em concreto de até 90 metros de balanço, dominando uma praça para trinta mil pessoas. Esse peculiar encontro da arquitetura com o entorno, do engenho humano com a natureza, revela a poética da obra e reafirma uma fonte de inspiração constante na obra de Penteado. A força expressiva do monumento emerge ao impor-se grandiosamente na paisagem, porém de maneira a reverenciá-la através de sua composição formal. A grande “árvore” artificial atesta o poder da técnica frente ao natural, construindo através de suas próprias referências um artefato que reorganiza o horizonte e a própria natureza local.
O grande monumento configura um marco técnico e poético que requer a participação popular como confirmadora do ideal arquitetônico. Uma vez mais, a multidão anima o conceito e vivifica a arquitetura por meio de um desenho sempre cambiante, configurado pela presença do povo na praça. A união da técnica com a presença humana atesta a humanidade contida na arquitetura e denota um forte caráter urbano presente no desenho e na intenção do projeto. Um traço no solo define a implantação do monumento e repete o gesto inaugural, de tomada de posse, executado em Brasília pouco tempo antes. A marca do homem se inscreve no território indicando um novo local que passa a dominar.
O discurso didático da técnica se afirma na consideração da mesma como o próprio monumento, reinterpreta e revaloriza a experiência anterior da arquitetura brasileira em consonância com os “ensaios” de transformação social que conformam a alma da arquitetura paulista. Toda a grandiosidade e ousadia que se apresenta na obra, reforçadas pela exposição da lógica estrutural, destacam a relevância da técnica no desenho de uma sociabilidade renovada.
O motivo da obra baseia-se no triunfo, materializa o “grito de vitória de uma multidão, repentinamente congelado no espaço” (14) e refuta referenciar a guerra, da qual decide enterrar as armas conquistadas do inimigo no solo, alimentando as “raízes” que estruturam o desenvolvimento da escultura que brota do chão. A forma se abre à diversidade de possíveis interpretações, sugeridas pela dimensão figurativa da obra, conformando um monumento que instiga a imaginação do observador. “O signo significa, mas, convertido em forma, aspira a significar-se, a criar-se uma significação nova, a buscar-se um conteúdo” (15).
A escala arquitetônica responde às características dimensionais sugeridas pela paisagem e pela necessidade de abrigar um grande número de pessoas. A movimentação e a irregularidade da ocupação humana desenhariam o espaço, redefinido diversas vezes ao longo do tempo, de acordo com a presença do povo na praça. Mais além de uma dimensão, a escala monumental é determinada por essa relação estabelecida entre o humano, o natural e o construído, aliada ao desejo de criar um símbolo imagética e imaginariamente forte; é resultado da interpretação somada à intenção; reflete a materialização da “ideia geral” do arquiteto (16).
A concepção global que define a proposta cria um monumento cuja força de seu poder icônico está atrelada à vigência de sua metáfora. “De longe é paisagem. De perto é monumento. A praça é o povo” (17).
O poder icônico que possuem alguns monumentos ou elementos da paisagem podem marcar profundamente o horizonte das cidades, a ponto de converterem-se em sua própria imagem. Tókio, a metrópole mais populosa do planeta, é uma dessas aglomerações urbanas monstruosas, sem feição definida ou diretamente reconhecível por seus habitantes e visitantes. À falta de uma imagem que a singularize, a capital japonesa compartilha com a paulista um horizonte urbano infinito, sem pontos focais estruturadores, dominado pela verticalidade das torres que, devido à intensa repetição, conformam um grande amálgama horizontal.
A proposta da equipe de Fábio Penteado para o concurso internacional do Forum de Tókio (18), imenso centro cívico e cultural de programa complexo, apostou por um edifício-monumento cuja “a intenção era mesmo marcar a paisagem de Tóquio, com o mesmo impacto que a Torre Eiffel entrou na paisagem de Paris, na virada do século XX” (19). Ideal adequado à proposta do concurso de expor o dinamismo japonês e a imagem do país na entrada do século XXI.
A relação do edifício com o entorno conturbado, composto por edifícios de diversas escalas, vias de alto tráfego e linhas férreas, se estabelece por meio de um contraste que destaca sua presença como um elemento de exceção localizado na densa trama urbana. Sua opção pela excepcionalidade permite a conformação de um elemento escultural icônico, dinâmico e não silencioso, que se deixa contemplar ao recuar-se dos limites do terreno. Esse intenso diálogo entre o edifício e a cidade propõe um novo símbolo urbano destinado a transformar tanto o contexto adjacente como construir uma nova imagem de Tóquio.
Grandes formas esféricas de aço e vidro, sustentadas no ar por hastes de concreto e unificadas por uma grande ponte central configuram a grande escultura que, ao agrupá-las na composição, sugere interpretações diversas e evocações múltiplas. Novamente a natureza é recriada e monumentalizada através da realização técnica, ao construir um arvoredo artificial que protege no solo uma topografia também manipulada, refeita. Igualmente, a formalização remete à lembrança das tradicionais lanternas japonesas – especialmente quando se imagina o efeito da luz interna escapando pelos vidros entre os anéis que conformam as esferas – ou ainda sugere ideias futuristas ligadas ao universo tecnológico-espacial (20). Outras interpretações e sentimentos, tão variados quanto diverso é o olhar humano, são permitidos e bem-vindos pela obra.
A aproximação do transeunte ao colossal artefato ocorre de maneira espontânea através do amplo espaço aberto resguardado no nível do solo. Este grande recinto público, verdadeira clareira urbana, valoriza o caráter monumental e dinâmico das formas, mutantes de acordo com a movimentação do caminhante. Na realidade, a presença desta grande praça direciona às entradas do edifício de maneira natural e unifica visualmente os diversos níveis e elementos componentes do projeto, através de uma grande cavidade central que ilumina os subsolos e cria outro ponto de interesse ao nível do observador. A praça realiza a transição entre as escalas monumental e humana sem oprimir o indivíduo nem perder a grandiosidade representativa. A monumentalidade não cerimoniosa produz naturalidade e potencializa a capacidade de fazer marcas no tempo.
A proposta distribui o extenso programa entre os volumes esféricos e os subsolos, conectados por elevadores e escadas rolantes, reservando ao nível térreo o papel de intermediador entre as duas zonas. A abertura espacial prevista pela cavidade dos subsolos e a visualização proporcionada pelo fechamento translúcido nas esferas oferece uma conexão intensa entre as partes componentes do conjunto e do edifício com a cidade.
O Fórum de Tóquio se resume na vontade de dotar a metrópole de um espaço urbano pleno de significados, que reúna funções representativas e agregadoras para converter-se num ponto de referência e encontro das multidões da cidade. “Não se constitui num mero reflexo daquilo que existe na realidade, nem se reduz a um signo ou conceito; remete-se a uma síntese, que permite à cidade contar seu passado, prever seu futuro e narrar sua atualidade” (21).
A paisagem urbana paulistana é conformada por uma multidão de torres cuja presença é a materialização de um processo que rapidamente transformou o horizonte da cidade, eliminando símbolos passados, recriando novas significações e impondo consequências diversas no contexto da urbe. Resultado da voraz especulação imobiliária que acabou por configurar a dinâmica urbana, a infinitude de edifícios verticais é o testemunho onde se pode “ler” a realidade da metrópole. “A multiplicação das torres gera uma cidade de objeto único que se concentra, se solidifica e cria uma rede maciça que obstrui os espaços amplos e ‘fagocita’ os objetos e espaços verticais. [...] Assim, sucessivamente, o alcance visual é realizado e destruído, e a cidade, crescendo em todos os eixos, transforma-se numa segunda crosta sobre a crosta terrestre” (22).
O Vale do Anhangabaú, como ponto originário do centro e da própria São Paulo, é um dos espaços mais ilustrativos da atuação dessa lógica perversa. De local privilegiado e elegante no passado a amontoado de construções decadentes na atualidade, sofreu o ataque imobiliário que o desfigurou e depois o abandonou. Suas edificações mais imponentes, como os já comentados Edifício Martinelli, o Teatro Municipal ou a sede da Ligth submergiram em meio à massa edificada de péssima qualidade que se ergueu ao seu redor; o belo parque que ocupava o vale deu lugar à grandes avenidas que, posteriormente, foram enterradas para se estender o calçadão atual.
A Torre do Anhangabaú, “proposta-provocação” (23), se vale da necessidade de transformação radical da região central e do elemento constitutivo de sua paisagem e de sua história para construir um novo difusor de sentido no centro e na metrópole. O programa reúne um centro comercial, hotel e zona de escritórios, todos de grande capacidade, contidos em uma torre de 68 andares plasmada em formas ondulantes e sugestivas, conectada através do subsolo de estacionamentos a diversos pontos importantes da região central. Se a extensão do programa de necessidades praticamente conduz à solução vertical, por outro lado Penteado assume a verticalidade de maneira radical e eloquente, encontrando nela o mote que ressemantiza o sentido das torres preexistentes no entorno.
Como ponto focal privilegiado, os campanários das igrejas do passado tinham o poder de organizar a paisagem, de forma a comunicar à comunidade seu centro preferente de reunião. Como a praça defronte ao templo, o Vale do Anhangabaú receberia um novo elemento, cuja presença resgataria seu valor simbólico na história e no tecido da cidade. O monumental artefato converge olhares ao impor-se como novo ponto de referência; irradia sentido ao retomar e redefinir a função do arranha-céu no horizonte metropolitano, esgotado de simbolismo ao repetir-se infinitamente.
Imagem eleita como materialização do progresso e da modernidade, o edifício em altura representa o triunfo da técnica e se constitui no emblema dos novos modos de vida humano. Se a repetição das torres, reconhecida erroneamente como disseminação do progresso, truncou e homogeneizou a paisagem urbana, também é verdade que sua realidade factual a conformou e transformou-se em sua imagem fundamental, como provam os edifícios-símbolo da Avenida Paulista. Através da excepcionalidade que a converte em escultura, a Torre do Anhangabaú retoma um argumento desgastado e homenageia a essência da metrópole.
As formas sinuosas que materializam o objeto emergem imponentes sobre o perfil caótico da cidade, que passa a polarizar e controlar. Transcendendo os limites funcionais, Penteado cria uma grande escultura urbana de 300 metros de altura, cuja presença vertical impõe uma nova ordem ao entorno ao mesmo tempo em que faz uma concessão ao pedestre, dissolvendo-se gentilmente em seu encontro com o solo. O resultado formal é caracterizado por um elemento cuja expressividade alimenta, tanto como em muitas outras obras do arquiteto, a imaginação do espectador que pode reconhecer na dimensão figurativa de seu perfil uma infinidade de referências.
As evocações que o edifício-monumento pode despertar são potencializadas pela adição ao prédio de uma enorme esfera metálica de 30 metros de diâmetro, dotada de recursos audiovisuais como meio de difusão informativa. Esse artifício, que reforça a dimensão figurativa do objeto, resgata o papel originário da torre como elemento comunicador no seio da comunidade, agora adaptada à escala metropolitana. As torres modernas receberam recursos comunicativos que coroam o topo de seus corpos, porém perderam, em sua maioria, a capacidade de transmissão de significados. “É corrente considerar-se a arquitetura como o primeiro meio de comunicação de massas. Assim o seu caráter irradiador de história e ao mesmo tempo distribuidor da hierarquia espacial está nesses marcos de referência” (24).
A cidade policêntrica e mutante na qual São Paulo se converteu sintetizou na figura emblemática dos edifícios em altura a lógica construção-destruição que a caracteriza. Imagem preferente da metrópole, perdem grande parte de sua força expressiva como objeto icônico ao perderem-se no labirinto conformado por eles próprios. A Torre do Anhangabaú erige um tour de force regional, revitaliza o centro e renova o sentido da torre e seu papel na constituição do contexto urbano; atualiza a mensagem do arranha-céu como um verdadeiro “totem” (25) da comunidade metropolitana.
Através de uma formalização diferente, muitas vezes inesperada, a arquitetura de Fábio Penteado quer criar os pontos de referência que a tristeza lacônica da paisagem da cidade não oferece. Em um exercício de escala adequado ao lugar, seja ele a imensidão do horizonte , natural ou metropolitano, ou o recolhimento de um bairro, seus projetos reordenam o entorno por meio de formas expressivas, invariavelmente figurativas, que lutam contra a inexpressividade do amálgama cinzento da cidade. Essas obras aceitam referências variadas, fruto da experiência diversa e da abertura do caráter do arquiteto. Nelas convivem, ou se conjugam, tanto a beleza rigorosa e técnica apreciada pelo grupo paulista quanto a liberdade formal e expressiva da arquitetura carioca, especialmente da figura de Oscar Niemeyer, além de abarcar a diversidade propositiva e formal do cenário internacional da época. A dimensão comemorativa, monumental, da arquitetura é revalorizada em seu trabalho e pretende funcionar como aglutinadora social frente à atomização e impessoalidade que a dureza urbana impõe aos habitantes da metrópole.
notas
1
CERTEAU, Michel de. La Invención de lo cotidiano. I- Artes de hacer. México, Universidad Iberoamericana, 2000, p. 121. Tradução livre do autor.
2
“Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais dezenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da buscada ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário”. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7 ed. São Paulo, Edusp, 2007, p. 25.
3
PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 298.
4
PENTEADO, Fábio. “Entrevista concedida a Adilson Melendez e Fernando Serapião”, Projetodesign, n. 290, abril, 2004.
5
PIGNATARI, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. 3 ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, p. 178-179.
6
LÈVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Barcelona, Paidós Ibérica, 1988, p. 97. Tradução livre do autor.
7
CERTEAU, Michel de. Op. cit., p. 108. Tradução livre do autor.
8
PIGNATARI, Décio. Op. cit., p. 160.
9
GIEDION, Sigfried. Arquitectura y comunidad. Buenos Aires, Nueva VIsión, 1963, p. 48. Tradução livre do autor.
10
Idem, p. 51. Tradução livre do autor. Refere-se ao 7º ponto incluído originalmente nos “Nove pontos sobre a monumentalidade”, desenvolvidos por Giedion em conjunto com J.L. Sert e Fernand Lèger, 1943.
11
PEDROSA, Mário, Op. Cit., p. 401.
12
O projeto foi classificado em 2º lugar. Segundo Penteado, a proposta era a favorita do júri e do público, mas não venceu por não atender a algumas exigências requeridas pelo edital.
13
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 316.
14
Frase atribuída a um crítico da revista japonesa Konkusai Kentiku – International Review of Architecture, junho, 1967. In: PENTEADO, Fábio. Ensaios de arquitetura. São Paulo, Empresa das Artes, 1998, p. 42.
15
FOCILLON, Henri. La vida de las formas y elogio de la mano. Madrid, Xarait, 1983, p. 13. Tradução livre do autor.
16
“En efecto, la ‘escala’ no constituye sólo una dimensión, sino también una técnica, un esquema de implantación, una interpretación; así debe entenderse, en sí misma, como una relación que incide tanto en el tejido existente como en el futuro, como una intervención parcial que presupone, sin embargo, una determinada idea general, expresada con instrumentos arquitectónicos”. AYMONINO, Carlo. El significado de las ciudades. Madrid, Hermann Blume, 1981, p. 38.
17
Frases que sintetizam a obra, escritas na memória do projeto.
18
Finalmente não apresentada por questões de prazo, porém finalizada posteriormente pela equipe.
19
SAMPEDRO, César. Apud, PENTEADO, Fábio. Op. cit., p.49.
20
Referências relacionadas à figuratividade da obra descritas no citado livro de Penteado Ensaios de arquitetura, com textos de Mônica Junqueira de Camargo.
21
LIMENA, Maria M. Cavalcanti. “Avenida Paulista: imagens da metrópole”, In: São Paulo: Signos e Personagens. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, 1996, p. 44.
22
ALEXANDRE, Isabel M. M.; BENTE, Ricard Hugh. “A poética da verticalidade”, In: São Paulo: Signos e Personagens, Op. cit, p. 18.
23
Elaborada a pedido de Luís Antônio Pompéia, a Torre do Anhangabaú é uma resposta e uma sugestão ao plano da prefeitura na época de elevar o potencial construtivo da região para alavancar o processo de renovação. O projeto reúne em um só edifício os 150.000 metros quadrados de construção máxima por quadra permitida pelo plano, de forma a resultar em um empreendimento imobiliário de grande impacto e proporções para o centro. O projeto foi premiado pela VII Trienal Mundial de Arquitetura de Sófia, em 1994.
24
ALEXANDRE, Isabel M. M.; BENTE, Ricard Hugh. Op. cit., p. 16.
25
Este objeto central na mitologia de muitas tribos, especialmente na costa pacífica da América do Norte, é definido em dicionários e enciclopédias como um ser ou animal sobrenatural, que nas mitologias de algumas culturas se toma como emblema da tribo ou do indivíduo, podendo incluir uma diversidade de atributos e significados. Pode ser interpretado como princípio ou origem de determinado grupo humano, que se crê descendente desse totem.
sobre o autor
Ivo Renato Giroto é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Pós-modernidade: composição e linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Master Oficial em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC). Doutorando em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC)