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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo discute o trabalho do mexicano Aurélio Martinez Flores, pouco citado na crítica de arquitetura nacional moderna, mas de contribuições plurais, significativas e de certa forma contrastantes com as escolas vigentes em São Paulo nesse período.


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SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Aurelio Martinez Flores. Exercícios de colagem sobre fundo branco. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 182.07, Vitruvius, jul. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.182/5625>.

Foram muitos os projetos desenhados pelo arquiteto mexicano Aurelio Martinez Flores (1929) em mais de 50 anos de exercício da profissão. Muitos objetos, e várias caixas. Muitas caixas brancas, outras de vidro, todas elas parecidas e absolutamente diferentes entre si, desafiando a percepção daqueles que acreditam que todas as caixas ficam iguais quando decidem ser arquitetura, e que é possível abrir caixas sem desfazer nós.

Na introdução do livro Aurelio Martinez Flores – arquitetura (1), André Aranha Correa do Lago, surpreso, chama a atenção dos leitores para o fato de que a maior parte dos projetos do arquiteto mostrados ali nunca havia sido publicada (2). Uma rápida pesquisa realizada na base de dados Índice da arquitetura brasileira (3), confirma a presença de onze artigos sobre o arquiteto em publicações brasileiras, distribuídos entre o ano de 1971 – quando publica uma entrevista para a revista Casa e Jardim sobre a importância do design, dois anos antes do arquiteto inaugurar sua primeira obra arquitetônica no Brasil, seguida de dez anos de silêncio – e o ano de 2003; todas as publicações são sobre edifícios institucionais, nenhuma sobre as residências, concentradas na década de 1990.

Casa Freyssinier, São Paulo
Foto Otto Stupakoff

Também não há menções ao trabalho de Flores nas principais publicações e teses acadêmicas que têm intensificado a pesquisa sobre a arquitetura moderna e contemporânea no Brasil nos últimos 20 anos. Se a obra de alguns companheiros de “ostracismo” de Flores – como Miguel Forte, ou outros estrangeiros de origem ou de família como Lina Bo Bardi, Rino Levi, Franz Heep, para ficar apenas em São Paulo – já têm merecido, desde os anos 1990, pesquisas e publicações, o fato é que lá ficaram as caixas de Flores, no limbo dos recusados (4), resistindo na sua irritantemente bela simplicidade, a habitar “a solidão das coisas perfeitas”, este melancólico e poético lugar destinado ao conterrâneo Luis Barragán por Álvaro Siza, bem lembrado por Alberto Baeza (5). A razão dessa divulgação ainda discreta, quase bissexta, pode ser, entre outras, um certo estigma que condenou os arquitetos que ousaram perseguir a sofisticação e um certo luxo em projetos de arquitetura e de vida modernos, principalmente ao longo dos anos 1960/70. Correa do Lago atribui este significativo silêncio editorial também à personalidade do arquiteto, ao seu “perfil discreto”, e a um impulso criativo que “depende de um contexto bastante complexo, no qual devem ser respeitados certos parâmetros estritos que não favorecem nem a fama, nem a produção intensa, nem os seguidores”. Ou seja, ele nos introduz ao perfil recatado de um arquiteto que não se preocupa em “fazer escola”, sempre fiel a sua formação e aos seus princípios, indiferente a modas ou manifestos, respeitador da tradição seja a barroca de origem ou a moderna de formação, autor de uma arquitetura que é a expressão de sua cultura pessoal, construída de diversos aportes.

Casa da Cultura, Poços de Caldas
Foto Wanderley Bailoni

 

Caixas de mudança

Corria o ano de 1960. No planalto central do Brasil ultimavam-se os preparativos para a inauguração da nova capital. Monumento à modernidade, antes mesmo de ser concluída Brasília precisava afirmar uma posição de vanguarda inclusive no momento de equipar seus palácios oficiais. Se o urbanismo e a arquitetura da cidade representavam para o mundo a expressão brasileira do Movimento Moderno, o equipamento de seus edifícios – para usar uma expressão consagrada por Le Corbusier – deveria fazer apelo ao design moderno internacional. Naquele mesmo ano, a loja Branco & Preto, que divulgava e vendia desde 1952 os móveis desenhados por um grupo de arquitetos de São Paulo (Miguel Forte, Jacob Ruchti, Plínio Croce, Roberto Aflalo, Carlos Millan e Chen Y Hwa), fechava as portas. Um ano antes, fora a vez da loja paulista de Joaquim Tenreiro encerrar suas atividades. A casa moderna brasileira estava a carecer de equipamentos condizentes com seus espaços racionais.

Agência Unibanco, Poços de Caldas
Foto Tuca Reinés

 

Pareceu a Knoll Internacional, então proprietária do direito de fabricação dos móveis de arquitetos e designers – Mies van der Rohe, Marcel Breuer, Eero Saarinen e Harry Bertoia, entre outros – que era o momento de enviar ao Brasil seu diretor industrial, o arquiteto mexicano Aurelio Martinez Flores, que aqui aterrissou para ficar três meses, e lá se vão mais de 50 anos que este mexicano de nacionalidade, “brasileiro de coração”, vive e trabalha em São Paulo. Sua principal responsabilidade, enorme responsabilidade, foi supervisionar a fabricação de móveis da Knoll pela loja Forma, com autorização para adaptá-los aos materiais disponíveis no mercado brasileiro em função das necessidades locais e do próprio processo industrial, mas sempre dentro do espírito dos desenhos originais. Trabalhando em conjunto com sua equipe brasileira, Flores chegou a desenvolver o impressionante número de cerca de 50 projetos de arquitetura de interiores por mês, durante os dez anos em que permaneceu na Forma.

Quanto ao Palácio da Alvorada, ele recebeu da loja Forma as poltronas Barcelona de Mies van der Rohe, devidamente certificadas, encerrando certa polêmica local sobre “cópia e autenticidade” de móveis, responsável pela vinda de Flores ao Brasil. Na mesma época, o arquiteto cuida também da produção dos móveis para a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, e continua equipando edifícios e palácios da nova capital, em contato com os arquitetos Elvin Mackay Dubugras e Alcides da Rocha Miranda. Como interlocutor qualificado dos arquitetos modernos e seus clientes - fossem eles grandes empresas e instituições localizadas no Rio de Janeiro, São Paulo como no resto do país e da América Latina, fossem proprietários de casas individuais -, Flores cria ambientes, equipa espaços, organiza fluxos e operações. Trabalha com uma linguagem clara e funcional: “o desenho do mobiliário como uma extensão do projeto de arquitetura”. Ou: a arquitetura de interiores compreendida como uma continuidade do projeto arquitetônico porque “a decoração é uma idéia que acabou no século 18”, uma das convicções do arquiteto.

Casa Rua Suécia, São Paulo
Foto Otto Stupakoff

 

Em 1970, Aurelio Martinez deixa a Forma para abrir a Inter Design com o amigo Luis Carta. Nos quase 40 anos de funcionamento da loja, ele desenha, importa e comercializa objetos de design, e continua a desenvolver projetos de arquitetura de interiores para residências, como também para lojas, restaurantes, espaços comerciais, galerias. No mesmo ano desenvolve o primeiro de uma série de projetos para edificações construídas no Brasil, a casa do publicitário José Zaragoza no litoral paulista. Modesto, Flores ainda hoje avalia mal o impacto desse “jogo magnífico de volumes sob a luz”, cujo brilho pode ter sido ofuscado por sombras feitas de dogmatismo. Afinal, a sua arquitetura assume todos os riscos de ser moderna, podendo até ser aproximada de um certo epicurismo: “a vida comedida garantindo a cota exata de prazeres” ou “a qualidade que suplanta a quantidade”, segundo o filósofo. Mas também ousa não adotar filiações ideológicas, justamente no momento em que o engajado brutalismo paulista da escola de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha firmava terreno em São Paulo, duro momento de repressão política à liberdade individual no país.

Caixas de morar

Refinada e discreta, a obra de Aurelio Martinez Flores exibe, sem ostentar, um luxo que é ao mesmo tempo construído e camuflado por um detalhamento rigoroso, pela combinação harmônica de formas geométricas precisas, pela qualidade dos materiais e da construção, assim como pela sutileza da luz filtrada por zenitais, por pequenas aberturas e pela tradição hispânica de pátios internos e gelosias; “não gosto de janelas”, explica o arquiteto enquanto persegue a luz ideal para cada ambiente. Difíceis de serem compreendidas, as primeiras casas de Aurelio Martinez deixam atônitos e silenciosos, tanto o público em geral como os colegas arquitetos. Pode-se dizer que os poucos e fiéis clientes foram, e são ainda, antes amigos, cúmplices e parceiros na realização de sua obra. “Acho que minha arquitetura inibe as pessoas”, procura ainda compreender e explicar o arquiteto. Talvez porque essa arquitetura dialogue com um largo e eclético espectro de referências que apenas começam a ser valorizadas. Ou porque cultivar a sofisticação do projeto seja de difícil alcance e aceitação. “Minha arquitetura é feita de sensações”, repete, “e as sensações talvez sejam o verdadeiro luxo”. O arquiteto cita nominalmente “o luxo”, uma categoria que não costume ser bem entendida, nem ao menos discutida, particularmente quando se trata da arquitetura de uma América Latina onde “o simples parece pobre”, ou onde o “verdadeiro luxo” (que não é ostensivo) pode não ser considerado politicamente correto. A estilista Coco Chanel, que desenhou com economia e simplicidade os novos padrões de sofisticação e elegância da mulher moderna do começo do século 20, definiu o verdadeiro luxo como aquele que não se vê. Quando se trata da arquitetura moderna de Flores, luxo é a essência invisível do projeto, percebida como geometria, despojamento e luz.

Sede da CBMM, São Paulo
Foto Cristiano Mascaro

 

Aquilo que o arquiteto identifica como uma certa incompreensão em relação à sua obra pode também ter origem na brancura sem concessões que a inunda. “O branco, como o novo, é parte da mentalidade moderna”, pontua David Leatherbarrow, associando em seguida a brancura preferida dos modernos a idéias de honestidade, objetividade e verdade. Um branco para o qual, e sobre o qual, o tempo não passa. O branco sobre branco, em diferentes texturas e recortes, tanto nos exteriores como nos interiores das obras de Flores, só intimida quando não chega a ser percebido como elemento de continuidade e fluidez dos espaços ampliados, ou como um fundo neutro que convida à ocupação de paredes e ambientes com as biografias “sem estilo” de seus ocupantes.

Na verdade, estamos a falar de uma difícil operação que deveria ser executada à maneira do arquiteto, num movimento complexo de povoar a própria casa com fotografias de viagem ou de família, coisas herdadas ou garimpadas como pedras ou conchas, objetos díspares entre banais e inusitados, eleitos antes pelo significado do qual são suportes ou pelo valor afetivo. Por sua vez estas coleções se misturam a objetos únicos no seu design especial, à vegetação controlada esteticamente, aos móveis e objetos de arte, nem sempre contemporâneos, escolhidos pelo dedo de quem gosta e conhece. E porque “a casa é uma caixa de sentimentos humanos”, porque a casa é projetada para ser apropriada pelo seu morador, todo este universo pessoal de objetos é espalhado com parcimônia e largueza em ambientes amplos na sua brancura, às vezes organizados como composições artísticas calculadas, que se assemelham às belas colagens brancas sobre fundo branco que Flores continua criando. Um Barragán sem a cor mexicana? Antes um arquiteto mexicano de formação moderna, para quem a combinação incrível e excessiva das cores locais “que não combinam” é especialidade das índias mexicanas que recebem como parte da herança cultural esse dom especial que exprimem em potes e bordados. A cor da arquitetura, conclui Flores, deve ser conferida pelos seus moradores e freqüentadores, para quem o arquiteto projeta edifícios imaculados.

Restaurante Gwelo, São Paulo
Foto Otto Stupakoff

A partir da primeira obra realizada no Brasil, o arquiteto passa a desenvolver variações sobre o mesmo tema, sedimentando os princípios que regem seu trabalho desde os primeiros projetos construídos ainda no México. Desenvolve uma arquitetura que se quer ao mesmo tempo “moderna internacional” e “moderna de raiz mexicana”, mergulhando as referências miesianas no vernáculo do país natal e na releitura da tradição elaborada por Luis Barragán. Cada um dos projetos de Aurelio Flores, assim como todas as suas caixas, apresenta uma combinação distinta e sempre econômica dos mesmos elementos, dialogando em permanência com as lições dos mestres que elegeu dentre todos, Richard Neutra e Mies van der Rohe, suas principais referências. Estuda a obra e o design de ambos ao longo do ofício de projetar edifícios e objetos, desde que veio morar no Brasil, através das publicações, visitando as obras durante as viagens, acompanhando a fabricação dos objetos. Lembrando que Flores chega a São Paulo em 1960, enquanto Richard Neutra passa pelo Brasil em 1945 (6), a serviço do Departamento de Estado dos Estados Unidos (publicando em português, no ano de 1948, o livro Arquitetura social em países de clima quente), e Mies van der Rohe vem a São Paulo no ano de 1957, no momento em que recebe a encomenda de um projeto para o Consulado dos Estados Unidos na capital paulista.

Cada um dos projetos de Aurelio Flores, assim como todas as suas caixas, apresenta ainda extremo rigor e austeridade, características que já foram lidas como formalidade, e cuja origem poderia ser encontrada no tradicional berço familiar de Puebla de los Angeles, cidade barroca mexicana fundada no século 16, hoje Patrimônio da Humanidade. E que continuam a se desenvolver na excelente educação dos padres jesuítas e na formação de arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Autônoma do México em 1952, assim como na experiência profissional com o arquiteto mexicano Jorge González Reyna (1920 – 1969), aluno de Walter Gropius em Harvard, e no trabalho conjunto com uma equipe de arquitetos mexicanos que trabalhou na condução do projeto e no equipamento dos espaços do edifício sede da Bacardi na Cidade do México (1958), projeto de Mies van der Rohe.

Pátio Casa, Guarujá
Foto Otto Stupakoff

 

Flores inicia seu trabalho no Brasil no momento em que Brasília propagava para o mundo a ousadia formal de Oscar Niemeyer. Ao se situar em relação ao país de eleição onde passa a atuar e construir, o arquiteto se afirma enquanto moderno e mexicano, fazendo questão de assinalar que nunca cedeu à sedução dessa arquitetura brasileira. E seus traços vão recitando, com sotaque próprio, o poema do ângulo reto de Le Corbusier, enquanto o arquiteto repete que “não gosta de curvas na arquitetura”. Afirmativa que poderia ser vista muito mais como uma maneira de se distanciar do paradigma representado por uma certa modernidade carioca, do que uma aproximação em relação ao discurso de Le Corbusier, mesmo quando este elogia o ângulo reto como tendo “direitos sobre todos os outros ângulos [...] ferramenta necessária e suficiente para agir porque serve para definir o espaço com um rigor perfeito [...] o ângulo reto é lícito [...] o ângulo reto é obrigatório” (7); Flores parece preferir as formas mudas e parlantes, aos discursos sobre a forma.

A arquitetura de Aurelio Martinez também faz por se distinguir e se distanciar do brutalismo paulista das décadas de 1960/70, a vanguarda então dominante na cidade brasileira que escolheu para viver. Não estabelece vínculos ou compromissos com essa arquitetura engajada politicamente, comprometida com a dureza do concreto bruto e aparente “que envelhece tão mal”, segundo o arquiteto, nem com sua verdade estrutural enfática e escultórica. “A casa é uma caixa de sentimentos humanos”, insiste Flores, e assim caminha na contramão do sentido apontado por Vilanova Artigas e seus alunos que concebem casas como laboratórios experimentais da nova sociedade, tentando contrapor a prática da casa elitista destinada aos clientes burgueses reais, à teoria da casa popular idealizada para um futuro quiçá mais justo.

Pátio Casa, Guarujá
Foto Otto Stupakoff

 

Assim, desde que inaugura o seu primeiro projeto de residência no Brasil, no começo dos anos 1970, Flores estabelece os princípios de uma arquitetura econômica em relação a ornamentos e estilos, e refinada do ponto de vista da composição e da construção. Uma arquitetura tão introvertida e tão mínima quanto a arquitetura moderna paulista sua contemporânea, porém de um minimalismo bem outro (8). Seus pátios hispânicos claros e iluminados são o oposto do pátio invadido por vegetação e penumbra da residência Elza Berquó de Vilanova Artigas (1968), penumbra de empenas e de zenitais tímidas que Flores desconhece. Suas caixas, bem ancoradas, não flutuam ásperas e cinzentas, por fora e por dentro, à maneira das residências Mario Masetti (1970) ou James King (1974) de Paulo Mendes da Rocha, muito menos seus ambientes são cristalizados por móveis fixos moldados junto com lajes e paredes. Ou ainda, os espaços de suas casas não são cruzados e dominados por sistemas estruturais que se fazem presentes numa sucessão complexa de planos sobrepostos, – “idéias fortes” e “exercícios de estética” – que podem discursar bem, mas se adaptar mal ao fluir da vida, como fica claro na experiência iniciada por Joaquim Guedes na Residência Cunha Lima (1963) – com seus quatro pilares centrais que “esgalham” pelos ambientes para apoiar os planos mais pesados dos três pavimentos – retomado e radicalizado na residência Waldo Perseu Pereira (1969), onde a sala é dominada por vigas que apontam em várias direções, apoiadas em um pilar central (9).

Em 1975, dois anos depois de Flores inaugurar sua primeira casa, Marlene Milan Acayaba mudava para a residência projetada por Marcos Acayaba, uma das obras emblemáticos desse período em São Paulo. O lento processo de apropriação da casa por parte da moradora-arquiteta começa pelo persistente cultivar de um jardim, aprofundado em seguida como pesquisa acadêmica – origem do livro Residências em São Paulo 1947- 1975 (10) – ao longo da qual Marlene Milan persegue uma das grandes questões dessa arquitetura: “pronta a obra, transformar o projeto em casa foi o grande desafio”. Desafio que poderia ajudar a explicar porque Aurelio Flores, mesmo condenado a um certo ostracismo editorial e corporativo, não foi impedido de temperar a severidade da arquitetura moderna paulista, ou por indicação de colegas de profissão que “não se dispunham a trabalhar interiores” (segundo relato do arquiteto à autora), ou atendendo clientes desejosos de “soluções de morar” para as próprias casas brutalistas.

Pátio Casa, Guarujá
Foto Otto Stupakoff

 

Caixas de trabalhar

Quando inicia o desenvolvimento de projetos institucionais, Flores continua apresentando caixas fechadas, mas desta vez discute outros conceitos e aprofunda pesquisas mais sofisticadas sobre materiais e sobre a tecnologia da construção, incluindo soluções de economia de energia que avançam debates sobre sustentabilidade, hoje quase banalizados. O edifício sede da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (1984), construído em São Paulo, é uma caixa com estrutura de aço, apoiada sobre pilotis, fechada com uma dupla pele de vidro no intervalo da qual cresce um jardim que controla a temperatura de maneira a proporcionar considerável economia de energia. Chamado para projetar o Edifício Moreira Salles, sede do Unibanco em Poços de Caldas, MG, que deveria ocupar o terreno onde a família instalou seu primeiro estabelecimento comercial, o arquiteto pondera: “depois de conhecer a história e visitar o terreno senti uma imensa responsabilidade: não era para fazer uma agência e sim um monumento”. A clássica formação do arquiteto moderno não permite confusões entre um prédio e um monumento, quando as três caixas fechadas e empilhadas de que é composto o projeto se impõe à paisagem com sua solidez revestida de granito e a leveza desafiadora de grandes vãos em balanço.

Já no projeto para o restaurante Gero (1993) em São Paulo, edifício apertado num lote de um dos bairros jardins de São Paulo, Aurelio Flores abre mão da caixa branca em favor da caixa de tijolos aparentes, assentados com detalhes de modulação classicizante, definindo um espaço sem janelas, mas profusamente iluminado por ampla zenital. A relação com a tradição da cidade se dá através desses tijolos históricos, especiais, oriundos da demolição das Indústrias Matarazzo, mostrados no seu desgaste e irregularidade centenários, testemunhas de um tempo em que nem tijolos se fazia direito em São Paulo. Para a filial do mesmo restaurante no Rio de Janeiro (2002), os tijolos irregulares que haviam se tornado “marca de sucesso” tiveram que ser repetidos, mas “com cara de São Paulo e sentido do Rio”, como assinala o arquiteto. Dessa vez a iluminação passa a inundar o ambiente do restaurante também a partir de janelas rasgadas do piso ao teto, concessão à luz especial da cidade, à exuberância da natureza local e ao “ar de alegria carioca”.

Pátio Casa, Guarujá
Foto Otto Stupakoff

 

As diferentes tradições que permeiam a vida e a formação de Aurelio Martinez tornaram possível a permanência de um diálogo, ao mesmo tempo respeitoso e criativo, com o passado ( inclusive com o passado próximo) sem que ele tenha tido que abrir mão da contemporaneidade do projeto. A Casa da Cultura, também em Poços de Caldas, caixa branca pousada no alto de uma escadaria de pedra, está instalada no mesmo terreno que um chalé tradicional, típico da cidade, restaurado para abrigar funções administrativas da instituição. Na mesma escala, os edifícios vizinhos falam de momentos diferentes da história local, intermediados na sua conversa por uma antiga jabuticabeira mantida no terreno. Mesma atitude e mesmo olhar do arquiteto quando, em 1984, é chamado pelo Unibanco para solucionar o problema da fachada do edifício Barão de Iguape, localizado na Praça do Patriarca, em São Paulo. Construído em 1956, projeto do escritório americano Skidmore, Owings and Merrill (SOM), com desenho do arquiteto Gordon Bunshaft, desenvolvido no Brasil pelos arquitetos Jacques Pilon e Gian Carlo Gasperini, o edifício vinha apresentando problemas de dilatação e ferrugem na caixilhariaria de ferro, com conseqüente deslocamento e queda de peças de mármore. Respeitoso em relação ao projeto original, reconhecendo sua importância no quadro da arquitetura contemporânea, Aurelio Martinez recusa-se a alterar o desenho original da trama da caixilharia, apenas substituindo o ferro e o mármore branco-Paraná por perfis e placas de alumínio, que vão manter o mesmo desenho e o mesmo efeito da fachada original.

Caixas de lembrar

Mas a grande síntese da obra de Aurelio Martinez Flores talvez tenha começado a ser ensaiada quando ele se debruçou sobre a casa senhorial de sua família, La Barranca, em Puebla de los Angeles. Herdada em péssimo estado de conservação, a edificação é abordada pelo arquiteto com o mesmo solene respeito tanto para com a tradição como para com a arquitetura que pratica. Ao longo da obra, dedica-se a atualizar o conforto de seus espaços, ao mesmo tempo que se lança em um criterioso trabalho de restauração da casa e das memórias da família, tratando as pesadas portas de madeira, os fragmentos dos afrescos murais, o revestimento em ladrilho da fachada composta com elementos classicizantes, o tradicional pátio colonial de convívio e, principalmente, recuperando o branco imaculado de muros e paredes. Branco de origem, branco de precisão, branco de luxo, branco de despojamento, branco de recato, branco de modernidade, branco de raiz. Branco elo de ligação de uma vida e de um trabalho que, na sua densidade, poderia resumir uma obra onde, decididamente, o menos é muito mais.

Casa Jardim Paulistano, São Paulo
Foto Rômulo Fialdini

 

notas

NE – Publicação original do artigo: SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Aurelio Martinez Flores: exercícios de colagem sobre fundo branco / Aurelio Martinez Flores: collage exercises on a white ground. Arqtexto, n. 13, Porto Alegre, 2008, p. 33-43.

1
Aurelio Martinez Flores – arquitetura. São Paulo, BEI, 2001.

2
LAGO, André Aranha Correa do. Perfil. In: Aurélio Martinez Flores – Arquitetura (op. cit.).

3
Índice de Arquitetura Brasileira
. Consultado em: http://143.107.16.159/scripts/wxis.exe/irdw/

4
Sobre as arquiteturas silenciadas pela crítica, ver: MAHFUZ, Edson da Cunha. Arquiteturas silenciosas. AU – Arquitetura e Urbanismo, n. 137, São Paulo, ago. 2005, p. 38-45.

5
BAEZA, Alberto Campo. Uma arquitetura do mais com menos. In: Aurélio Martinez Flores – Arquitetura (op. cit.).

6
LOUREIRO, Claudia; AMORIM, Luiz. Por uma arquitetura social: a influência de Richard Neutra em prédios escolares no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 020.03, Vitruvius, jan. 2002 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.020/813>.

7
Le Corbusier, une encyclopédie. Paris, Centre George Pompidou, 1987.

8
Sobre minimalismo, ver: OUDIN, Bernard. Architectures minimalistes <www.mediologie.com/numero9/art8.htm>; SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Menos é mais. Casa Vogue, n. 241, São Paulo, 2005, p. 44-47.

9
Sobre arquitetura paulista, ver: ZEIN, Ruth Verde. A arquitetura da Escola Paulista Brutalista 1953–1973. Tese de doutorado. Porto Alegre, FAU UFRGS, 2005; SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil – 1900-1990. São Paulo, Edusp, 1998.

10
ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo – 1947-1975. São Paulo, Projeto, 1986.

referências bibliográficas

LEATHERBARROW, David; MOSTAFAVI, Mohsen. On weathering – the life of buildings in time. London, MIT PRESS/Cambridge, 2005.

SALVI, Ana Elena. A antropofagia que nos (des) une: políticas norte-americanas no processo de urbanização brasileira. In: GITAHY, Maria Lucia; LIRA, José Correia (org.). Tempo, cidade e arquitetura – Aquiteses 1. São Paulo, Annablume, 2007.

sobre a autora

Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta, com mestrado pela Universidade de Paris X-Nanterre/França, e doutorado pela FAU-USP, professora adjunta e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem como principais temas de especialização e trabalho a arquitetura moderna e contemporânea e a preservação do patrimônio cultural.

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