O olhar sígnico
“Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais límpido
Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo
Perceber é conceber
Águas de pensamento
Sou a criatura
Do que vejo” (1)
Em Blanco, Marisa Monte canta sobre como, na continuidade entre perceber e conceber, ultrapassamos a fronteira da alteridade, da clara distinção entre o eu e o outro. O poema cantado, de Octávio Paz (na versão de Haroldo de Campos), se coloca em relação de continuidade temática com este estudo que explora um fragmento do mundo material que nos cerca do ponto de vista da semiótica, que concebe a relação entre nós e as coisas no mundo como um diálogo sígnico, por meio do qual participamos de um fluxo de pensamento que ultrapassa os limites da matéria envolvida; são “águas de pensamento” que criamos e que, ao mesmo tempo, “nos criam”.
Para o “olhar” deste trabalho tomamos como referência a ampla questão do significado para proceder à análise de dois diferentes modelos de banco público, presentes no corredor central do campus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande, MS. Esse corpus aparentemente pequeno, limitado e até mesmo banal, é visto como um componente da arquitetura e do lugar cujo significado em muito ultrapassa sua função de objeto destinado a um simples ato de sentar. Um caso exemplar sobre essa potencialidade dos objetos é observado por Décio Pignatari quando discorre sobre a cadeira Rietveld; ele escreve: “Esta não é apenas uma cadeira, apenasmente: é um pensamento. É uma cadeira pensando a cadeira, aspirando a ser todas as cadeiras possíveis, A cadeira, a ideia da cadeira e das cadeiras” (2). De modo análogo, os bancos a que nos referimos aqui, no seu posto de mobiliário público, desencadeiam concepções a partir da nossa leitura dos seus elementos formais, da sua relação com os respectivos contextos, com o lugar e os usuários.
O estudo apresentado aqui foi, antes de constituir-se como análise semiótica, fenomenológico. Incorporou um percurso em três passos; “ver, atentar para e generalizar”, elencados por Ivo Assad Ibri (3) ao se referir ao método fenomenológico de Charles Sanders Peirce (1839-1914), no qual é baseada a sua semiótica. Esse olhar que antecede e permeia a análise, uma vez direcionado para o lugar do nosso dia-a-dia, permitiu-nos observá-lo de um modo distinto do habitual e levou à seleção do corpus. Os dois modelos de banco nos quais sentávamos diariamente foram não apenas destacando-se no ambiente, mas evidenciando seus tipos distintos, o que instigou uma investigação dos seus significados.
A análise propriamente dita tomou como base a semiótica desenvolvida por Charles Peirce (4). São conceitos dessa semiótica que adotamos como base para a análise comparativa desses signos (os bancos). Para a semiótica os signos são a única forma de estarmos em relação com o mundo, já que nosso pensamento não estabelece qualquer relação direta com as coisas. Na definição peirciana “Um signo [...] é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém.” (4). Os três elementos envolvidos - o signo em si mesmo (aquilo que representa), o objeto (aquilo que é representado) e o interpretante (a representação) – participam da ação sígnica, chamada de semiose. Esse processo de atribuição de significado às coisas conta com a contribuição do intérprete e sua capacidade de estabelecer relações a partir do signo. O significado de algo é, portanto, uma construção conjunta, do signo e da mente que o interpreta.
Na nossa relação com o mundo - e também com a arquitetura, o design e os lugares -, estamos sempre em contato com redes de signos que medeiam as interpretações. “O ambiente apresenta-se como um aglomerado de signos: traços, tamanho, cor, textura, sons, formas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, juntos e dispersos, visto que não há convenção que os organize” (5). Nesse emaranhado sígnico germinam e se estabelecem as relações que movem a vida cotidiana, de forma aparentemente natural e praticamente imperceptível. Não enxergamos o ar, mas o respiramos, o que desencadeia uma infinidade de outros processos internos, não menos indispensáveis. Toda essa ação, que geralmente não dura mais que um simples segundo e envolve grande complexidade, apresentamos aqui como uma metáfora para o que acontece com os processos de apreensão e interpretação dos signos a que estamos submetidos em cada ato de pensamento. Dentre eles, o que envolve o ato de sentar, resultante de um hábito já internalizado pelas culturas humanas, elaborado e classificado nos seus diferentes modos ao longo de milênios.
No âmbito da sua semiótica Peirce (4) organizou os tipos de signo em diferentes tricotomias (baseadas na tríade do signo). Uma dessas tricotomias, a do signo em si, classifica o fundamento do signo em qualitativo, singular ou geral; o que significa dizer que os signos, eles mesmos ou têm certas qualidades como cor, textura, brilho etc. ou, além disso, alguma singularidade que os distingue dos demais ou possui alguma característica geral e comum com outras coisas da mesma classe. A outra tricotomia a que nos referimos, da relação entre signo e objeto dinâmico, é composta pelas relações de: similaridade, ou icônicas, quando as qualidades dos signos são semelhantes às dos objetos; contiguidade, ou física, quando as singularidades do signo são causadas pelo objeto; e convencionais, ou simbólicas, quando uma regra aprendida e internalizada pelo intérprete é associada aos elementos gerais do signo, por exemplo, para classificá-lo como banco, cadeira ou outros. Além dessas, é importante a tricotomia da relação entre signo e interpretante final, composta de rema, ou signo de possibilidade, dicente ou signo de fato e argumento ou signo do pensamento atuando por meio de relações gerais, as quais também nós exploramos aqui.
Santaella (6) propõe que essas tricotomias sejam vistas como “alicerces para as leituras e análises semióticas” e sugere diferentes estratégias de análise combinando elementos das tricotomias, conforme os tipos de signo e as intenções do analista. Aqui adotamos uma dessas combinações, que inclui três pontos de vista: o “qualitiativo-icônico”; o “singular-indicativo” e o “convencional-simbólico”. Os signos, quando pormenorizados nesses pontos de vista, fornecem informações que podem nos guiar em raciocínios mais elaborados, explorando os significados pertinentes à discussão proposta.
Lucrécia D’Aléssio Ferrara (7), ao abordar o pertinente tema do espaço urbano, afirma que “O espaço ultrapassa o passivo signo visual para aderir à complexidade do design, que exige uma perspicácia que ultrapassa todos os programas e transforma a visualidade em visibilidade, uma cognição disponível ao sentido”. É com uma transformação dessa natureza que nos envolvemos aqui, à medida que os objetos significam para nós algo mais do que mera aparência, mera fisicalidade, meras coisas.
Os bancos
A definição de “banco” equivale à de “assento, comumente tosco, feito de madeira, ferro ou pedra” (8); como assentos, estão ligados ao ato de “sentar”, que significa “tomar assento; fixar-se” (8). Mas, quando nos encontramos diante de um, o que nos leva a sentar nesses objetos? Nesses momentos precisamos de algo da ordem do sentir, na acepção de perceber por meio de qualquer órgão dos sentidos; essa experiência é acompanhada de uma cognição, que nos remete ao hábito de sentar e, ainda, nos convida a atualizar esse hábito com um novo sentar e um novo sentir.
Os bancos que compõem o mobiliário fixo do corredor central da UFMS são parte do conjunto inicial de edificações da Universidade, projetado pelos arquitetos Ségio Zaratin e Willian Munford, em 1967. O complexo constitui-se basicamente de blocos de estrutura de concreto com fechamentos em alvenaria e vidro, interligados por passarelas cobertas e entremeados por jardins. “O uso do concreto aparente em seu estado bruto é predominante em todos esses edifícios, mantendo uma unidade de linguagem em todos [...]. É o maior conjunto de arquitetura moderna dos anos 60/70, construído em Campo Grande” (9).
Nosso recorte nos leva a considerar, principalmente, o trecho do corredor central onde estão situados os quiosques e a livraria universitária, margeado a leste pelo estacionamento central e a oeste pelo Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS). Nesse espaço estão instalados 30 bancos fixos, sendo que 27 são modelos originas (FIG. 01) e 03 são modelos introduzidos recentemente - início de 2010 - (FIG. 02).
As relações entre a arquitetura e o mobiliário que ocorrem nesse projeto têm suas raízes na história. Os arquitetos passam a se dedicar ao desenho do mobiliário especialmente a partir do movimento inglês conhecido como Arts and Crafts (século XIX), que surgiu como resposta tanto aos exageros do período vitoriano quanto às limitações impostas pela produção em série trazida com a Revolução Industrial. William Morris, nome principal desse movimento, citado por Benevolo (10), cunha a seguinte definição de arquitetura:
“A arquitetura abrange a consideração de todo ambiente físico que circunda a vida humana; não podemos subtrair-nos a esta, enquanto façamos parte da civilização, pois a arquitetura é o conjunto de modificações e alterações introduzidas na superfície terrestre tendo em vista as necessidades humanas, excetuando-se apenas o deserto puro.”
Conforme analisa Emery (11), “a partir de este momento es cuando la tarea del arquiteto abarca tanto la concepción del edificio como el diseño del interior y de los objetos que lo complementan”; em tradução livre: é a partir desse momento que a tarefa do arquiteto abrange tanto a concepção do edifício quanto o design do interior e dos objetos que o complementam. Essa concepção de que “[...] o projeto de um grande edifício e o de uma simples cadeira diferencia-se apenas nas proporções, não no princípio”, conforme afirmou Gropius (12), levou e ainda leva os arquitetos a gerenciar as relações entre o edifício e o mobiliário, por exemplo, de modo que ambos sejam percebidos como parte de um todo.
Perceber esse todo implica em tomar a arquitetura como portadora de um tipo de organização, de ideia que deve poder ser compreendida por nós. Isso que é explorado pela semiótica é também objeto de reflexões dentro da própria arquitetura, como podemos ler nas palavras de dois grandes mestres, Le Corbusier (13) e Robert Venturi (14). De acordo com o primeiro:
“A arquitetura tem destinos mais graves; suscetível de sublime, ela toca os instintos mais rudes pela sua objetividade; solicita as faculdades mais elevadas, pela sua própria abstração. A abstração arquitetural tem de particular e de magnífico o fato de que se enraizando no dado bruto, ela o espiritualiza, porque o dado bruto não é mais que a materialização, o simbólico da ideia possível. O dado bruto só é passível de ideias pela ordem que projetamos nele. As emoções suscitadas pela arquitetura emanam de condições físicas inelutáveis, irrefutáveis, hoje esquecidas.”
O caráter polissêmico da arquitetura foi depois ressaltado por Venturi (14): “Uma arquitetura válida evoca muitos níveis de significado e combinações de enfoque: o espaço arquitetônico e seus elementos tornam-se legíveis e viáveis de muitas maneiras ao mesmo tempo”. Coelho Netto (15) ainda ressalta o especial cuidado que envolve a questão arquitetônica por esta ser considerada uma das poucas formas de expressão artística com a qual as grandes massas têm contato de modo mais direto e corriqueiro.
Trabalhando no campo da significação do “design em espaços”, Ferrara (7) trata das tangências entre diferentes universos sígnicos experienciados fenomênica e epistemologicamente:
“design que se entende como fenômeno de linguagem onde se encontram e atritam a arquitetura, a cidade, o desenho industrial de objetos, o design gráfico, a comunicação e a programação visual influenciados tanto pela complexa realidade global que atinge todos os espaços como, sobretudo, pela multiplicidade visual da imagem no mundo informatizado. [...] O design em espaços é, portanto, uma realidade tanto fenomênica como epistemológica. Ou seja, é flagrado concretamente nas manifestações sígnicas, nas marcas passíveis de serem percebidas e lidas no espaço, ao mesmo tempo em que as correlações interpretativas desses signos acabam por gerar um conhecimento do espaço enquanto objeto que tem no design sua dimensão representativa.”
Essa cadeia de signos em fluxo tem na arquitetura uma forma de ordenação mínima do sentido. Parafraseando Coelho Neto (15), arquitetura é, em certo sentido, “Organizar o espaço e, mesmo, mais que isso, criar o espaço”. Mas é na dimensão do tempo que a humanização e a pluralidade de fenômenos que integram a experiência com esse espaço constroem significados que conseguem transformá-lo em - “desenhar” o - lugar.
O recorte qualitativo-icônico
“Sob o ponto de vista qualitativo-icônico são analisados os aspectos qualitativos de um produto, peça ou imagem, ou seja, as qualidades aparentes, suas cores, linhas, volumes, textura, luminosidade, composição etc.” (6). Aqui os dois bancos são submetidos a esse ponto de vista, iniciando pelo banco original e seguindo com o banco introduzido.
O modelo do banco original apresenta formas que aproximam o artefato do conceito de minimização, onde se busca obter um máximo de efeito com um mínimo de elementos. Pode ser descrito como uma peça única e retilínea no sentido do comprimento que, mantendo uma área de assento plana, desenhou uma curva para baixo nas extremidades laterais, o que dá sustentação à peça. Sua estrutura é de concreto armado, porém no seu exterior paira a uniformidade do cimento cinza traduzido em concreto aparente. A composição é simétrica, tanto na vista frontal quanto lateral, o que colabora com a sensação de equilíbrio, “a referência visual mais forte e firme do homem, sua base consciente e inconsciente para fazer avaliações visuais” (16). As arestas foram arredondadas gerando mais conforto visual e segurança aos usuários. Na textura já parcialmente desgastada pelo uso ainda é possível perceber a marca deixada pela fôrma que serviu de molde aos bancos, mostrando um preciosismo desejável quando se trabalha com o concreto em seu estado aparente. Nesse caso, essa textura visual e tátil remete à imagem de uma sequência de ripas de madeira lado a lado.
O modelo do banco introduzido também apresenta simetria, porém apenas frontal, já que apresenta encosto; seu desenho é mais dispendioso, com as curvas do assento e do encosto em diferentes direções; os cantos frontais são arredondados, contudo as arestas laterais permaneceram “vivas”. Também é de concreto aparente, mas sua textura tátil e visual é lisa.
A textura “ripada” do banco original que, conforme observamos acima decorre da madeira usada na fôrma (relação indicial), remete iconicamente a outro objeto de referência, ainda mais sutil, vez que essa imagem de ripas de madeira lado a lado conecta-se vagamente na nossa memória às ripas de madeira do típico “banco de jardim”, cujos assentos e encostos, sobre estrutura de ferro fundido, são feitos de ripas de madeira (FIG. 03), De modo análogo, o desenho do banco introduzido tem algo similar a esses típicos bancos de jardim, na linha curva entre assento e encosto e na separação que faz entre o assento/encosto e o pé do banco. Ambos compartilham, portanto, um mesmo objeto de referência, enquanto se distinguem quanto às qualidades desse objeto a que se referem.
Outros objetos de referência se apresentam nos dois casos: enquanto o desenho do banco original remete - sem ser uma réplica - às linhas observadas nos mobiliários desenvolvidos por vários arquitetos no modernismo, a exemplo da cadeira Butaca de Alvar Aalto, criada entre 1930 e 1933 (FIG. 04), ou mesmo às curvas encontradas no único projeto de autoria do arquiteto modernista/brutalista Vilanova Artigas em Campo Grande, projetado em 1974 (FIG. 05), o modelo do banco introduzido é uma réplica de um tipo de banco de concreto encontrado frequentemente em praças públicas hoje; nas praças, diferentemente do que ocorre no campus, eles normalmente trazem impressa no encosto alguma propaganda.
O recorte singular indicativo
No seu aspecto indicial os bancos atendem prioritariamente a necessidade de sentar, estimulada ainda pelo caráter de local de permanência que assume o largo corredor (seis metros de largura) no qual eles se encontram. Esse foi intensificado com o surgimento dos quiosques (parte deles voltados à alimentação rápida). Originalmente existem três bancos para cada quiosque, geralmente localizados no limite da área coberta em frente aos quiosques, mantendo um espaço de passagem entre os bancos e o balcão de atendimento.
O modelo do banco original, por não possuir encosto, tem uma baixa definição no que se refere ao modo de sentar, já que deixa livre ao usuário a escolha da posição em que este deseja se sentar, se voltado para a parte interna do corredor ou para a externa, ou até mesmo na lateral do banco, pois este possui características ergonômicas para tal. Essa é uma característica muito apreciada por seu público, composto em sua maioria por jovens universitários que estão sempre prontos a explorar essa versatilidade da peça.
Já o modelo do banco introduzido, justamente por possuir encosto acaba induzindo o usuário a assumir uma única posição para sentar, voltado para o interior do corredor, desestimulando as demais. Conduz, nesse sentido, à repetição de um hábito tradicional de sentar, comum tanto ao típico banco de jardim quanto aos bancos de praça de concreto (citados aqui) e às cadeiras em geral.
Pode-se questionar a ausência de encosto no modelo original, dado que esse é um elemento de conforto ao sentar, associado a um sentar correto. De outro lado, também, pode-se perguntar o que é mais apropriado nesse caso específico, de bancos concebidos para serem utilizados nos intervalos das aulas, ou seja, em curtos períodos de tempo, por um público universitário: sua eficiência em reafirmar um hábito de uso ou a versatilidade do design para uma variedade de usos?
Ainda sobre o conforto do usuário ao sentar, propomos considerar que, na releitura que fazem do modelo do típico banco de jardim (em um caso é a madeira que é referenciada, em outro é a linha que desenha o assento e o encosto), a substituição da madeira pelo concreto tem implicações no conforto térmico, pois a madeira tem comportamento térmico (inércia, absorção e condutividade) distinto e, enquanto esta tem por característica apresentar pequenas oscilações de temperatura, como se fosse uma peça “morna”, o concreto oscila mais; quando na sombra, é gelado, e quando exposto ao sol, é extremamente quente. Nos dois modelos essa questão térmica é a mesma, mas afeta os usuários de modo distinto em razão do desenho das peças. No modelo do banco original, sem encosto, o usuário não toca nele partes do corpo que normalmente são protegidas por peças de roupa mais leves, como camisetas de algodão, o que ocorre no modelo do banco introduzido. Já na parte do assento a questão da temperatura não afeta do mesmo modo, pois normalmente os jovens estão trajando calças jeans, cujo tecido grosso protege essa parte do corpo dessas mudanças bruscas de temperatura.
Algumas diferenças entre os dois bancos em análise manifestam-se nos detalhes particulares de cada um, que indicam diferentes graus de cuidado com o design, a exemplo da base do pé do modelo do banco introduzido, na qual percebemos um tipo de emenda de cimento utilizada para fixar o banco no solo, que assume uma aparência grosseira e de improviso, diferente do modelo do banco original que apresenta fixação interna, invisível aos usuários. No modelo introduzido essa base, o pé do banco e a peça que forma o assento e o encosto são fabricados separadamente e juntados para compor o banco; contudo, o desenho de cada uma dessas partes se apresenta à percepção tal como se tivesse sido concebido em separado dos demais; diferentemente do desenho do banco original, que estabelece uma continuidade visual entre o assento e o pé, fruto do design que os concebe como uma peça única. Tais observações podem parecer pequenas, e normalmente passam despercebidas, contudo, à medida que as percebemos insistem em aparecer em primeiro plano.
O recorte convencional simbólico
Essas peças de mobiliário urbano nos permitem tecer certas generalizações acerca de sua tipologia, concordando com Argan (1909-1992), que diz ser “legítimo pressupor que as tipologias sejam produtos ao mesmo tempo do processo histórico da arquitetura e dos modos de pensar e de trabalhar de certos arquitetos” (17).
Nesta análise do caráter simbólico lemos os bancos como ligados a diferentes referências tipológicas e a discursos distintos dentro da história. Os legi-signos, ou os elementos eidéticos desses artefatos, por meio dos quais acessamos as normas ou regras de design que ambos seguem, analisados no modelo do banco original e no modelo introduzido, levam a fazer considerações sobre suas referências, respectivamente, no modernismo e no pós-modernismo. Essas, cabe ressaltar, estão carregadas de juízos de valor construídos pela história em um século (XX) cheio de complexidades e para o qual o pós-modernismo é lido, na relação com o modernismo, como uma espécie de rebaixamento da arte e da arquitetura; algo que podemos ler na fala de Décio Pignatari (2):
“A Revolução Industrial, como não podia deixar de ser, abateu-se também sobre a arte e a arquitetura; do impacto nasceram a arte e a arquitetura chamadas “modernas”, com seu chuveiro de ismos e movimentos diversos, uns propondo uma metaarte (neoplasticismo, desenho industrial), outros uma antiarte (Dada, Duchamp), até atingirmos a descaracterização da arte atual (depois das artes pop, conceitual, pobre, mínima, etc.) e a chamada arquitetura ‘pós-moderna’, de Charles Jencks, quando o crítico Peter Blake julga que já é hora de parodiar Louis Sullivan e seu famoso ‘a forma segue a função’, ao declarar que ‘a forma segue o fiasco’.”
O discurso modernista mais generalizado defendia uma revisão dos valores arquitetônicos associada aos avanços da industrialização, que submetia a estética (forma) à ética (função), o que foi interpretado por muitos como um funcionalismo estrito. As ideias pós-modernistas, por sua vez, originam-se nas críticas às experiências mais reducionistas da arquitetura moderna e ao abandono dos valores simbólicos da arqutitura. Nas palavras de Ghirardo (18): “Na arquitetura, em geral, o pós-modernismo é compreendido como fenômeno estilístico. Em primeiro lugar, porém, deveria ser entendido no contexto daquilo a que o movimento se opôs e, em segundo lugar, daquilo que afirmou”. A interpretação meramente estilística pode ser considerada, também, um uso reducionista do significado do pós-modernismo.
O modelo do banco original caracteriza-se como uma réplica da regra modernista à medida que apresenta um tipo de forma mínima, obtida pela simplificação das exigências funcionais (basta sentar e é dispensável encostar). Associado ao uso do concreto aparente remete, ainda, à vertente do modernismo conhecida como brutalismo; no caso brasileiro, o brutalismo paulista, que teve disseminação em Campo Grande entre as décadas de 1960 a 1980. É representante de uma transação de tipos do grande centro (São Paulo) para esta região “periférica” (Campo Grande), além de obras de arquitetos locais, uma residência projetada por Vilanova Artigas (FIG. 05) e localizada na área central da cidade. O banco acompanha, assim, o conjunto arquitetônico da própria UFMS, também um exemplar modernista, sendo sua raiz brutalista observada em toda a parte original do campus, como se pode ver nos projetos do Restaurante Universitário (FIG. 06) e do Teatro Glauce Rocha (FIG. 07).
Já o modelo do banco introduzido usa o concreto, como no banco original, todavia, diferentemente daquele, não cria uma nova síntese a partir das suas referências. Antes se apresenta como uma tentativa de imitação do modelo de referência e à revelia das possibilidades disponibilizadas pela plasticidade e pela resistência do material usado, o concreto, para explorar uma solução de design, por exemplo, tanto para as junções das partes de que é composto (entre si e com o piso) quanto para criar uma síntese formal e funcional própria. Está, nesse aspecto, mais próximo de práticas pós-modernistas reducionistas, vez que se caracterizara pela apropriação das formas de um modelo centenário de banco e, ao mesmo tempo, de um material novo, sem ser mais que uma leitura superficial desse modelo.
O banco original, em que pese seu desenho abstrato e mínimo, inicialmente sem vínculos claros com características locais, adquiriu ao longo dos anos - assim como a arquitetura de que é parte -, usos e um significado de pertencimento, hoje associados ao local. A inserção no campus do modelo do banco introduzido, a partir disso, significa mais do que um problema de desenho do próprio banco; significa uma falta de leitura adequada do espaço ou um descompromisso com as consequências da ação. Uma atitude, talvez, meramente ordinária; todavia, a condição de patrimônio público do campus exige lê-la a partir de um compromisso com o papel da arquitetura para nos representar adequadamente.
Em síntese, tanto o banco introduzido é diferente do banco original, considerados os dois modelos em si mesmos, quanto o seu funcionamento é, talvez, inadequado ao grupo de usuários que é predominante no local. Ao mesmo tempo, também, que está dissociado da arquitetura do campus e, ainda, vincula-se a uma interpretação reducionista das suas próprias referências. Isso tudo provoca um estranhamento da sua razão de estar nesse local, muitas vezes sentida pelos usuários, ao ver e ao sentar, mas nem sempre bem compreendida.
Considerações finais
Após ver e sentir esse corpus, chegamos a uma visão desses fatos sígnicos que, se não os esgota totalmente, explica o que nos levou a elegê-los para o estudo. Assim, observando os bancos e as questões envolvidas, em um movimento simultâneo, em um espaço também simultâneo, vemos que exemplificam o modo como o convívio de elementos ora similares, ora distintos, tanto entre si quanto em relação aos seus objetos de referência, nos diz tanto pelas suas diferenças quanto pelas suas convergências, as quais cabe à análise resolver na relação com aquilo que leva o analista a dedicar-se às questões que lhe ocorrem. A solução, neste caso, aponta para conclusões que não são propriamente “felizes” naquilo que falam sobre o espaço do nosso dia-a-dia, mas têm o mérito de nos fazer conhecê-lo melhor e dar a conhecer.
Observamos que o modelo do banco original é mais conexo com a tipologia arquitetônica do campus da UFMS, evidenciando um desenho comprometido com a síntese das referências e com um diálogo entre as diferentes escalas de design no espaço. Dessa forma percorreu sua história como um agente constituinte da noção de lugar que hoje tipifica esse espaço, ainda permitindo variações que enriquecem as áreas de convivência do campus (FIG. 08).
O típico banco de jardim que é objeto de referência dos dois modelos de banco analisados continua sendo interpretado por designers do mundo todo, o que o reafirma como uma forte referência para esse tipo de objeto. Exemplo atual de síntese entre essa referência, novos materiais e recursos tecnológicos pode ser observado nos bancos componentes do mobiliário urbano utilizado em uma praça em Amsterdã, capital holandesa (FIG. 09).
A implantação do modelo do banco introduzido na UFMS, em substituição aos modelos originais que precisavam de reparos, demonstra uma atitude aparentemente ordinária e inofensiva, mas que compreendemos ter consequências para além dela. No caso ilustrado na FIG. 10 vemos que o quiosque que recebeu os bancos nos modelos do banco introduzido no começo do ano de 2010 começou a inserir outros elementos móveis (as mesas e cadeiras de plástico), que destoam do entorno em um grau talvez ainda maior; além disso, resultam em prejuízo ao fluxo dos transeuntes, à função de circulação e ligação desse espaço, que já não convive mais com a de permanência sem causar incômodo, tanto aos transeuntes quanto aos que usufruem dos serviços do quiosque.
Lemos nesses objetos, portanto, uma conduta que revela algo para além dela, com consequências, também, para além dessa analisada aqui. Trata-se da ausência de uma concepção de manutenção desses espaços públicos que seja fruto de uma compreensão da sua atual condição, das relações entre a arquitetura e o espaço, do uso do espaço, da constituição de um lugar que essa arquitetura iniciou há mais de quarenta anos e que é hoje parte da identidade da UFMS, da relação entre o lugar e os usuários.
As questões implicadas no caso citado aqui são as nossas questões; razão pela qual nos tornamos responsáveis por discuti-la. Essas, contudo, à medida que têm um caráter particular e um outro mais geral, falam, de algum modo, de muitos outros bancos, do ato de sentar, da relação entre design, arquitetura, espaço público e pessoas.
Por fim, o desafio dessa trajetória semiótica pode ser lido como o desafio de fazer jus à ideia de que “perceber é conceber”; e a concepção a que se chega assume, como a poesia, que “é minha criação isso que vejo” e que “sou a criatura do que vejo”.
notas
NA – O artigo foi apresentado e consta nos anais do 3º SEMINÁRIO INTERNACIONAL AMÉRICA PLATINA, 3 a 6 de Novembro de 2010, Campo Grande – MS.
1
MONTE, Marisa. Barulhinho Bom: uma viagem musical. Produzido por Arto Lindsay e Marisa Monte. Rio de Janeiro, Estúdio Impressão Digital. EMI Music Ltda, 1996.
2
PIGNATARI, Décio. Semiótica da Arte e Arquitetura. 4. ed. Cotia, SP, Ateliê Editorial, 2004. 186 p.
3
IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo, Perspectiva/Hólon, 1992. 138 p.
4
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução: José Teixeira Coelho Neto. 4. ed. São Paulo, Perspectiva, 2008. 337 p.
5
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. A Mudez e a Fala de um Signo. In: OLIVEIRA, Ana Claudia; SANTAELLA, Lucia. (Org.). Semiótica da Cultura, Arte e Arquitetura. São Paulo, EDUC, 1987. p. 169-177.
6
SANTAELLA, Lucia. Semiótica Aplicada. São Paulo, Thomson Learning, 2007. 186 p.
7
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Design em Espaços. São Paulo, Edições Rosari, 2002. 190 p.
8
FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, F. Marques (Org.). Dicionário Brasileiro Globo. 16. ed. Rio de Janeiro, Globo, 1993.
9
ARRUDA, Ângelo Marcos Vieira de; COSTA Mário Sérgio Sobral; MARAGNO, Gogliardo Vieira. Arquitetura em Campo Grande. Campo Grande, UNIDERP, 1999. 261p.
10
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 1994. 813 p.
11
EMERY, Marc. Muebles Diseñados por Arquitectos. Barcelona, Editorial Stylos, 1984. 276 p.
12
GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. Tradução J. Guinsburg e Ingrid Dormien. 6. ed. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001. 220 p.
13
CORBUSIER, Le. Por uma Arquitetura. Tradução Ubirajara Rebouças. 6. ed. São Paulo, Perspectiva, 2002. 205 p.
14
VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. Tradução Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 231 p.
15
COELHO NETTO, J. Teixeira. A construção do Sentido na Arquitetura. 5. ed. São Paulo, Editora Perspectiva, 2002. 178 p.
16
DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. Tradução de J. L. Camargo. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2003. 236 p.
17
ARGAN, Giulio Carlos. Sobre a Tipologia em Arquitetura. In: NESBITT, Kate (Org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução de Vera Pereira. São Paulo, Cosac Naify, 2006. p. 267-273.
18
GHIRARDO, Diane Yvonne. Arquitetura contemporânea: uma história concisa. Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo, Martins Fontes, 2002. 304 p.
sobre os autores
Alex Nogueira Rezende possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFMS (2005), especialização em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008) e é mestre pelo Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens da UFMS (2012). Atualmente é professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMS.
Eluiza Bortolotto Ghizzi possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pelo Centro de Ensino Superior de Campo Grande (1985) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUCSP (2005). É professora da UFMS, com atuação na graduação (Artes Visuais e Arquitetura e Urbanismo) e na pós-graduação (Mestrado em Estudos de Linguagens). É líder do grupo de pesquisa Estética e Linguagem na Arte e no Design (UFMS-CNPq)