Um contexto de requalificação urbana: o Porto Maravilha
Segundo Gottdiener, a desvalorização do ambiente construído se dá por meio do próprio “processo capitalista de crescimento urbano” (1), em que os espaços da cidade se desenvolvem desigualmente. O autor se reporta ao conceito de Burgess para zona de transição, referente às áreas negligenciadas, adjacentes ao centro da cidade, que seriam resultantes da ação de especuladores imobiliários. Na área portuária do Rio, podíamos observar uma situação análoga, no momento precedente ao da operação urbana que subsidia o Porto Maravilha. Eram antigos terrenos do Distrito Federal, negligenciados, somando cerca de 5 milhões de metros quadrados; ocupados, principalmente, pela Companhia Docas e Rede Ferroviária Federal. Não por acaso, “em 2009, diante de um inédito entendimento político entre os três níveis de governo, fortemente motivado pela candidatura do Rio de Janeiro à sede dos Jogos Olímpicos de 2016, foram firmados os termos” (2), que iriam viabilizar o projeto do Porto Maravilha, por meio da “transferência ao município de inúmeras propriedades do governo federal, dono de, aproximadamente, 60% dos imóveis com potencial construtivo da região” (3). Criaram-se, desta forma, as condições que estavam sendo aguardadas pelo ciclo da especulação: a produção de um “espaço liso”, conforme Guattari, em que já “não há mais os mesmos tipos de circunscrições ou delimitações” (4) a incidir sobre um dado local.
Com as obras impulsionadas pelo governo Pereira Passos, a inauguração oficial do porto ocorreu em 1910 (5), quando já estava construído o dique da Gamboa, com a retificação da orla. As benfeitorias continuaram até meados dos anos de 1930 “e o porto chegou ao final da década de 1950 operando a plena carga” (6). O posterior declínio das atividades portuárias ocorreu em paralelo ao processo de “esvaziamento econômico do Rio” (7), após a transferência do Distrito Federal para Brasília. A construção do elevado da perimetral foi outro dos fatores determinantes para a perda de atratividade da região e marco de sua degradação ambiental.
Deste quadro, nos interessa destacar alguns aspectos. Segundo dados da CDURP (8), o IDH (2012) médio dos bairros que compõem o Porto Maravilha é de 0,775, sendo que, no ranking geral do município (2000), o conjunto compreendido pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo fica na 97acolocação dentro de um universo de 126 bairros ou conjuntos de bairros (9). Com base nesses dados, fica clara a defasagem desses bairros em relação ao restante da cidade, não obstante a sua posição central. Foram contabilizados na região, aproximadamente, 32.000 moradores, com a projeção de aumento da população residente para 100.000 moradores em 10 anos (10), como resultante da requalificação urbana.
A Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro foi criada pela Lei Municipal nº 101/2009, propondo uma reestruturação local abrangente, com requalificação dos espaços públicos em diversos aspectos. De toda forma, será o desenvolvimento imobiliário de perfil comercial que deverá causar os maiores impactos, modificando radicalmente o skyline do porto e adjacências. São, aproximados, 1,2 milhão de metros quadrados, com acréscimo de 4 milhões de metros quadrados em potencial construtivo dos terrenos, que poderão ser obtidos mediante a compra de CEPACS (11), alterando o uso do solo na região. Em especial na área da Av. Francisco Bicalho, teremos um gabarito de até 150 metros, sendo que, no trecho da Av. Rodrigues Alves próximo à Praça Mauá, teremos até 90 metros. O futuro próximo nos mostrará a realidade que irá advir desta promessa de Porto Maravilha.
Projeto e preexistência: o [MAR] e a inserção na praça Mauá
O Rio de Janeiro tem um histórico de transformações profundas em seus meios urbano e natural e, muitas vezes, “não respeitou passado, tradições ou valores consolidados” (12).
“Neste aspecto, revela-se a peculiaridade deste trecho da cidade que conseguiu preservar as antigas formas construídas e suas históricas funções urbanas, caracterizando processos espaciais de cristalização e resistência pouco comuns em nosso caso, sobretudo para áreas consideradas populares, dotadas de fatores privilegiados de localização” (13).
Um novo ciclo de transformação se encontra em curso no porto. Estas intervenções acontecem cerca de um século após os aterros que redesenharam a orla local. No caso presente, em que pese o conjunto de ações programadas para preservação do patrimônio e da cultura, temos que ressaltar o direcionamento dado às intervenções, no sentido de uma total mudança no perfil de ocupação em parte da região. Stuart Hall, ao analisar a correlação entre o global e o local, comenta sobre “identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; (…) que são o produto destes complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado” (14). O autor define que as culturas híbridas constituem “tipos de identidade distintivamente novos, produzidos na era da modernidade tardia” (15), caracterizando-se por uma condição compartilhada de tradução, um conceito que “descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais (…), irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas” (16).
Como se dá, neste caso, esta interseção entre história e cultura? Qual o ambiente social que caracteriza o entorno do MAR? Em que espaço se insere este museu e escola? Segundo Rabha, “de fato, a reforma urbana empreendida ao início do século [20], partindo do porto, orientou a cidade rumo ao sul” (17), apontando uma direção preferencial para os investimentos em desenvolvimento urbano, iniciando um processo que se manteve em curso durante todo o século 20. De modo distinto, a zona portuária se tornou um “enclave urbano sob jurisdição federal” (18), de caráter estritamente funcional, malgrado sua ocupação residencial. Neste contexto, se registra o papel estratégico da Praça Mauá, como ponto de conexão entre porto e cidade, desde o período de formação da cidade colonial.
Chegando à Praça Mauá pela Av. Rio Branco, temos à esquerda o edifício A Noite – primeiro arranha-céu da cidade e registro da vitalidade da praça na década de 1930; à direita, um exemplar pós-moderno, localizado no número 1 da Av. Rio Branco. Seguem as áreas militares de acesso restrito e, à frente, o elevado da Perimetral se impõe, bloqueando parcialmente a visão em direção ao Píer Mauá. De acordo com o cronograma das obras, em 2016, já teremos a vista livre para o píer e a baía, para onde poderemos seguir a pé pela praça. Na sequência, à esquerda, temos o Museu de Arte do Rio [MAR], resultando da conjugação de três construções preexistentes. Primeiro, o Palacete D. João VI, edifício eclético, erguido na década de 1910; antes de integrar o MAR, encontrava-se sem uso e deteriorando-se visivelmente. Depois, consideramos a estrutura da marquise que atendia ao Terminal Rodoviário Mariano Procópio, datada da década de 1950 e tombada. Por fim, temos uma edificação modernista, onde funcionava o Hospital da Polícia Civil José da Costa Moreira. Todo este conjunto é vizinho do antigo edifício da Imprensa Nacional, hoje ocupado pelo Departamento de Polícia Federal (19).
Estes equipamentos não emprestavam vitalidade à Praça Mauá, devido às condições em que se encontravam. Concordamos com Kamita, quando analisa que a praça está destinada a ser “uma espécie de grande antessala dessa nova cidade que se anuncia: o grande hall do Porto Maravilha” (20). Sob esta perspectiva, entendemos que tanto o MAR quanto o Museu do Amanhã, ocupando a área do píer, têm a função de elementos ativadores da Praça Mauá. Conforme coloca F. Porras, “el territorio se activa con la presencia de la arquitectura; la arquitectura se activa mediante el uso” (21). Entendemos que esta ativação se opera a partir de algumas frentes de projeto, seja pelos novos usos programáticos para equipamentos preexistentes de pouca atratividade seja pela expressão monumental que esta arquitetura irá assumir, ou, em certa medida, pelo espaço intermediário que o projeto coloca em evidência ao criar uma praça coberta, entre os edifícios adaptados, que se configura como um pequeno satélite que orbita em torno da grande praça.
“La activación es siempre transformadora, nunca inerte o indiferente. La activación no es solo una respuesta directa a un acontecimiento o a una provocación, sino que implica compromiso y resultados de reacción en el sentido químico de la palabra, de tranformación o de progresión” (22).
No MAR, equipamentos independentes, abrigando escola e museu, são interligados por uma cobertura, num gesto projetual que instaura o sentido de um único objeto conjugado. A respeito, Gauza afirma que o ato de cobrir é “una acepción que habla de la posibilidad de unir, de acoplar energías y géneros” (14). Vale ressaltar que a cobertura atua como marco de projeto, inserido na paisagem como constructo referencial de uma nova Praça Mauá, definida fortemente pelo Museu. Segundo o arquiteto Jacobsen, a cobertura foi desenhada de forma que pudesse ser vista de locais estratégicos do entorno, como marco singular para um novo olhar sobre o espaço, referencial e, ao mesmo tempo, poético (15). Neste contexto, lançamos mão do conceito de paisagem operativa, na medida em que entendemos que parte da função deste objeto arquitetônico é atuar como referencial na paisagem, como elemento a ser visto desde o seu entorno. Morales discute o conceito, trazendo para o debate a ideia de que “se trata de una singular ecología, entre lo que da a conocer la arquitectura y lo que ya existia. La arquitectura se incorpora como paisaje, es también paisaje y no objeto” (24).
Eventualmente, pode haver quem não concorde com o resultado poético aludido pelos autores do projeto. De nossa parte, entendemos que há, sim, uma poiesis (25) que está implícita; mesmo que os seus efeitos, a emoção que possa vir a despertar ou a sua apreensão sejam relativos às mais diversas interpretações. A referência a um espaço poético traz ao debate a relação entre arquitetura e arte e também questiona as bases para o entendimento do tema. Se uma condição de hibridismo se reflete na arquitetura, temos uma insubordinação às formas de representação comuns. Isto não impede o projeto de propor uma cobertura cuja forma se reporta a ondulações e superfícies líquidas, signos aproximados à temática portuária da Praça Mauá. A vinculação da arte e da poesia a um juízo de valor que lhes legitima, em sua própria condição, nitidamente extrapola os limites da criação e produção. Esta forma de julgar os méritos artísticos persiste, não obstante todos os movimentos de ruptura que registrou a história da arte. Teyssot lembra que essa questão decorre de ver a arte como representação, de modo a estabelecer parâmetros para a sua aceitação. O conceito de mimesis já propunha resolver este impasse recorrendo à imitação da natureza, mas o autor aponta que mesmo os filósofos gregos já haviam relativizado e ampliado os limites conceituais do termo. Assim, se por um lado a arte possibilita a representação de um ideal de natureza, por outro podemos também chegar a um “simulacrum, cópia degradada” (26).
Há que destacar o espaço entre os edifícios, vão que atua como elemento de diálogo com o entorno. Aqui, já verificamos o surgimento de um objeto de característica híbrida, composto não apenas pelos volumes construídos, mas também pelo espaço de transição entre volumes. Nesta composição, os dois edifícios passam a ser observados como elementos de fundo, num conjunto em que a atratividade e o protagonismo são exercidos pelo espaço intermediário, pelo vão gerado sob a cobertura ondulante. Deste modo, identificamos que o entre “seria la dirección ideal de un proyecto contaminado del medio que le rodea”. (27)
“Interesa, en efecto, esa capacidad de junta del vacio intersticial implícita en dichas configuraciones irregulares. Ese possible ritmo entre lo ocupado, lo omitido y lo enlazado: llenos, vacios y enlaces (o articulaciones), es decir, superficies, puntos y líneas que se interpelan en secuencias y combinaciones espaciales. El vacio no separa, entonces, sino que une” (28).
Ao questionarmos a relevância do espaço de transição gerado pela arquitetura do MAR, nos reportamos à crítica de Kamita, para o qual uma verdadeira integração com o urbano não acontece desde o momento em que o projeto preocupa-se em conectar-se tão somente com a Praça Mauá, negligenciando, em sua opinião, a integração com as demais vias circundantes. Em parte, concordamos que “a ideia de fazer dos pilotis uma praça só funciona a rigor na entrada” (29), já que uma linha divisória em painéis de vidro veda o acesso sob a maior extensão do edifício moderno. Também estamos de acordo sobre o fato de que a solução ideal para uma efetiva integração com o entorno se daria sem os painéis de vedação. Não concordamos, contudo, com a avaliação do autor quando aborda uma ênfase exclusiva no objeto arquitetônico, sem que o urbano esteja incluído no processo de projeto. Em nossa concepção, delineada ao longo deste artigo, o urbano integra o processo de projeto a priori, desde o ponto de vista da inserção do objeto arquitetônico como componente ativo de uma paisagem operativa. Por um lado, acreditamos que este maior potencial de comunicação que poderia ser fornecido pelos espaços intermediários e através dos pilotis, na verdade, não seria assim tão efetivo, visto que o edifício da Polícia Federal é tombado, com características de rigidez e peso que não dão ensejo a maior integração. Por outro, as necessidades de segurança, que apontaram a solução de vedação em parte do nível de acessos, não são apenas fruto do momento em que a praça está vivendo um ciclo de obras; historicamente, a região da Praça Mauá é popular, mas também zona em que se recomenda atenção à segurança.
Ainda que o MAR seja um marco da revitalização da Praça Mauá, em nossa opinião, o protagonismo no recinto da praça deverá ser exercido pelo Museu do Amanhã, dada a força do eixo determinado pelo Píer Mauá, sendo que o MAR tenderá a ser o elemento coadjuvante. Neste contexto de transformação urbana, se introduz o olhar estrangeiro de S. Calatrava. A escolha da assinatura nos faz refletir se a arquitetura europeia teria, de fato, uma contribuição diferenciada a nos oferecer neste momento. Que lições poderemos aprender neste intercâmbio? Qual será o legado cultural? O projeto do Museu do Amanhã trata da criação de um objeto ideal, pousado sobre uma plataforma regular que se estende sobre o mar. O Píer Mauá, visto deste modo, é uma ilha cuja realidade escapa à cidade circundante. Por outro lado, no caso do MAR, coube aos arquitetos brasileiros o desafio de lidar com a complexidade da condição urbana carioca, com suas preexistências, restrições e condicionantes de projeto.
A arquitetura do espetáculo e uma visão sistêmica sobre o projeto
Do nosso ponto de vista, comentar a inserção da arquitetura na cidade parte de uma visão sistêmica de projeto, em que o edifício não é entendido mais como um objeto isolado ou mesmo como gestado a partir de um projeto autônomo, mas sim como resultado das inter-relações complexas entre objeto e território de inserção e, ainda, como sobreposição de diferentes instâncias de projeto.
“A visão sistêmica aparece como uma alternativa tanto a crise do objeto e da cidade fragmentada, como à falência da ideologia do plano. O projeto que reúne arquitetura e cidade rompe com ambos, propõe um terceiro termo e responde com uma radical hipótese de equilíbrio cuja estratégia é ser uma estrutura mínima e com alto grau de organização capaz de incorporar a complexidade inerente á superposição de inúmeros programas” (30).
Em que medida podemos compreender o MAR do ponto de vista sistêmico? Primeiramente, isto se verifica dentro da própria prática do projeto civil, em que à arquitetura cabe cada vez mais o papel de mediação dos diversos projetos técnicos que colaboram para uma resultante final. Também podemos considerá-lo como um equipamento público, componente de um projeto urbano mais abrangente, o Porto Maravilha. Depois, dada a especificidade de seu programa, temos em um mesmo edifício a conciliação entre a Escola do Olhar e o Museu de Arte do Rio, ou seja, um projeto de cunho pedagógico associado a outro museográfico. Finalmente, devemos avaliar que a arquitetura se condiciona aos direcionamentos que repercutem de projetos políticos e corporativos, desde que sua implantação é fruto de parceria entre a Prefeitura do Rio e a Fundação Roberto Marinho, além de contar com o patrocínio de organizações empresariais privadas e, ainda, com os apoios do Governo do Estado e do Ministério da Cultura.
Notadamente presente nas discussões do projeto Porto Maravilha, está o questionamento acerca da validade daquilo que se entende por arquitetura do espetáculo e de sua ênfase midiática. Como nos sugere a leitura de Villac, numa hipótese sistêmica perfeitamente equilibrada, uma arquitetura de ênfase marcadamente cenográfica não caberia. Nesta visão do artefato integrado a um sistema maior, operando em sintonia com suas demandas, o projeto deveria considerar prioritariamente as necessidades do coletivo. Um sentido de coerência, especialmente se considerarmos nosso contexto social latino-americano. Contudo, esta visão equilibrada dos sistemas operantes em projeto, sob certo aspecto, depende também de uma sintonia entre os diversos agentes e de uma visão compartilhada das demandas sociais. Se no projeto do MAR o espetáculo se presentifica, temos aqui uma mostra de sua inserção em um sistema propositadamente direcionado para este determinado fim.
Sobre este aspecto, nos perguntamos se o espetáculo já não estaria estabelecido como uma alternativa pós-moderna à monumentalidade. De certa forma, o monumental sempre esteve também a serviço das ideologias, subsidiado pelo capital, pois de outra forma sua realização efetiva não teria sido possível. Mas, se esta expressão já serviu de suporte a posicionamentos autocráticos, também lhe coube, em contrapartida, expressar as utopias sociais em arquiteturas apaixonadas. Nestes tempos de cenografia, arquitetura de catálogo e pastiche, a emoção em projeto acaba por ser colocada sob suspeita. No caso do MAR, não podemos nos esquecer das múltiplas dimensões de projeto associadas ao programa do edifício, extrapolando os limites operativos do projeto arquitetônico. Esse último é suscetível de contaminação, em seu processo interno, por estas outras instâncias e demandas, em especial quando se trata do projeto do próprio cliente, ou do conjunto de agentes externos que o personificam.
Interessa, neste caso, observar a determinante cliente, aproximando-nos outra vez de uma perspectiva sistêmica. Se o cliente é público, a resultante que irá se vincular ao processo projetual da arquitetura será, ela própria, parte integrante de um projeto político. O programa dado é também uma conexão entre diferentes códigos projetivos. A dimensão política e outras projeções que se refletem no programa, contaminam a dimensão operatória concernente à arquitetura. As imagens e desejos que resultam do cliente tanto podem ser frios ou conservadores quanto podem expressar a paixão ou a ilusão. De toda forma, se em determinado aspecto esta determinante cliente se tornar radical, então, certamente, chegaremos a um ditame coercitivo, que deverá levar o projeto de arquitetura quer a um alinhamento compulsório quer a uma adaptação estratégica.
A crise do objeto e a arquitetura híbrida
[Hibridação]: “interconexión directa y flexible (inmediata) entre elementos de naturaleza eventualmente opuesta – o contraria – que pueden dar lugar, hoy, a nuevas situaciones de cooperación y esqueje, de unión y multiplicación: a uma ‘naturaleza astuta’ capaz de vincular informaciones y de imbricar potenciales disolviendo los antiguos perfiles unívocos (puros, estancos) en acciones de mestizaje – en dispositivos híbridos – concebidos como decisiones tácticas frente a situaciones concretas, pero también como posibles combinaciones espaciales más abiertas, flexibles y polifacéticas” (31).
A exigência de uma dinâmica de adaptabilidade em projeto, talvez consista na própria essência da discussão do conceito de híbrido aplicado à arquitetura. M. Gausa analisa que “La naturaleza híbrida del proyecto contemporáneo alude a la actual simultaneidad de realidades y categorías referidas no ya a cuerpos armónicos y coherentes sino a escenários mestizos hechos de estructuras e identidades en convivencia comensalista”. (32). No caso do MAR, a condição de hibridismo pode ser lida por meio de alguns aspectos e associações, destacados do objeto arquitetônico. Uma primeira apreensão de sua arquitetura nos mostra o resultado da conjugação de componentes díspares cuja origem está distanciada no tempo. Temos então o eclético e o moderno coexistindo com as intervenções contemporâneas, em um todo unificado, mas não necessariamente coeso.
Entendemos que esta arquitetura híbrida escapa da noção de objeto ideal. J. M. Montaner se refere à crise do objeto moderno para propor uma discussão sobre o objeto que se insere em um sistema complexo, de alcance urbano ou territorial. Em outras palavras, o autor propõe que a ênfase do projeto deve se deslocar do objeto para as “relações e os espaços entre os objetos”. (33)
“A crise do objeto clássico como totalidade traz em si a impossibilidade de alcançar e legitimar a unidade, isto é, a incapacidade de expressar conteúdos unívocos, ou a dificuldade de encontrar soluções únicas, válidas e definitivas, com o poder de legitimação” (34).
Quando Montaner se refere ao clássico, pretende inferir que o movimento moderno se reportava aos seus valores idealizados, nos quais se destacava o objeto como uma entidade autônoma. Interpretamos que a autonomia deste objeto arquitetônico, a partir deste ponto de vista, começa a ceder devido à aceleração temporal que incide sobre o espaço contemporâneo. O projeto, em adaptação, deverá assim considerar este fator de temporalidade, para estar em consonância com as demandas atuais. “A solução é que a experiência arquitetônica consista na dinamicidade, no percurso dos espaços internos e externos, no desmembramento de objetos em sistemas de objetos”. (19) Este caráter adaptativo, frente a uma realidade marcadamente dinâmica, tem a possibilidade de assumir múltiplas formas, sendo que o objeto híbrido, de maneira geral, não se caracteriza pela reprodutibilidade ou padronização de procedimentos projetuais. Uma interpretação destas novas características projetuais se dá pelo conceito de amálgama:
“Podemos denominar amálgamas às formas cuja característica essencial é amoldar-se ao contexto mediante a justaposição de peças, as quais se fundem ou interpenetram, e, apesar de sua identidade fragmentária, compõem um todo unitário.” (35)
Retornando ao projeto do MAR, verificamos que sua identidade fragmentária compõe um único objeto imperfeito, sendo que entendemos a perfeição como parte daqueles ideais clássicos, hoje em crise. Contamos com um edifício eclético, tombado, do qual foram preservadas a volumetria e fachadas, adaptando-se no interior o programa de um museu; temos a estrutura preservada de uma edificação moderna, readequada para um programa de escola, da qual foi suprimido o volume do último pavimento para um equacionamento das alturas de ambos os prédios, as fachadas foram remodeladas com a aplicação de fechamentos translúcidos e os pilotis do nível de acesso foram destacados; o elemento preexistente restante, a marquise da rodoviária, reforça a horizontalidade do nível de acesso, tendo sido adaptada para áreas secundárias do programa. Restam as justaposições de elementos contemporâneos, que são responsáveis pela conexão entre os volumes e conferem uma unidade ao conjunto. Trata-se da cobertura sinuosa que flutua entre os edifícios, sustentada por apoios esbeltos; e de uma espécie de túnel rampeado de interligação entre os blocos, componente aéreo que parece enxertado, e que cruza, em suspensão, o vão central.
Estes componentes de caráter conectivo, no conjunto do museu, entendemos como intervenções mínimas, porém de grande efeito expressivo. Respondem por uma ruptura com a morfologia preexistente, espécie de comensalismo como um “tipo de parasitismo o clientelismo no forzosamente negativo” (36)
“Dichas situaciones pueden asimilarse, pues, a peraciones de macla, esqueje, acolpes – o injertos – entre códigos de información diferentes, insertados – o simplesmente dispuestos – unos sobre otros mayores” (37).
Outra aproximação possível discute a arquitetura refletindo uma corporeidade híbrida. Por um lado, esta abordagem nos remete à relação entre espaço e corpo; ao “caráter de inseparabilidade” (38) entre ambos. Guattari destaca o potencial de agenciamento de toda arquitetura, seu caráter autorreferencial, subjetivo. Desse ponto de vista, para que as edificações ganhem vida, “são as peças das engrenagens urbanísticas e arquiteturais, até em seus menores subconjuntos, que devem ser tratadas como componentes maquínicos” (39). Por outro lado, nesta referência ao corpo, retornamos ao conceito de mimesis, da imitação de uma natureza corpórea. Os novos elementos enxertados são interpretados como próteses ou transplantes, a partir dos quais o corpo maior é ativado, ganha vida. Segundo Teyssot, “uma espécie híbrida, quase monstruosa, o transplante é uma espécie de carne e aparelho (…) um orgão livre” (40), que após ser enxertado no “corpo hospedeiro (…) se torna num outro, uma entidade estranha capaz de substituir uma parte doente no organismo receptor, mas ao mesmo tempo criando novos regimes de regulação, ocasionando outro regime de normalidade”. (41) Tais enxertos podem assumir assim um caráter maquínico, no que este corpo arquitetônico passaria a ser percebido também como um cyborg, que seria um “produto híbrido da revolução da informação”: “o cyborg deslocou o limite entre organismo e máquina através de uniões de dispositivos cibernéticos com organismos biológicos” (42) Desta forma, dispositivos e circuitos, mecanismos e demais componentes conectivos ganhariam relevo projetual. Seria o caso dos painéis pivotantes, que regulam a entrada das circulações verticais que condicionam a visitação, dos componentes de interligação entre blocos e, se determinadas intenções houvessem de fato se confirmado em projeto, da previsão de conexão teleférica com o Morro da Conceição, em ligação direta através do terraço do museu (43). O cyborg, todavia, nos informa que não se trata de um projeto definitivo. Ao confundir sua natureza com a dos aparatos tecnológicos – sempre a ser superados pela última geração de seu tipo –, este espécime híbrido traz consigo a própria obsolescência programada.
Considerações finais
Somente o futuro mostrará o verdadeiro papel que o MAR irá assumir. De toda forma, temos como produto do projeto um museu e uma escola. Esta última tem como proposta educativa atuar na formação continuada de professores da rede municipal e de estudantes de Artes, além de prever processos de inclusão de moradores do entorno. Diante desta atuação, acreditamos que o projeto de formação da Escola do Olhar mereça nossos votos de confiança.
Precisamos considerar, ainda, que o museu, objeto de nosso estudo, é algo vivo, que se transforma constantemente pela incidência da arte. Lembramos que, como o MAR encontra-se em estágio inicial, ainda não teve todo o seu potencial artístico explorado. Neste sentido, devemos aguardar que a arte cumpra o seu papel para melhor julgarmos os méritos do museu, dentro de seu propósito cultural.
Dentro de nosso interesse de pesquisa, destacamos a eficácia da estratégia projetual relacionada a uma arquitetura híbrida, gerada a partir da revitalização e conjugação de equipamentos preexistentes. Podemos considerar o MAR como um exemplo particularmente bem-sucedido, um modelo ágil de implantação de equipamento cultural na cidade do Rio de Janeiro. A inauguração do museu teve lugar em uma Praça Mauá interditada, onde o canteiro de obras do Museu do Amanhã mal começava a se organizar.
Finalmente, consideramos que o híbrido, como objeto imperfeito, fruto de um contexto contemporâneo, também pode gerar espaços poéticos, marcos referenciais para a cidade. Observamos, ainda, que este híbrido não traz soluções definitivas, mas antes aponta caminhos e novas estratégias de projeto (44).
notas
NA
Projeto de arquitetura de Bernardes + Jacobsen Arquitetura, com autoria de Paulo Jacobsen, Bernardo Jacobsen e Thiago Bernardes. Disponível em:<http://www.jacobsenarquitetura.com/projetos/?CodProjeto=12#sthash.JTRAfk97.dpuf>.
1
O autor comenta que “os especialistas da primeira Escola de Chicago”, caso de Burgess, não deixavam de simpatizar com as “ações dos especuladores da terra”, in GOTTDIENER, MARk. A produção social do espaço urbano. São Paulo, Edusp, 2010, p. 41.
2
DIAS, Sérgio. Rio de Janeiro e o Porto Maravilha, in ANDREATTA, Verena (Org.). Porto Maravilha e o Rio de Janeiro + 6 casos de revitalização portuária. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2010, p. 211, 218, 223.
3
Idem
4
GUATTARI, Félix. Espaço e poder: a criação dos territórios da cidade, in Espaço & Debates 16, Revista de estudos regionais e urbanos. Ano V, 1985.
5
CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro. Operação Urbana Porto Maravilha: Reurbanização e Desenvolvimento Socioeconômico. Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://portomaravilha.com.br/upload/cupula/apresentacao.pdf> Acesso em: 13 jun. 2013.
6
DIAS, Sérgio. Rio de Janeiro e o Porto Maravilha, in ANDREATTA, Verena (Org.). Porto Maravilha e o Rio de Janeiro + 6 casos de revitalização portuária. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2010, p. 211, 218, 223.
7
Idem
8
CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro. Operação Urbana Porto Maravilha: Reurbanização e Desenvolvimento Socioeconômico. Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://portomaravilha.com.br/upload/cupula/apresentacao.pdf> Acesso em: 13 jun. 2013.
9
SYRKIS, Olga MARtins Wehb; FIALHO Jr., Renato da Cunha. Porto do Rio: tendências e demandas, in SCHWEISER, Peter José ; CESÁRIO, Sebastiana (Org.). Revitalização de centros urbanos em áreas portuárias: entre a renovação e a preservação do patrimônio histórico: as regiões portuárias de Hamburgo, Belém e Rio de Janeiro. Coleção AFEBA, v.4. Rio de Janeiro, 7 Letras: AFEBA, 2004.
10
Fonte: CDURP, dados de 2012. Ver nota 7.
11
CEPACS: Certificados de Potencial Adicional de Construção. Fonte: ver nota 7.
12
RABHA, Nina MARia de Carvalho Elias. Bairros portuários: aspectos sociais e culturais, in SCHWEISER, 2004, p. 69, 70, 75. Ver nota 9
13
Idem
14
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011, p. 88-90.
15
Idem
16
Idem
17
RABHA, Nina MARia de Carvalho Elias. Bairros portuários: aspectos sociais e culturais, in SCHWEISER, 2004, p. 69, 70, 75. Ver nota 7.
18
Idem
19
Tombamento provisório, segundo registro do INEPAC. Obra de 1940, projeto de Aníbal de Melo Pinto. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/modules.php?name=Guia&file=consulta_detalhe_bem&idbem=21
20
KAMITA, João Masao. Sobre o MAR. Arquitextos, São Paulo, 13.155, Vitruvius, mai 2013. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.155/4759> Acesso em: 13 jun. 2013
21
GAUSA, Manuel; GUALLART, Vicente; MÜLLER, Willy; SORIANO, Federico; MORALES, José; PORRAS, Fernando. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnologia en la sociedad de la información. Barcelona, Actar, 2001, p. 31, 120, 138, 194, 268, 451
22
Idem
23
Idem
24
Idem
25
Poiesis [ποιησις]: “implica numa criação ou produção”, conforme o conceito grego, sendo a poesia “uma criação ou obra (produto)”; em: ARISTÓTELES. Poética. Tradução, textos complementares e notas Edson Bini. São Paulo, Edipro, 2011.
26
TEYSSOT, Georges. Da teoria da arquitetura: doze ensaios. Coimbra, Edições 70 e e|d|arq FCTUC, 2010. p. 27, 50, 51, 261, 262, 271.
27
GAUSA, Manuel; GUALLART, Vicente; MÜLLER, Willy; SORIANO, Federico; MORALES, José; PORRAS, Fernando. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnologia en la sociedad de la información. Barcelona, Actar, 2001, p. 31, 120, 138, 194, 268, 451
28
Idem
29
KAMITA, João Masao. Sobre o MAR. Arquitextos, São Paulo, 13.155, Vitruvius, mai 2013. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.155/4759> Acesso em: 13 jun. 2013
30
VILLAC, M. I. Sistema e projeto: arquitetura e cidade. Texto ampliado a partir de: VILLAC, M. I.; CAVALCANTE, M. M. P. D.; STUMP, V. “Textos de arquitetos da práxis”. In: VILLAC, M. I. et all. Informe técnico-científico do Projeto de Pesquisa: Projeto e crítica: arte, textos e arquitetura – cidade de São Paulo 1985 – 2008, 2010 – 2011, Fundo Mackenzie de Pesquisa; e VILLAC, MI. I. “Sistema e criação do artefato abstrato”. In: CANEZ, Anna Paula; SILVA, Cairo Albuquerque da (Org.). Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação. Porto Alegre: UniRitter, 2010.
31
GAUSA, Manuel; GUALLART, Vicente; MÜLLER, Willy; SORIANO, Federico; MORALES, José; PORRAS, Fernando. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnologia en la sociedad de la información. Barcelona, Actar, 2001, p. 31, 120, 138, 194, 268, 451
32
Idem
33
MONTANER, Josep MARia. Sistemas arquitetônicos contemporâneos. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2009, p. 10, 16, 77.
34
Idem
35
Idem
36
GAUSA, Manuel; GUALLART, Vicente; MÜLLER, Willy; SORIANO, Federico; MORALES, José; PORRAS, Fernando. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada: ciudad y tecnologia en la sociedad de la información. Barcelona, Actar, 2001, p. 31, 120, 138, 194, 268, 451
37
Idem
38
Guattari se aprofunda no tema no texto Espaço e corporeidade, in GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Coleção Trans. São Paulo, Ed. 34, 2012, p. 135-147.
39
Idem
40
TEYSSOT, Georges. Da teoria da arquitetura: doze ensaios. Coimbra, Edições 70 e e|d|arq FCTUC, 2010. p. 27, 50, 51, 261, 262, 271.
41
Idem
42
Idem
43
Temos registro em imagem desta intenção, publicado em 2011, na revista Conceito AV no 34. Ver em: <http://www.jacobsenarquitetura.com/midia/?CodMidia=29>.
44
Este artigo é desdobramento de pesquisa desenvolvida originalmente para a disciplina: Projetos referenciais de arquitetura contemporânea [Territórios híbridos: prospecções possíveis], com os Profs. M. Isabel Villac e Carlos Leite de Souza. PPGAU-FAU-UPM, 2013.
Sobre o autor Andre Reis Balsini é mestre em arquitetura e urbanismo (FAU-UPM, 2014), com graduação na mesma área (USU, 1999); e especialista em análise e avaliação ambiental (PUC-RJ, 2005). Atuou em colaboração com escritórios de arquitetura do Rio de Janeiro e de São Paulo.