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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Sucessivos ciclos de imigração nos processos de ocupação do território na região central do estado Rio Grande do Sul constituíram pequenas propriedades rurais nucleadas por cidades, singularizando paisagens rurais e urbanas, inscritas na memória coletiva.

english
Successive cycles of immigration in the processes of occupation of the territory in the central region of Rio Grande do Sul, constituted by small rural properties nucleated cities, singling rural and urban landscapes, inscribed in the collective memory.

español
Ciclos sucesivos de la inmigración en los procesos de ocupación en la región central de Río Grande do Sul, constituido por pequeñas propiedades rurales nucleadas ciudades, paisajes rurales y urbanos singularización, inscrito en la memoria colectiva.


how to quote

FIGUEIREDO, Lauro César. Paisagens e construção de cidades a partir da imigração no Rio Grande do Sul. Patrimônio, preservação e memória. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 182.04, Vitruvius, jul. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.182/5619>.

Faxinal Soturno, edificação das famílias Pigatto e Santini datada entre 1900/1940
Foto divulgação [Arquivo do autor]

O Estado do Rio Grande do Sul, na sua porção central (1), apresenta, em várias de suas regiões ocupadas por imigrantes, uma paisagem que o singulariza. Tanto rurais quanto urbanas, essas paisagens apresentam especificidades que, até hoje, são sensíveis para quem está familiarizado com outras regiões brasileiras.

O processo imigratório de europeus para o estado do Rio Grande do Sul é um indicador da formação do território gaúcho. O estabelecimento das colônias de imigração de alemães e italianos permitiu a formação de lugares distintos, paisagens culturalmente instituídas, repletas de bens materiais e simbólicos que denotam a identidade dos lugares, bem como representam relevante elemento da história gaúcha.

A religião, atrelada ao isolamento das colônias italianas no sul do Brasil, contribuiu para o aprofundamento e a valorização cultural nas regiões de ocupação italiana. É inegável que os italianos edificaram não somente uma história de desenvolvimento econômico interno brasileiro, mas contribuíram com seus costumes e afazeres para a formação e o arranjo da cultura do povo brasileiro e, sobretudo, gaúcho.

No período atual, este espaço representa um híbrido entre a cultura dos antepassados, reportada cotidianamente, e a incorporação de elementos simbólicos e materiais da cultura urbana, artificiais ao lugar, que contribuem na constituição da identidade multicultural (2).

Entretanto, uma urbanização rápida e descontrolada pode, frequentemente, derivar em fragmentação social e espacial e numa drástica degradação da qualidade do ambiente. O patrimônio cultural, incluindo os seus artefatos tangíveis e intangíveis, constitui um recurso essencial na melhoria da habitabilidade dessas áreas, gerando o desenvolvimento econômico e a coesão social num ambiente global em constante transformação.

Reconhecer a natureza dinâmica das cidades e o seu entorno é perceber que o desenvolvimento rápido e, muitas vezes, desordenado vem transformando áreas urbanas e rurais e suas paisagens, provocando a fragmentação e a deterioração do patrimônio cultural com profundo impacto nos valores das comunidades.

Paisagem cultural e memória(s)

O termo “paisagem cultural” vai abarcar uma diversidade de manifestações dos tipos de interações entre a humanidade e seu meio natural: de jardins projetados a paisagens urbanas, passando por campos agrícolas, rotas de peregrinação, entre outras. A amplitude do termo e a sua delimitação ainda um tanto indefinida e que leva á controvérsias de toda natureza, como mostram vários estudiosos, apontam que, apesar do renascimento que esse termo vive hoje, ele ainda é marcado por um conhecimento ainda em construção por parte até de especialistas, e, da mesma forma por uma enorme polissemia (3).

Ao mesmo tempo em que se mostra altamente complexa e ambígua, essa idéia começa a espalhar-se, penetrando também nas políticas de patrimônio em outros níveis – nacional, regional e local, marcando uma série de iniciativas ao redor do mundo.

Entre outras, a geografia foi à ciência humana que se interessou pelo estudo da paisagem, e, dela, surgiram duas correntes teóricas: a Geografia Cultural Tradicional, que analisa a paisagem através de sua morfologia, e a Nova Geografia Cultural, que interpreta a paisagem com base em sua simbologia.

Na década de 1980, surgiram os teóricos da Nova Geografia Cultural que rebatem algumas idéias de Sauer e complementam outras. Cosgrove e Vital de La Blanche são os principais representantes desta nova corrente teórica. Para estes geógrafos, a paisagem é composta tanto pela morfologia de seus elementos (já estudada pela escola de Berkeley) como pela carga simbólica (imaterialidade) atribuída a ela por seus diferentes observadores, de forma que, a paisagem não é única, mas múltipla, podendo ser interpretada de inúmeras de formas diferentes. Com base nos conceitos desenvolvidos por esta última escola é possível afirmar que a paisagem é sempre interpretada e reconhecida a partir de aportes culturais e atribuições simbólicas conferidas a ela por seu observador. Por esta razão o entendimento e a delimitação de uma paisagem cultural não devem se restringir a métodos de leitura visual, mas abarcar também os aspectos simbólicos e históricos da paisagem. “A introdução da componente subjetiva na análise da paisagem tem, no entanto, sido pouco testada, talvez por exigir a combinação complexa de metodologias diversas e o desenvolvimento de novos instrumentos de avaliação” (4).

Apesar de serem correntes opostas, ambas defendem que a paisagem é fruto da interação do homem com a natureza. Sauer, ao consolidar a noção de paisagem como conceito científico, é considerado o fundador da geografia cultural norte-americana. Em 1925, Sauer deu início à investigação da paisagem como resultado da cultura humana. Em seu estudo “A Morfologia da Paisagem”, o autor apresenta uma análise da paisagem em suas formas materiais, além de relacionar as formas naturais com os fatos culturais (5). Tomando por base os conceitos desenvolvidos por Schluter e Passarge, Sauer passa a incorporar, na análise da paisagem, o fator tempo, afirmando que o mesmo está em constante processo de transformação.

Segundo Gosgrove, a importância do estudo da paisagem está no fato de que ela nos permite perceber o sentido do mundo no qual estamos, “defende a paisagem como marca e como matriz, marca porque expressa uma civilização, mas também é matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação, ou seja, da cultura, os quais canalizam a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza” (6). Esta abordagem realizada a respeito dos conceitos da Geografia Cultural é fundamental, pois tais reflexões estão presentes nos estudos ligados à preservação do patrimônio cultural e da paisagem.

Buscando uma visão integrada entre o ser humano e a natureza, a idéia de paisagem cultural iniciou na década de 1980 e, já em 1992, especialistas reuniram-se na França, a convite do ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios e do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO – para pensar e discutir como a idéia de paisagem cultural poderia ser incluída na lista do Patrimônio Mundial, visando à valorização da relação entre o ser humano e o meio ambiente, entre o cultural e o natural. Com isso, a UNESCO passou a adotar três categorias diferentes de paisagem para serem inscritas como patrimônio: a) Paisagem claramente definida. São classificados os parques e jardins, pois são as paisagens desenhadas e criadas intencionalmente. b) Paisagem evoluída organicamente. Paisagens que resultam de um imperativo inicial social, econômico, administrativo e/ou religioso e desenvolveu a sua forma atual através da associação com o seu meio natural e em resposta ao mesmo. c) Paisagem cultural associativa. Têm seu valor dado em função das associações que são feitas acerca delas, mesmo que não haja manifestações materiais da vida humana (7).

De sua proposição e evolução nas discussões geográficas, o conceito de Paisagem Cultural acabou sendo absorvido pela UNESCO em 1992, para representar bens patrimoniais de relevância internacional, em que se manifestava uma influência clara e mútua entre ação humana e meio ambiente. Passava-se, assim, de uma concepção de patrimônio bipartida entre bem natural e bem cultural, para uma noção de patrimônio misto, integrado e interdependente, num processo lento da consideração do valor cultural de paisagens naturais (8).

O conceito de paisagem cultural pode servir para o reconhecimento de estruturas ligadas a sociedades tradicionais, historicamente marginalizadas na atribuição de valor como patrimônio mundial (9).

No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, através da Portaria nº 127, de 30 de abril de 2009, estabeleceu a chancela da Paisagem Cultural Brasileira como “uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do ser humano com o meio natural, em que a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (10).

A criação do novo conceito de bem patrimonial no Brasil apropriou-se da experiência da UNESCO-ICOMOS que, desde 1992, incluiu a Paisagem Cultural como um bem patrimonial, dentre os demais na Lista do Patrimônio Mundial. De acordo com o ICOMOS (2009), a inscrição de Paisagem Cultural como bem se justifica por ser ilustrativa da trajetória histórica da sociedade humana e seus assentamentos sob a influência de contingências físicas e/ou oportunidades apresentadas pelo ambiente natural, bem como pelas sucessivas forças social, econômica e cultural, que interferem nelas. São valorizados, assim, a interação homem e meio ambiente e a continuidade dos valores e funções que lhe são associados, assim como os valores afetivos estabelecidos com o território (11).

Com esses avanços, nos últimos anos, a geografia começa a institucionalizar um rico campo a ser explorado na área do patrimônio e tem trazido significativos avanços conceituais e metodológicos para a área. De fato, essa idéia não só indica as interações significativas entre o homem e o meio natural, mas também combinam de forma espantosa, os aspectos materiais e imateriais do patrimônio, muitas vezes pensados separadamente. Com isso, recoloca-se, de certa forma, o próprio campo do patrimônio cultural, abrindo-se uma perspectiva contemporânea para, ao lado das novas contribuições, pensar de forma mais integrada, diversas idéias tradicionais do campo da preservação.

Quarta Colônia de Imigração Italiana

Importante destacar que, nesta discussão, não se pretendeu fazer uma diferenciação entre espaço urbano e rural da região em estudo, mas sim uma abordagem que unisse os seus papéis. Para tanto, o espaço rural é visto como espaço de modos de vida e produção agrícola, aliado, às pequenas cidades que, nesse caso, estão localizadas ainda em área de economia agrícola, desempenhando papéis urbanos bastante restritos. Os espaços urbanos e os espaços agrícolas, as regiões agrícolas (e não rurais) contêm cidades; as regiões urbanas, por sua vez, contêm atividades rurais. Nesse sentido, haveria então, áreas agrícolas contendo cidades adaptadas às suas demandas e áreas rurais adaptadas às demandas urbanas (12).

A cidade, acima de tudo, é o lugar da vida, dos modos de vida cotidiano, sendo que, nas pequenas cidades, a presença da urbanidade ainda persiste. Esta é uma das características que definem a pequena cidade de modo mais contundente, apesar de que, no caso da Quarta Colônia de Imigração Italiana, ela possui características fortemente rurais de modos de vida. Claro que, pelas necessidades de comunicação e informação, foram incorporados novos elementos da modernidade urbana que podem ser ilustrados pela presença de internet, celulares, TV a cabo, entre outros indicadores globalizantes. A urbanidade, ali, tem um papel de luta e manifestações políticas, atualmente, vivenciadas no processo de planejamento e de políticas públicas, caso do Plano Diretor Ambiental realizado em 2010.

Assim, cada ponto do espaço é um lugar em potencial, conforme as seletividades do processo produtivo. Para essa região, isso se reflete na medida em que são produzidas as políticas de desenvolvimento dotadas de suas vocações locais. Dessa forma, os esforços ao desenvolvimento dessa região requerem a representação de sua identidade local/regional (13). Tais políticas visam a contemplar as potencialidades de cada município, como a diversidade cultural, o patrimônio histórico e a paisagem cultural, aliadas ao turismo local. Ainda sobre o aspecto cultural, a região possui diversas festividades e eventos religiosos, de culinária, lazer e diversão, atrelados ao rico patrimônio histórico e arquitetônico a ser explorado, inclusive, pelo setor turístico.

Assim, posto, a questão cultural é um dos importantes pilares do desenvolvimento socioeconômico regional. É um dos projetos mais incisivos na relação com o desenvolvimento, possui políticas públicas, presenciando um “novo rural”, via integração das formas de vida e de trabalho urbanas.

Colonização e formação da Quarta Colônia de Imigração Italiana

No Rio Grande do Sul, a imigração iniciou a partir de 1824, com a chegada de imigrantes alemães. Estes colonos ocuparam as margens dos grandes rios até o planalto. Entretanto, diferentemente do que ocorreu em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, o objetivo da colonização, na região sul do Brasil, além de substituir a mão-de-obra escrava, também visava a povoar e salvaguardar as fronteiras da região sulina (14).

A imigração italiana ocorreu no último quartel do século 19, quando iniciou a chegada dos colonos italianos no Rio Grande do Sul (15). Estes se estabeleceram na zona da mata, na região dos campos de cima da Serra e na depressão central.

No ano de 1876, os colonos ocuparam o Campo dos Bugres, que recebeu o nome de Fundos de Nova Palmira. Na metade de 1877, o nome foi alterado para Colônia Caxias, a terceira colônia de imigração. Todas as três primeiras colônias eram situadas na denominada Serra Gaúcha.

A colonização italiana no Rio Grande do Sul teve, por razões, a ocupação das terras sulinas que eram alvos frequentes de disputas com os espanhóis, além de fomentar a economia interna, através da produção agrícola. A partir de 1870, o governo brasileiro promoveu a vinda de imigrantes italianos ao estado do Rio Grande do Sul:

"houve dois processos principais que provocaram interconectados a colonização italiana no Rio Grande do Sul e simultaneamente a constituição da Colônia Silveira Martins: a (geo) política e a expansão do capitalismo mercantil ou o movimento de formação de mercado interno brasileiro acompanhado pela produção da força do trabalho e do mercado de trabalho livre" (16).

Os primeiros italianos que desembarcaram no território rio-grandense receberam lotes de terras na encosta da Serra Geral, fundando, assim, a primeira colônia italiana no estado gaúcho, denominada de Conde d’ Eu, atual município de Garibaldi; a segunda colônia foi fundada próxima a primeira com o nome de Dona Isabel, atual município de Bento Gonçalves.

As colônias Conde d’ Eu e Dona Isabel foram fundadas em 1877, ambas cultivavam milho, fumo, batata, mandioca, trigo e centeio. A vinicultura também marcou a economia destas colônias, afinal o colono italiano, após as refeições, tinha como costume beber vinho, de forma que a produção e a fabricação do vinho para consumo próprio logo achou mercado consumidor no Brasil, representando uma fonte de renda ao colono italiano. Atualmente, a referida região ainda é conhecida pelas vinícolas e pela exportação de vinho e pelo turismo.

À medida que novos imigrantes dirigiam-se para o estado, novas colônias eram fundadas, como é o caso da formação da terceira colônia italiana denominada Nova Palmira ou Colônia Caxias, atual Caxias do Sul. A colônia Nova Palmira, situada nos Campos de Cima da Serra, foi ocupada rapidamente. Ficou dependente, primeiramente, em relação à comercialização agrícola e industrial que se desenvolvia na colônia ao município de São Sebastião do Cai, também encontrando precariedades de infraestruturas.

Desenvolveu-se economicamente baseada na indústria e no comércio, assim sendo, atualmente, Caxias do Sul, é um pólo industrial bastante dinâmico, herança cultural italiana. Posteriormente, em 1877, foi fundada a Quarta Colônia Italiana, que recebeu o nome de Colônia Silveira Martins. Entretanto, esta foi fundada na região central do estado gaúcho, distante dos outros três primeiros núcleos coloniais e dos centros financeiros e econômicos do estado rio-grandense, dificultando, assim, o desenvolvimento econômico da colônia que tinha como ponto de comércio mais próximo o município de Santa Maria, além de Cachoeira do Sul.

Porém, apenas, os primeiros italianos que chegaram à Quarta Colônia ficaram instalados em Silveira Martins, constituindo, desse modo, a sede da colônia, os demais foram sendo distribuídos em áreas próximas, de mata virgem e terras devolutas, efetivando a ocupação da região central do Rio Grande do Sul.

A chegada continua de imigrantes a colônia, em sua maioria vênetos, gerou a necessidade de novos lotes de terras, resultando na formação de novos núcleos interioranos, próximos da sede da colônia Silveira Martins, denominados: o núcleo norte, Soturno, Arroio Grande, Nova Treviso, Vale Vêneto, que deram origem a Região da Quarta Colônia de Imigração Italiana, compostas, hoje, pelos municípios de colonização italiana: Silveira Martins, Ivorá, São João do Polêsine, Faxinal do Soturno, Dona Francisca, Nova Palma e Pinhal Grande. Por questões político-econômicas, os municípios de Restinga Seca, (colonização portuguesa) e Agudo (colonização alemã), passaram a integrar a Região da Quarta Colônia de Imigração Integrada, mais recentemente.

Restinga Sêca não foi um núcleo de destinação para italianos, mas dadas as suas condições de clima e solo, muitos descendentes destes imigrantes vieram a estabelecer-se em Restinga Seca, formando vários núcleos: Colônia Borges, São Rafael, Santa Lúcia, São José, Santuário e São Miguel (17). Esses núcleos são muito próximos dos outros municípios da Quarta Colônia de Imigração Italiana, o que facilitou a instalação dos descendentes, ou seja, não foram imigrantes, mas os descendentes que já nasceram no Brasil.

Percebe-se que a colonização italiana propiciou o desenvolvimento dos municípios pertencentes à Região da Quarta Colônia de Imigração, a formação étnica cultural da região, além de ter contribuído com o sucesso do território rio-grandense. Hoje, esta região originária da antiga Colônia de Silveira Martins apresenta crescente desenvolvimento local/ regional (Figura 01).

Mapa com a delimitação da área de estudo e os respectivos municípios que compõem a Região da Quarta Colônia de imigração do Rio Grande do Sul
Imagem divulgação [Prefeitura Municipal de Santa Maria-RS, 2012]

O patrimônio italiano na Quarta Colônia: paisagens urbanas e rurais singulares

Os imigrantes italianos, assim como os alemães, portugueses, foram estabelecidos em regiões praticamente intocadas, localizadas no interior do estado e fragilmente ligadas aos núcleos luso-brasileiros. Assim, sendo, eles desenvolveram as ilhas culturais que formam contextos culturais pouco inalterados e de grande valor patrimonial, caracterizado, basicamente, pela ausência de monumentalidade, pela diversidade de técnicas construtivas e tipologias arquitetônicas.

Assim como ocorreu no processo migratório alemão, os italianos, ao inserirem-se em terras gaúchas, dispersaram-se pelo território, formando outros núcleos populacionais, dando origem, a ilhas culturais italianas, que se integram em diferentes regiões culturais. Essa descontinuidade espacial não impediu a expressividade ítalo-brasileira, visto que, na Serra Gaúcha, na Quarta Colônia ou em ilhas culturais, como Jaguari e Nova Esperança do Sul, o patrimônio cultural expressa e identifica a “italianidade” dos seus habitantes.

O turismo rural desta região mostra uma expressão do cotidiano, da vida simples do campo através das marcas culturais e dos artefatos que reforçam o lugar como um ambiente de sentimento e de vivência, conhecimento e experiência, que se traduz nas festas, nos ambientes de lazer e na tradição cultural. Nas atividades turísticas, a paisagem está diretamente integrada à imagem dos lugares, refletindo o processo imigratório dos europeus no Rio Grande do Sul. A sua cultura estabelece um atrativo e incentiva a comercialização e o consumo cultural, utilizando a valoração estética da paisagem natural aliada à arquitetônica e do patrimônio histórico e cultural.

Como já descrito anteriormente, a região central do estado do Rio Grande do Sul, notadamente a Quarta Colônia de Imigração Italiana, pela quantidade de imigrantes que recebeu, configura-se como uma verdadeira região de cultura ítalo-brasileira. Nesta região, encontram-se também fortes manifestações da arquitetura italiana, ainda hoje, preservadas nas antigas construções e parte das construções novas que mantêm algumas referências formais e espaciais tipicamente italianas.

A paisagem cultural e o patrimônio da Quarta Colônia de Imigração Italiana guardam em si grandes representações materiais e imateriais. A partir de pesquisa bibliográfica e documental, foi possível descrever, adiante, alguns exemplares da edificação histórica italiana dos municípios que integram a região da Quarta Colônia. O olhar que descreve essa paisagem estende-se para além da edificação histórica, valorizando a sua ambiência.

A formação de zonas de imigração conformou paisagens particulares, tanto rurais quanto urbanas, diferentes daquelas encontradas em regiões brasileiras com outro tipo de formação histórica.

Nessas regiões de imigração, a paisagem rural é marcada pela presença generalizada das pequenas propriedades rurais, trabalhadas pela família, distribuídas em estreitas faixas de terra perpendiculares aos caminhos, muitos deles em fundos de vales. As moradias dispostas na frente dos lotes são complementadas por outras edificações rurais características. Não raras vezes, encontram-se propriedades com edificações históricas de grande valor, como testemunhos arquitetônicos. A densidade populacional do campo chama atenção nestas áreas, em contraste com as vazias regiões brasileiras de latifúndios. Ao contrário da imensa maioria de seus congêneres dos países de origem, e mesmo das regiões de onde provieram, os imigrantes não habitaram vilarejos rurais e sim suas propriedades. Todavia, a necessidade de igreja, escolas, vendas e pequeno artesanato fizeram surgir os vilarejos que pontuam as linhas coloniais de tempos em tempos. Em grande quantidade, cumprem certas funções urbanas e têm forma característica com igreja e cemitério e formato retilíneo com casas dispostas nas ruas. A compor estas paisagens, este conjunto de elementos, conforma e estrutura estas regiões rurais, típicas da imigração italiana (18).

Nas cidades, encontram-se especificidades dos traçados urbanos, com a sua rua comercial, com as localizações típicas das igrejas em elevações ligeiramente apartadas dos eixos principais, com seus bairros originados pela absorção das antigas linhas coloniais rurais e das pequenas propriedades então desmembradas. A arquitetura das edificações marcou a história destas cidades com os traços do italianismo presentes na identidade cultural das populações. Desde a primitiva arquitetura colonial italiana, até as tendências ecléticas implantadas do final do século 19 (pedra e madeira), até o seu correr tardio no século 20, passando pelas estruturas tipicamente compacta e simétrica, um rico patrimônio marcou inúmeras cidades gaúchas, até a avassaladora onda de renovação especulativa a partir dos anos 1970. Todavia, os exemplares arquitetônicos que sobreviveram, acrescidos dos discutíveis produtos arquitetônicos resultantes dos incentivos à reutilização das características regionais italianas, têm criado um cenário que distingue diversas cidades de outras cidades de origens luso e teuto-brasileiras.

As dificuldades e o isolamento a que os imigrantes foram submetidos nas primeiras décadas de colonização, tanto por força da falta de meios e incentivos, como pelos regulamentos e contratos de muitos processos de colonização, levaram a um forte espírito de solidariedade étnica. Este espírito lançou as bases de uma manutenção das especificidades culturais como não se observa em outras regiões, onde foi outra a forma de integração dos imigrantes à vida nacional. Através das escolas, clubes, sociedades culturais e artísticas se manteve uma forte identidade e criou-se uma cultura urbana própria, com interferências na estruturação da vida quotidiana. Sobretudo através das escolas, manteve-se a língua, de tal forma que o português fosse tão somente a língua utilizada para fora e para os negócios.

As edificações históricas

Um patrimônio histórico edificado é a concretização mais perfeita dessa objetivação, pois ele é concreto, visível ou tangível, constituindo-se, por assim dizer, numa metáfora mais evidenciada.

Numa outra perspectiva, a ideia expressa o seguinte:

"Os prédios são objetos sociais e como tais estão carregados de valores e sentidos próprios de cada sociedade. No entanto, não são uns simples reflexo passivo desta, pelo contrário, são partícipes ativos na formação das pessoas. Dito de outra forma, a arquitetura denota uma ideologia, e possui a particularidade de transformá-la em ‘real’ (material), para desta forma, transmitir seus valores e significados por meio de um discurso material. Assim, se considerarmos que os prédios são formas de comunicação não-verbal, então estes podem ser lidos" (19).

O prédio, segundo esta ótica, não é simplesmente algo passivo, não serve somente para refletir uma sociedade, mas é um objeto social carregado de valor e sentido. Ele é um elemento ativo na formação das pessoas, pois representa o pensamento humano numa forma mais palpável.

Para o autor, portanto, um edifício expressa uma comunicação não verbal, dotada de vários valores e significados, que são transmitidos mediante um discurso material, concretizado na realização mesma da edificação. Destarte, este discurso pode ser lido como um texto qualquer. Neste sentido, para ficar mais clara a dinâmica da inter-relação entre as pessoas e os objetos na cultura material, como por exemplo, o patrimônio histórico edificado, cita-se a seguinte passagem:

"Je parlerai d’incorporation, non pas de l’objet, puisque l’objet reste extérieur au corps du sujet, mais de sa dynamique que, elle, est intériorisée par la prise que le sujet exerce sur l’objet. Cette prise se réalise par tous les points de contact et de perception entre la chose et le sujet: doigts, mains, pieds, siège, dos, toucher, ouie, vue, perception gravitationnelle par l’oreille interne, proprioception neuro-musculaire. Ainsi les pilotes d’avion parlent- ils de ‘piloter aux fesses’. L’incorporation de la dynamique de l’objet s’effectue par la mise au point de conduites motrices mémorisées par le corps et qui se manifestent par des stéréotypes moteurs. Ce sont des gestes ou des séries de gestes que, à force de répétition, peuvent être effectués sans effort ni attention particuliére, avec efficacité, dans la plus grande économie de moyens. Ces gestes qui sont ceux du sportif, de l’artiste, de l’artisan, du pilote ou de la ménagére, font l’objet d’une ‘praxéologie’ ou ‘science de l’action motrice’ que s’est développée depuis les travaux de Head, Janet et Schilder dans les années 1920 et 1930, dont on trouvera une synthése critique dans lê Lexique commenté de P. Parlebas" (20).

No olhar do autor, a preocupação é com a interiorização da percepção do objeto e a importância da sensorialidade nessa percepção.

Entretanto, pode-se ainda mostrar que as mudanças nas funções de algum prédio não são devidas somente ao tempo, mas também à relação das pessoas com esse lugar. Parte da história da civilização humana pode ser vislumbrada por meio de suas construções, elaboradas para resolver ou solucionar um dado problema, como também através da conquista da natureza pelo homem. Assim, percebe-se o mundo por meio de uma série de fixações no espaço que se denominam ‘lugares’ (21), (22), (23).

O espaço só é domesticado totalmente quando se transforma em lugar, isto é, quando ele é conhecido, ocupado e utilizado. De modo que a distinção que se pode fazer entre essas duas noções é a seguinte: quanto à noção de espaço, ele é algo não conhecido, não ocupado nem tampouco utilizado, que não sofreu alguma interferência humana; ao passo que lugar é justamente o contrário: “A ocupação do espaço, sua utilização, o ‘salto qualitativo’ que leva do espaço ao lugar é, pois, uma construção. O espaço se projeta ou se imagina, o lugar se constrói [...]. Todo espaço é um lugar percebido” (24).

Nesta passagem, apreende-se a diferença fundamental entre as duas noções. O salto qualitativo entre espaço e lugar dá-se por intermédio de uma construção. Assim, este salto é exemplificado num edifício qualquer. Nas noções apresentadas, o espaço seria a geometria do edifício, enquanto o lugar seria construído e reconstruído pelos diferentes esquemas de utilização praticados.

Enfim, um edifício histórico pode ser visto como um artefato porque aquele pode compreender os dois processos que este possui – o de instrumentação e o de instrumentalização. O processo de instrumentação é aquele relativo ao sujeito, ele designa a utilização que um sujeito faz sobre um artefato. É um processo que diz respeito à pessoa que o utiliza. Diz respeito, de fato, sobre as variadas formas com que uma pessoa pode utilizar um artefato sem o modificar, isto é, utilizá-lo sem ter que transformá-lo em um outro artefato. Já o processo de instrumentalização significa justamente o contrário. Diz respeito ao artefato, à sua seleção, produção, instituição de funções ou à sua transformação. Sinteticamente, a instrumentalização é um processo em direção ao artefato, à produção integral do artefato pelo sujeito. Ao passo que a instrumentação é um processo relativo ao sujeito, ao surgimento e à evolução de esquemas de utilização e ação instrumental. De modo que ambos são tipos de processos feitos pelo sujeito para a elaboração do artefato (25).

O Patrimônio histórico edificado nas cidades da Quarta Colônia: diferentes momentos da história e da coletividade

Alguns exemplares de prédios encontrados em cidades que compõem a Quarta Colônia revelam edificações dos mais diversos estilos e épocas. Independente dos materiais, das técnicas construtivas, dos estilos, elas são referências de adaptação, de criatividade e da vontade de fazer da casa mais que um abrigo. São prédios dos primeiros anos da ocupação portuguesa, da colonização alemã e da italiana. Muitos deles, principalmente casas comerciais e escolas, receberam, nos anos 30 e 40, novas fachadas, produto de ascensão social conquistado com muito trabalho. São casas rústicas e sóbrias das primeiras construções que, por mais que o volume e o pé-direito não ajudassem, receberam como adorno, de estilos clássicos, falsas colunas e capteis até o art-noveau chega à colônia por volta dos anos 40 e 50, e, nos anos 60 e 70, o modernismo fez-se presente ás residências dos núcleos com as colunas do Palácio da Alvorada. São edificações que se revelam no tempo e no espaço, onde prédios simples em madeira, pedra (basalto ou arenito) ou em tijolos, teimosamente, ali integram-se à paisagem, e aos cenários rurais e urbanos. Os silêncios de suas paredes despertam sensações, vozes, rostos e cheiros da infância. Seres e objetos estão, aliás, ligados, extraindo os objetos de tal conluio uma densidade, um valor afetivo que se convencionou chamar sua “presença” (26). Presença que não são os tijolos, mas o que elas despertam e clamam por olhares sensíveis de atentos cidadãos. Elas são frágeis, principalmente a vergonha ou a inconsciência de seus herdeiros, reclamam por atenção, gritam por ajuda, adoram a conservação e a restauração. Gostam de serem retratadas em desenhos, aquarelas, óleos, fotografias ou vídeos. Não importa a tecnologia desde que seja para ressaltar, para por em evidência a beleza que preservam. Os bens exemplificados não definem uma escala de valores estéticos, apenas identificam prédios com características construtivas e arquitetônicas de diferentes períodos da nossa região. A partir deles, pode-se pensar que proprietários e a sociedade, por meio dos governos locais, poderão intervir em políticas públicas de incentivo à proteção e à preservação do patrimônio edificado da Quarta Colônia.

No município de Dona Francisca encontra-se, entre outros, um conjunto de edificações, datado entre 1900/1930 (27). Em primeiro plano, a residência de Iolanda Cassol, com varanda adornada com arcos e parede arredondada e piso hidráulico; em segundo plano, a residência do Sr. Arquelino Vendrame, detalhe da esquadria lateral e da textura de revestimento da fachada, técnica recorrente nas construções de época; em terceiro plano, ao fundo, a residência de Lincoldo Henning, datada de 1900, construída em pedra e arenito.

Conjunto de edificações residenciais no município de Dona Francisca, 1900/1930
Foto divulgação [Arquivo do autor]

Em Faxinal do Soturno, datados entre 1900/1940, observam-se edificações como o casarão verde, de propriedade da família Pigatto; à direita, casa de pedra regular em arenito com rejunte de argamassa, construída com respiros sob a cobertura; abaixo, o casarão da família Santini, que aguarda partilha de bens. Percebe-se a preferência por construções assobradadas de volumetria simples.

Faxinal Soturno, edificações das famílias Pigatto e Santini datadas entre 1900/1940
Foto divulgação [Arquivo do autor]

No núcleo de Ivorá, datados de 1913/1950, à esquerda, o conjunto católico com destaque para o salão paroquial, a torre sineira e a Igreja Matriz; abaixo, a residência de Guerino Binotto, toda construída em pedra grés aparente, com detalhe para as esperas na lateral, prevendo uma futura ampliação da parede; à direita, aos fundos, residência em pedras e uma capela com variada gama de cores que a formam, conferindo uma estética diferenciada de propriedade de Artidor Venturini. Destaque para o Monastério dos Monges Cartuxos, um dos três existentes nas Américas.

Ivorá, conjunto arquitetônico e paisagístico em Ivorá, datados entre 1913/1950
Foto divulgação [Arquivo do autor]

Em Nova Palma, encontra-se um conjunto arquitetônico, datados de 1900/1940, localizado em diferentes pontos da cidade. À esquerda, a residência de Leônidas Descovi, com destaque para esta tipologia de residência, recorrente na região; abaixo, a residência do padre Afonso Tomasi, possui porão totalmente enterrado, com acesso interno à residência; à direita, sede da fábrica de sorvetes Cremogel. Presentes, ainda, nesta localidade, edificações antigas, de volumetrias conexas, salientando um conjunto homogêneo a ser preservado. A presença recorrente na cidade da tipologia de casa térrea do período colonial italiano, com a sua conformação de telhado em duas águas assimétricas. Além, é claro do maior patrimônio do município, o balneário municipal que integra a paisagem cultural.

Nova Palma, vista de antigas edificações que integram a paisagem cultural
Foto divulgação [Planejamento ambiental Quarta Colônia]

Em São João do Polêsine, tem-se o antigo Hotel Central, pertencente à família Sônego; logo abaixo, a residência da família Gentil Piveta, com galpão na propriedade e rodas d’água em estado precário; à direita, fachada do antigo convento de irmãs, onde, atualmente, funciona a Escola Estadual de Ensino Fundamental Padre Rafael Iop. O conjunto é datado de 1930/1940.

São João do Polêsine, conjunto de edificações, datadas entre 1930/1940
Foto divulgação [Arquivo do autor]

Já em Pinhal Grande, um município de emancipação recente, não apresenta forte conformação urbana. Pode ser destacado, dentre o seu patrimônio, principalmente, a arquitetura religiosa que é muito significativa para a comunidade, composta por construções datadas entre 1930/1940; acima, vista do moinho São José Rubin e Irmãos; abaixo, vista da Igreja da Encruzilhada e ângulo do campanário com seu revestimento texturizado; à direita, a residência da família Otilde Batistela Dalmolin, com destaque para as esquadrias. Com muita freqüencia, a presença de capelas, capitéis e cemitérios. Registra-se ainda o expressivo encantamento que os recursos naturais e as paisagens da região oferecem.

Pinhal Grande, construções datadas entre 1930/1940
Foto divulgação [Arquivo do autor]

Silveira Martins recebeu as primeiras levas de imigrantes italianos, com a instalação do quarto núcleo no Estado, após os três primeiros: Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Garibaldi. A arquitetura típica, baseada em tijolos e pedra, é uma das características que compõem a paisagem local. Em primeiro plano, vista da Igreja Santo Antônio de Pádua, com destaque para o campanário inspirado na torre da Igreja Caorle, na Itália. Ao lado, fachada de casarios na região central da cidade. Abaixo, vista do antigo Colégio de Freiras, construído em 1908, e onde funcionam um dos campi avançados da Universidade Federal de Santa Maria.

Silveira Martins, edificações com arquitetura típica em tijolo e pedra compõem a paisagem cultural
Foto divulgação [Arquivo do autor]

Como esses municípios caracterizam-se por economias basicamente rurais, é também nesse meio que se encontram as principais edificações do período colonial. Infelizmente, essas construções vão, a cada ano, sendo abandonadas ou, pior ainda, demolidas. Poucas ainda se encontram com uso inicial, o de residência. Grande parte é, hoje, utilizada como galpão ou depósito de equipamentos ou insumos agrícolas. Por outro lado, pode acontecer ainda, sem impedimentos, haver a mudança de uso, ou seja, uma residência pode se tornar uma pousada, ou um estabelecimento comercial, e assim por diante. Para tanto, faz-se necessário, acompanhamento e orientação técnica de profissionais especializados neste tipo de intervenção, a fim de não descaracterizar tais edificações e evitar que se perca este registro histórico.

O acervo das edificações históricas de imigração italiana está disposto ao longo de um caminho que espelha um processo histórico de ocupação do território rio-grandense central, a partir da segunda metade do século 19. Situadas na paisagem, aos pés da Serra de São Martinho, estas edificações salientam-se por sua volumetria e relação com o seu entorno. São testemunhos de cultura e tradições trazidas ao Brasil por imigrantes de diversas partes do mundo. A grande falta de recurso fez com que eles utilizassem o material disponível na região, adaptando-os a suas técnicas construtivas e com autênticos exemplares em madeira, pedra e tijolos.

Considerações finais

A paisagem é dinâmica e seus elementos transformam-se pela ação das forças naturais e culturais em sua dimensão material e imaterial, por meio da marca da cultura dos povos sobre o território que ocuparam. Desta maneira, o foco de preservação passa a ser o indivíduo e não propriamente a paisagem, uma vez que seu valor não está presente apenas à ‘beleza cênica’. A permanência do homem no meio rural garante a manutenção do patrimônio arquitetônico e da paisagem cultural em sítios históricos de imigração italiana, pois é ele, o homem, o principal elemento a atribuir valor à paisagem.

Em consonância com a lógica cultural contemporânea – construção de identidades, valorização das diferenças, ecletismo, estetização, tradição – esta experiência, de certa maneira, criou um novo modo simbólico de afiliação e pertença a um território, através do esforço que reformulou o sentido de signos pré-existentes, reformatando positivamente a identidade etnocultural espacial na convergência a uma entidade micro-regional: a “Quarta Colônia”.

A dinâmica pela qual às diversas comunidades locais, abarcadas por esta micro-região, relacionam-se e se integram em processos socioeconômicos de referência global, ao invés de diluir as diferenças, tem possibilitado o reforço de identidades justamente apoiadas no ‘pertencimento’ às localidades. Essa âncora territorial, embora mutável e relativa, atualmente é a base sobre a qual a cultura realiza a interação entre o rural e o urbano de um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garante a construção e manutenção da identidade.

A paisagem deixada pelo imigrante é elemento revelador da produção agrícola e do modo de obter a produção, das mudanças ocorridas em épocas históricas sobre as terras, sobre as culturas, sobre o trabalho, sobre a propriedade e sobre a paisagem natural da nova realidade encontrada no país.

A cultura italiana deixou suas expressões no território riograndense e na formação étnica brasileira. As belas paisagens culturais repletas de significados e sentimentalismo de uma população trabalhadora que reproduziu no natural o valor de suas origens e hábitos despertam interesses de pesquisadores e turistas. O lugar vivido é o que desperta as novas atividades econômicas, especialmente o turismo. Assim como a cultura e hábitos italianos tornam-se uma marca econômica e social, especifica da região e dos municípios colonizados por eles. Esta marca, entretanto, caracteriza a região.

A arquitetura preservada representa a cultura e a história materializada em monumentos e construções que tomam sentidos e mantêm vivos os significados da memória coletiva. Assim os sentidos atribuídos à paisagem natural e arquitetônica marcadas pela colonização compõem a imagem da Região da quarta Colônia e revelam a apropriação simbólica do território.

Esta paisagem cultural é reconhecida nacionalmente, e somente foi possível a preservação do seu patrimônio cultural e natural frente à globalização e os novos arranjos espaciais devido à ligação afetiva dos moradores nessas localidades. Com isto, a revitalização deste cenário colonial trás o desenvolvimento local, sendo importante o planejamento e as políticas públicas regionais e municipais na ordem de manter destacado na paisagem o velho e o novo. Caso contrário à região corre o risco de perder sua identidade cultural.

notas

NA – Este artigo é um desdobramento do Projeto de Pesquisa em andamento intitulado “Paisagens Históricas do Rio Grande do Sul: análise, interpretação e documentação financiado pelos CNPQ, através do Edital Universal de 2013.

1
Seguindo as orientações de Zanini (2007, p.541), farei uso da noção de região central do estado do Rio Grande do Sul para referir-me à IV Colônia de Imigração Italiana, bem como à cidade de Santa Maria e vizinhanças.

2
FROEHLICH, José. A (re) construção de identidades e tradições: o rural como tema e cenário. In: FROEHLICH, José; DIESEL, Vivien. (orgs). Espaço rural e desenvolvimento regional. Ijuí: EDUNIJUÍ, 2004. 312 p.

3
CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural. Conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume, 2009.

4
RIBEIRO, Wagner da Costa, ZANIRATO, Silvia Helena. Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 51, 2008.

5
Idem.

6
COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORREA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny. Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p.100.

7
RIBEIRO, Wagner da Costa, ZANIRATO, Silvia Helena. Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 51, 2008.

8
Idem

9
FOWLER, Peter J. World Heritage Cultural Landscapes1992 – 2002. World Heritage Papers 6, UNESCO World Heritage Centre, 2003. p. 141. Disponível em http://whc.unesco.org/documents/publi_wh_papers_06_en.pdf. Acesso em 25 set. 2009. 131p.

10
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Homepage do IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br>Acesso em: 25 nov. 2009.

11
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A Paisagem como fato cultural In: YÁZIGI, Eduardo (org.). Turismo e paisagem. São Paulo: Contexto, p. 2002.226.

12
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo – razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2005.

13
Idem.

14
STEFANELO, Liriana Zanon. História, Memória e Patrimônio: Fundamentos e Sensibilizações da Comunidade de Nova Palma (Centro de Pesquisa Genealógica e Museu Histórico. Memória, Identidade e Patrimônio. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural. UFSM. 2010. p. 172.

15
GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya; GUTIERREZ FILHO, Rogério. Arquitetura e assentamento ítalo-gaúchos (1875-1914). 1. ed. Passo Fundo: Ed.UPF, 2000. v. 500. 85 p.

16
SAQUET, M. A. Alguns aspectos da formação econômica da ex- colônia Silveira Martins (1878-1925).” In: MARIN, J. (org.). Quarta Colônia: Novos Olhares. Porto Alegre: EST, 1999.

17
OLIVEIRA, Lacy Cabral. Origem e História política-administrativa do município. Restinga Seca: Administração Municipal, 2001.

18
PIMENTA & PIMENTA, Planejamento urbano: partindo de um conceito de cidade e de Sociedade. In: Quintas Urbanas: conversas sobre a cidade e o urbano.2a ed. Rio Grande: Universidade Federal de Rio Grande, 2010, p. 51-85.

19
ZARANKIN, Andres. Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura escolar capitalista – o caso de Buenos Aires. Campinas: Ed. da Unicamp, 2002.

20
WARNIER, J. P. Construire La culture matérielle: L’homme que pensait avec ses doigts. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.

21
BACHELARD, Gastón. De la poética del espacio. México: Fondo de Cultura, 1975.

22
PARKER PEARSON; RICHARDS (Ed.). Architecture and order: approaches to social space. Londres: Routledge, 1994.

23
VIÑAO FRAGO, Antônio; ESCOLANO, Augustín.Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

24
Idem.

25
Idem.

26
PLANEJAMENTO AMBIENTAL DA QUARTA COLÔNIA. Patrimônio Cultural. Santa Maria, RS; Ed. UFSM, Porto Alegre, RS, 2010.

27
Idem.

sobre o autor

Lauro César Figueiredo é Doutor em Geografia com ênfase em História das Cidades pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente dos Cursos de Geografia e Ciências Sociais (Graduação e Pós-Graduação) da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. Membro do COMPHIC – Conselho Municipal Patrimônio Histórico Cultural; membro do Grupo de Estudos CIDADHIS – Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina e membro da RELARQ – Rede Latino Americana de Documentação em Arquitetura e Urbanismo.

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