Introdução
Desenho urbano é uma disciplina nova no Brasil, tanto no ambiente acadêmico como no profissional, tornando-se muitas vezes uma discussão teórica que não migra para a prática projectual. Ainda existem muitos arquitetos e urbanistas que confundem o conceito de desenho urbano com o de paisagismo, mesmo esses correspondendo à disciplinas distintas, embora complementares uma à outra. Como resultado tem-se cidades com graves problemas de preservação de áreas verdes, falta de arborização e de planejamento para o escoamento de águas pluviais, e vias projetadas para dar prioridade ao carro e não ao pedestre e ciclistas, desestimulando assim a mobilidade sustentável.
Antes de entrar na discussão aqui proposta, volta-se a análise a definição do conceito de desenho urbano. Essa disciplina refere-se ao processo de planejamento urbano de um bairro e/ou de uma cidade como um todo, envolvendo diversas etapas de análise que vão desde o estudo dos recursos naturais já existentes (como cursos de água, áreas verdes e declividades) e de suas potencialidades, bem como das conectividades das vias do ponto de vista do grau de integração e segregação dos espaços da cidade (1), e dos estudos de identidade estética e compositiva da área considerando características históricas (aspectos simbólicos) e formais do lugar. O resultado da aplicação dessas etapas de análise no processo projectual é de cidades, cujo desenho urbano prioriza o caminhar no espaço público, a mobilidade sustentável e, consequentemente, atrai um grande número de pessoas que ocupam espaços livres como praças, parques e nós urbanos.
Metodologia e estudo de caso
Dentro do conceito estabelecido do que é desenho urbano, desenvolveu-se o estudo empírico desta investigação. A cidade de Pelotas, no sul do estado do Rio Grande do Sul, escolhida como estudo de caso, caracteriza-se por concentrar um importante acervo da arquitetura colonial e eclética do Brasil. A primeira referência histórica do surgimento do município data de junho de 1758, sendo, junto com a cidade de Rio Grande, considerada o berço da colonização portuguesa no sul do país. Após o fim do período charqueador (início do século 20) e o declínio das industrias da cidade (1950 – 1970), o bairro portuário de Pelotas permaneceu por muitas décadas esquecido pelos governos estaduais e municipais. Essa realidade começou a modificar em 2008 com a mudança do campus central da Universidade Federal de Pelotas para o bairro. A Universidade adquiriu vários prédios industriais antes abandonados e nesses localizou diversas faculdades e o principal centro administrativo da mesma. Com essa movimentação urbana, o poder público começou a investir novamente no bairro e definiu no Plano Diretor de 2008 um recorte, o qual denominou Cidade Universitária. Nessa delimitação vários projetos tem sido discutidos, juntamente com as duas universidades da cidade.
Morfologicamente o bairro do Porto é constituído por um traçado xadrez, assim como todo núcleo histórico da cidade, pouca arborização, ruas com via carroçável de larguras muito aproximadas (em torno de 8 a 10 metros), edificações térreas, de dois ou três pavimentos, e uma grande concentração de prédios ecléticos, industriais ociosos e vilas de antigos operários. Além disso, muitas quadras são caracterizadas por uma uniformidade arquitetônica que, muitas vezes, associada ao um desenho urbano sem criatividade, gera monotonia. Entretanto, a paisagem natural, até hoje negligenciada em projetos de renovação urbana na cidade, é um potencial do lugar.
Dentro desse contexto, em Maio de 2013 foi realizada uma oficina de desenho urbano na Universidade Federal de Pelotas, em parceria com a Prefeitura da cidade, com o objetivo de desenvolver e testar metodologias de projeto e propostas de desenho urbano para a requalificação do bairro do Porto. A oficina durou cinco dias, sendo pelas manhãs realizadas discussões teóricas e as tardes exercícios práticos de remodelação urbana do bairro estudo de caso. Participaram dos exercícios de ateliê 120 pessoas, dentre essas: arquitetos, estudantes de arquitetura, artistas plásticos, agrônomos/paisagistas e profissionais da municipalidade responsáveis por projetos de renovação urbana na cidade. As oficinas permitiram que metodologias de projeto urbano fossem discutidas e testadas, abrindo uma nova oportunidade para a integração entre as práticas acadêmicas e profissionais. As oficinas foram desenvolvidas com base em métodos participativos em que o usuário não é mero espectador, mas um sujeito ativo. Isso significa uma metodologia de ensino dinâmica, que privilegia o debate ao invés de palestras puramente expositivas. Assim ocorre no chamado método socrático, que permite, de forma objetiva, o incentivo do desenvolvimento do raciocínio analítico e a avaliação dos participantes no processo.
Como resultado foram definidas três propostas de remodelação do bairro do Porto em Pelotas, baseadas em quatro diretrizes de desenho urbano provindas de reflexões teórico-críticas realizadas durante o encontro. Essas diretrizes são apresentadas a seguir como fatores que deveriam fazer parte de projetos de requalificação urbana de bairros portuários com características semelhantes ao estudo de caso.
Discussão: Diretrizes de requalificação urbana para o bairro portuário
Quatro diretrizes urbanas foram definidas como resultado da oficina realizada na cidade caso de estudo e repassadas ao poder público local para que possam nortear futuros projetos de requalificação urbana no bairro investigado. A seguir essas diretrizes são apresentadas, sendo teoricamente fundamentadas e podendo ser generalizadas para demais situações em cidades com características similares.
Diretriz 1: Como projetar bairros para pessoas criando vias urbanas legíveis
Como criar ruas e espaços públicos como praças e parques, que sejam apropriados pelas pessoas e promovam a vida na cidade é a pergunta que muitos projetistas ainda se fazem. É estarrecedor a quantidade de projetos urbanos construídos recentemente que fazem exatamente o que estudiosos consagrados como Cristopher Alexander (2), Kevin Lynch (3) e Gordon Cullen (4) há décadas já diziam que não deve ser feito em termos de desenho da cidade. Pesquisadores mais contemporâneos como Ian Bentley (5) (6) e Jan Gehl (7) também compartilham dos mesmos princípios de desenho urbano daqueles estudiosos, com ênfase agora na preservação dos recursos naturais e na priorização da mobilidade sustentável das cidades. Assim, a seguinte pergunta foi lançada para discussão na oficina do caso de estudo: será que nós projetistas contemporâneos perdemos o hábito da leitura para ignorar tais referenciais teóricos? A resposta pela maioria dos participantes foi positiva. A Figura 3 retrata uma rua do bairro do Porto na cidade de Pelotas que corresponde à realidade de muitas cidades brasileiras: a presença de pedestres no espaço público é muito singular e o desenho da via é voltado para o veículo privado. Esse tipo de desenho urbano gera ambientes como o descrito por Gehl (8) “Uma rua sem vida é como um teatro vazio”.
Como referencial teórico utilizou-se na oficina durante o estudo empírico os conceitos de Bentley (9) e Gehl (10): em 1985, Bentley junto com um grupo de pesquisadores da Oxford Brookes University lançou na Inglaterra o livro Responsive Environments, que define o que é a disciplina de desenho urbano, até então tratada como um tema inerente ao paisagismo. Surgem então, alguns anos depois, no mesmo país, um movimento de revitalização de áreas urbanas denominado Urban Renaissance, que culminou por requalificar várias regiões inglesas, devolvendo a cidade para o pedestre. Também, se destaca o estudo do dinamarquês Jan Gehl, que em 2010 publicou o livro Cities for People, que em 2013 teve sua publicação traduzida para a língua portuguesa sob o título “Cidade para Pessoas”. Tanto Bentley como Gehl analisaram diversas variáveis para identificar quais são os fatores que tornam as cidades mais vivas, e a resposta foi a seguinte: as pessoas são atraídas por pessoas, e o que atrai as primeiras pessoas são as condições oferecidas pelo espaço público em termos de configurações formais. Dentro desse contexto, fica claro que se deve priorizar o espaço urbano para o pedestre e não para o veículo privado, sendo constatado que a arquitetura e os espaços públicos de muitas cidades (e.g. Pirenópolis e Ouro Preto no Brasil), que foram planejadas para serem observadas na velocidade de caminhada do pedestre são muito mais agradáveis do que àquelas desenhadas para serem vistas na velocidade do motorista (e.g. cidade de Brasília). Esse último caso é a situação comum de grande parte das novas áreas da cidade contemporânea, as quais se baseiam nos princípios modernistas de grandes avenidas e segregação de usos, gerando bairros residenciais distantes de tudo. Brasília, por exemplo, é uma cidade muito interessante no cartão postal, mas exaustiva para o pedestre, devido as distâncias entre os locais de trabalho e as áreas residenciais, e as vias com pouca preocupação com a escala humana e conforto ambiental.
Para a requalificação do bairro do Porto em Pelotas, e de outros bairros com características semelhantes, é importante ter-se em mente que não é possível retirar toda edificação e espaço público de baixa qualidade e refazer a cidade. O princípio de requalificação adotado deve ser de melhorar no que for possível a situação já existente e criar diretrizes urbanas e de projeto arquitetônico para que novas inserções não repitam os problemas já detectados pela literatura e vivenciados no dia a dia pelo usuário. Considerando que o pedestre perde a conectividade com a arquitetura após o quinto andar da edificação (11), é importante enfatizar a importância de não permitir a configuração de quadras inteiras com prédios em altura no bairro estudo de caso. Esse tipo de edificação não contribuirá para promover a escala humana e as conectividades visuais que tanto aumentam a sensação de segurança por parte dos pedestres. Estudos como os de Bentley (12), Gehl (13) e Alexander (14) já demonstraram que no espaço público em distâncias que variem de 100 à 25 metros será muito difícil haver algum tipo de interação social, sendo que as melhores distâncias para promover encontros sociais são de no máximo 20 metros. A literatura constata que as pessoas não se apropriam de espaços além dessa dimensão e não se sentem convidadas a utilizá-los, pois a partir dessa distância não conseguem distinguir quem está se aproximando, não visualizando expressões faciais. Isso já foi identificado como um dos grandes problemas de apropriação por parte das pessoas das áreas livres criadas durante o movimento moderno.
Também, outro fator destacado como importante no processo de requalificação do bairro do Porto é a atenção que deve ser dada a arquitetura dos andares térreos quando a proposta é gerar espaços urbanos atrativos ao pedestre. As discussões resultantes da oficina realizada apontaram uma série de fatores que podem guiar o projeto de requalificação do bairro, com o objetivo de atrair pessoas:
- Incentivar a construção de edificações com aberturas voltadas a via pública,
- Manter a escala humana das edificações e do desenho dos espaços públicos,
- Incentivar a textura, detalhes, ritmo e movimento vertical das fachadas,
- Dar ênfase à transparência das fachadas (com vitrines e janelas), ao apelo a todos os sentidos humanos e não só ao visual (como o cheiro do pão recém-saído do forno de uma padaria, das flores do jardim...) e à diversidade de funções. Todos esses aspectos quando conjugados aumentam significativamente a quantidade de pessoas caminhando num bairro, ao contrário das ruas com trânsito rápido, muitas vezes caracterizadas por vias de mão única, que afugentam os pedestres e desestimulam atividades de lazer.
Dentro desse contexto, busca-se no bairro de estudo incentivar projetos de ruas e espaços públicos que atraiam as pessoas, mantendo o interesse visual, sendo para isso necessário entender os conceitos de legibilidade e imageabilidade. O que é uma via urbana legível? Essa foi uma das primeiras perguntas lançadas para a discussão durante a oficina, pois o projetista deve ser capaz de respondê-la ao analisar o espaço urbano pré-existente. O conceito de legibilidade data dos primeiros estudos do urbanista americano Kevin Lynch, apresentados no seu livro “A Imagem da Cidade”, publicado em 1960 (15). O autor analisou três cidades norte-americanas, Boston, Jersey City e Los Angeles, com o intuito de identificar a imagem que os usuários possuíam desses locais e quais os fatores simbólicos que estariam envolvidos na construção dessa imagem. Legibilidade é entendida como a “facilidade com que cada uma das partes da cidade pode ser reconhecida e organizada em um padrão coerente” (16) estando relacionada ao termo wayfinding definido por Romedi Passini em 1992 como a capacidade do indivíduo de se orientar espacialmente em áreas públicas ou dentro de um edifício (17). Atrelado a esse conceito, Lynch propõe o de imageabilidade: esse se refere à qualidade de um objeto em evocar uma forte imagem no observador constituída pelo conjunto de elementos que tornam um lugar único e memorável. A torre Eiffel em Paris, o Big Ben em Londres e o Cristo Redentor no Rio de Janeiro, por exemplo, são elementos com um alto grau de imageabilidade, tanto do ponto de vista estético quanto simbólico. Desse modo, uma cidade com alto nível de legibilidade e imageabilidade possui bairros e vias urbanas distintas, com caráter próprio, e elementos formadores da paisagem urbana imediatamente reconhecíveis pelas pessoas, fazendo, uma rua por exemplo, se tornar única, diferente das demais.
Na área do bairro do Porto de Pelotas as ruas e os espaços de encontro, como praças e alargamento de calçadas, são extremamente monótonos sendo o grau de legibilidade e imageabilidade do bairro extremamente fraco. São fatores que colaboram para isso: 1 o desenho urbano de pouca qualidade estética e não caracterizador dos diferentes usos de cada via, 2. a similaridade entre os graus de integração e conectividade das vias, verificada através dos estudos da Sintaxe Espacial, somada ao desenho urbano monótono das mesmas 3. a escassez de vegetação pública predominante em todo bairro, 4. a falta de manutenção dos prédios históricos, principalmente os industriais, e 5. a baixa qualidade estética de várias edificações construídas nas últimas décadas, ditas arquitetura contemporânea.
Para recuperar a qualidade visual desse bairro que no passado foi extremamente importante para o desenvolvimento econômico da cidade e do estado do Rio Grande do Sul devido as suas atividades industriais e portuárias, propõem-se um checklist que deve ser considerado nos projetos de requalificação urbana de bairros históricos, conforme a seguir.
1. Analisar as características de uso de cada via da área estudada, identificando as ruas com alto, moderado e baixo movimento de pedestres e carros através de observações in loco, mapas comportamentais através da técnica do time-lapse (18) e simulações sintáticas do grau de integração e segregação de cada via (19).
2. Definir as vias que possuem potencialidade de se tornarem corredores verdes. O conceito de corredor verde aqui se refere a ruas onde o uso da vegetação e canteiros seja projetado de modo a enfatizar a preservação do habitat natural de espécies da região e auxiliar na drenagem pluvial, evitando inundações durante precipitações mais acentuadas.
3. Investigar a imagem que os moradores têm do lugar e localizar os marcos focais e nós já existentes (3), bem como as potencialidades de cada via do ponto de vista de criar novos marcos visuais, sendo esses lugares identificados como pontos de encontro para pedestres no espaço público.
4. Readaptar o desenho urbano das vias dando prioridade ao pedestre e dando utilidade estética e/ou funcional às fachadas inativas do bairro, as quais hoje aumentam o sentimento de insegurança e reduzem drasticamente a qualidade visual do espaço urbano.
Diretriz 2: A importância das fachadas ativas na vida do bairro
Para a análise das atividades que hoje acontecem no bairro do Porto, as seguintes categorias definidas por Gehl (20) foram consideradas:
- Atividades necessárias que são aquelas que se faz obrigatoriamente, como por exemplo ir ao supermercado, pagar uma conta no banco, ir ao trabalho e etc... ;
- Atividades opcionais que se caracterizam como sentar num banco, ler um livro ou simplesmente flâneur pelas ruas (21); e
- Atividades sociais que são aquelas que ocorrem a partir da interação entre as pessoas. As atividades necessárias sempre vão acontecer, independentes da qualidade visual da cidade; entretanto quanto maior a qualidade visual do espaço público maior chances terão de se desenvolver atividades sociais e principalmente opcionais. Dentro desse contexto, a vida na cidade não está somente ligada ao número de usuários presentes nas ruas, mas na quantidade de tempo que eles permanecem no espaço público. Uma rua extremamente movimentada, por pessoas indo e vindo, pode ter menos vitalidade do que uma rua onde há permanentemente grupos de pessoas em atividades opcionais e sociais.
Na maioria das ruas do bairro do Porto de Pelotas não há presença de residentes em atividades opcionais e sociais, pois muitas fachadas térreas são caracterizadas por muros e portas e janelas cegas configurando o que chamamos de fachadas inativas. A exceção acontece somente próximo aos prédios das universidades (há duas universidades instaladas no bairro), onde, em períodos de intervalo entre aulas e no final da manhã e da tarde, alguns alunos se reúnem em frente aos prédios das faculdades, de trailers de lanches ou da padaria do bairro, para conversar, ler um livro e passar o tempo até a próxima atividade acadêmica.
Dentro dessa perspectiva, é interessante que o projeto de requalificação urbana do bairro estudado crie espaços que possam ser apropriados pelos residentes, convidando-os a sair de casa e passar parte do seu tempo de lazer no espaço público, promovendo uma interação entre população local e flutuante (no caso de Pelotas, os estudantes). A literatura já demonstra que é possível aumentar a qualidade visual do espaço público consideravelmente através do desenho das fachadas do térreo e do desenho urbano das ruas e calçadas, priorizando sempre o pedestre. Um exemplo interessante desse tipo de situação pode ser visto em um dos campus da University College London (UCL), em Londres na Inglaterra. Muitos dos prédios das faculdades da UCL, fundada em 1826, estão distribuídos no bairro de Bloomsbury, na área central da capital londrina, sendo os espaços de conexão entre essas edificações formados por praças, bares e cafés, parte da vida cotidiana de muitos residentes, turistas, trabalhadores privados, estudantes e professores.
Em seu livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, de 1961, Jane Jacobs já demonstrava preocupação com apropriação do espaço público pelos usuários, salientando que o movimento nas ruas era de extrema importância para garantir a vida e a segurança nesses espaços. Para ela o principal atributo de uma cidade próspera é as pessoas sentirem-se seguras e protegidas em meio a muitos desconhecidos (22). Segundo Gehl (23), a vida nas ruas tem influência direta na segurança; áreas urbanas com diversidade de funções proporcionam movimento frequente, tanto no espaço público quanto no privado. A autora salienta que as unidades residenciais com fachadas ativas (aberturas voltadas a via) asseguram boas conexões com os espaços e reforçam a segurança real e percebida. Mesmo que não tenha ninguém na rua, as luzes das janelas e o movimento nas moradias enviam sinais de que há pessoas por perto. Por outro lado, em ruas predominantemente comerciais, fora do horário de funcionamento das lojas, o sentimento é de insegurança. No Brasil, essa situação é muito comum nos calçadões presentes em muitos centros comerciais.
Percebe-se então que a vida do bairro depende muito da qualidade dos espaços de transição, os quais são constituídos pelas paredes das edificações que conformam o espaço público. O percurso identificado por uma linha vermelha em negrito na figura anteanterior é denominado pela Prefeitura de Pelotas como Cidade Universitária. Fachadas com portas e janelas cegas e muros são grandes problemas nessa área, pois aumentam a percepção de insegurança, desestimulam o caminhar e a presença de atividades sociais e opcionais. Similar mapeamento foi realizado nas cidades de Copenhague e Estocolmo (24), sendo esse método muito eficaz para a identificação dos pontos que necessitam imediata intervenção do poder público, os quais quando revitalizados poderiam ser convertidos em pequenas praças ou nós urbanos que estimulassem os encontros e atividades de lazer. Dessa forma, são resgatados conceitos da Teoria da Gestalt de composição estética das fachadas chegando-se a conclusão que quanto mais aberturas, detalhes e bons ritmos nas fachadas térreas, maior será a concentração de pessoas nas ruas e maior vida terá a cidade. Em projetos de requalificação urbana no Brasil, o incentivo ao desenho de fachadas ativas deve vir do poder público: projetos que não tenham fachadas ativas não deveriam ser aprovados. Já que não se pode deixar essas decisões ao bom senso dos projetistas, tem que haver leis de regulação desse aspecto.
Diretriz 3: Pequenas praças e nós como pontos de encontro
Há 38 anos atrás Christofer Alexander (25) já defendia a importância das pequenas praças para a vida dos bairros, servindo essas como pontos de atração e encontro de pessoas. Alexander afirmou que as pequenas praças funcionam como nós na malha urbana, podendo se configurarem com alargamento de calçadas e áreas verdes. O nó urbano aparece aqui como “focos estratégicos nos quais o observador pode entrar; são tipicamente, conexões de vias ou concentrações de alguma característica” (26). Nesse caso um alargamento na calçada de uma esquina, cuja atividade comercial tende a atrair um número significativo de pessoas pode potencializar essa área como um nó urbano ou até mesmo como um marco focal. Esse último conceito refere-se a elementos dentro da estrutura urbana que servem ao observador como pontos de referência e caracterização de um lugar (27).
Desse modo, as discussões levantadas no estudo empírico deste estudo apontam que ao pensar o projeto de requalificação urbana do bairro inicialmente é necessário mapear as características do local do ponto de vista do uso do espaço e comportamento do usuário para que, de acordo com os dados encontrados, possa se determinar os melhores locais para potencializar marcos visuais e nós já existentes. Além disso, é importante criar marcos visuais caso a análise do lugar identifique uma falta de referenciais no espaço urbano. O bairro do Porto de Pelotas caracteriza-se por uma área onde a identidade das vias se confunde devido à falta de referenciais como marcos visuais e nós urbanos. Nesse caso, a análise das características da população residente e estudantil são muito importante, pois pode gerar indicadores de quais atividades devem ser estimuladas no bairro, considerando a necessidade de integração entre esses dois grupos de usuários.
Um exemplo desse tipo de aplicação pode ser visto na cidade de Copenhague: Gehl (28) descreve que a melhoria da qualidade de vida da população dessa cidade deve-se muito a ocupação de áreas antes destinadas a estacionamentos por praças verdes. Também, em Paris destaca-se o projeto conhecido como Praia Paris, que consiste na transformação da orla do rio Siena em uma área de lazer para pedestres com partes cobertas de areais e cadeiras de praia simulando a beira mar; a intervenção é feita todos os verões sendo um sucesso entre residentes e turistas. Assim, os estudos realizados em Pelotas permitiram definir duas diretrizes básicas de requalificação urbana: conversão de áreas ociosas em áreas verdes de lazer e identificação de áreas onde os usuários locais possam interagir e participar do projeto projectual de modo a se apropriem do lugar. Dentro desse contexto, surge a importância do grafite no bairro caso de estudo, onde esse tipo de intervenção é muito frequente. Se existe o grafite é porque há artistas locais que desenvolvem esse trabalho e deveriam, portanto, serem incluídos nos projetos de revitalização urbana da área, já que essa arte pode com certeza ajudar na criação de marcos visuais.
Diretriz 4: Grafite como arte urbana
O grafite é um elemento constante em muitas fachadas das ruas do bairro do Porto de Pelotas e não deve ser confundido com pichações (sinais de incivilidade que propiciam a sensação de insegurança). Portanto, é extremamente relevante seu entendimento como arte visual dentro de um processo de requalificação urbana para essa área. A palavra grafite é de origem italiana e significa “inscrita feita com carvão” ou “inscrição feita em paredes”, sendo uma forma de comunicação e expressão visual presente na história do homem há cerca de 40.000 anos. A arte rupestre é um exemplo, configurando um conjunto de desenhos encontrados em paredes de cavernas e outros tipos de abrigos. Os romanos também utilizavam o carvão para escrever palavras de protesto em paredes, bem como os egípcios que deixaram várias inscrições em paredes de templos e pirâmides (29).
O grafite como é conhecido hoje na cidade contemporânea surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos como uma forma de arte e comunicação visual, consistindo em desenhos e palavras feitos com spray em muros e fachadas do espaço público. O exemplo mais conhecido internacionalmente de grafite urbano é o do trabalho do britânico Banksy, grafiteiro, pintor e artista plástico, cuja identidade real não é pública. Banksy é um pseudônimo que o artista encontrou para assinar sua arte de rua que consiste em comentários sociais e políticos na forma de grafite. Sua arte pode ser encontrada em ruas, muros e pontes de muitas cidades, como Londres, Bristol (cidade natal do artista) e Nova York. Sua última polêmica intervenção ocorreu em 2013 em Nova Iorque no bairro do Bronx (onde surgiu o grafite urbano): grafite sobre muros com palavras de cunho crítico-social e quadros grafitados expostos exatamente abaixo da High Line em Nova Iorque estão dentre as principais inserções, sendo essa última realizada em parceria com os grafiteiros brasileiros Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos como Os Gêmeos.
No Brasil um grande projeto de requalificação urbana através do grafite foi realizado em 2005 no Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, por dois artistas plásticos holandeses, Haas e Hahn, juntamente com a ajuda da população local. O projeto conhecido como Favela Painting resultou, dentre diversas obras, em um mural de 150 metros quadrados retratando através do grafite um menino empinando uma pipa - o principal passatempo das crianças das favelas cariocas. Também, estão entre as obras realizadas uma pintura concluída em 2008 sob uma enorme estrutura de concreto construída para conter deslizamentos de terra em períodos de chuva, e a pintura de faixas coloridas sobre fachadas de casas localizadas ao redor da praça denominada Cantão. No Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro, também há várias iniciativas de artistas locais, com o objetivo de requalificar a área. O trabalho do fotógrafo e artística plástico Maurício Hora é destaque na cidade.
Para o bairro do Porto em Pelotas, o uso do grafite como elemento de revitalização urbana é essencial já que é um modo de expressão caracterizador da identidade dessa área. A partir da localização das áreas de interface inativa no bairro, é possível identificar as áreas de maior potencialidade para esse tipo de intervenção. Painéis para exibições de trabalhos e muros próprios para os artistas locais expressarem suas ideias são iniciativas que deveriam ser consideradas, pois tornam o espaço urbano mais atrativo visualmente e desestimulam as pichações.
Considerações Finais
A disciplina de desenho urbano apresenta-se como um processo de planejamento da cidade que envolve distintas etapas que vão da análise global das potencialidades urbanas do local, partindo do reconhecimento das pré-existências relacionadas aos recursos naturais, da integração e conectividade das vias, e das característica e identidade das edificações e mobiliário urbano. O resultado final é o projeto do espaço público da cidade fundamentado nesses três alicerces, os quais guiam diretrizes de desenho sustentável considerando que a cidade deve ser prioridade do pedestre e do ciclista, e não do veículo privado. Embora a disciplina seja nova para muitos no Brasil, espera-se que as discussões aqui apresentadas possam ajudar na estruturação e desenvolvimento de projetos de requalificação urbana, já que muitos estão sendo atualmente impulsionados pelas obras ligadas a Copa de 2014 e as Olímpiadas de 2016. Recursos para a realização de projetos de requalificação urbana existem, o que falta agora é que os profissionais e acadêmicos definam as diretrizes urbanas que promovam o desenho urbano sustentável, atraindo o desenvolvimento econômico, turístico e social para as cidades, estados e regiões.
As diretrizes aqui apresentadas focam na requalificação do bairro caso de estudo, que se caracteriza por uma região portuária em fase inicial de gentrificação. Projetos de renovação da área estão sendo discutidos pelo poder público, mas muitas vezes a falta de métodos participativos que promovam discussões entre a população local e os projetistas torna-se um empecilho para o sucesso dessas iniciativas. A oficina desenvolvida para o estudo aqui apresentado caracteriza-se por uma das primeiras iniciativas na direção de diminuir esse obstáculo e entender melhor as necessidades dos moradores locais e contrapô-las com as propostas de renovação urbana, a fim de se alcançar um projeto participativo, onde a gentrificação não se volte contra a comunidade de origem do bairro. Espera-se que os resultados e discussões sejam inspiradores para novas formas de concepção de projeto e participação popular.
notas
1
A teoria da Sintaxe Espacial foi desenvolvida por Hillier e Hanson (1984) e busca descrever a configuração do traçado urbano e as relações entre espaço público e privado através de medidas quantitativas que permitem entender aspectos importantes do sistema urbano, tais como a acessibilidade e a distribuição de usos do solo. Os autores consideram o espaço como um padrão de relações e procuram identificar nelas propriedades socialmente significantes. Essas propriedades são analisadas a partir de parâmetros topológicos e numéricos, como o número de trocas de direções feitas em um percurso, o número de espaços atravessados e de limites cruzados. Segundo essa teoria o padrão de relações entre os espaços é expresso através de gráficos de conexões, que são um conjunto de nós e linhas axiais unidos a cada dois pontos. Esses gráficos possibilitam a análise da profundidade em relação aos demais espaços.
2
ALEXANDER, Christofer. A Pattern Language: Towns, Buildings, Construction. Oxford University Press, Oxford, 1977.
3
LYNCH, Kevin. The Image of the City. The MIT Press, London, 1960.
4
CULLEN, Gordon. The concise townscape. Van Nostrand Reinhold, Michigan, 1961.
5
BENTLEY, Ian. Responsive Environments. Routledge, London, 1985.
6
BARROS, Paula & BENTLEY, Ian. Questões Globais, Respostas Locais. Projeto colaborativo em Betim. Betim, Prefeitura de Betim, 2012.
7
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
8
Idem
9
BENTLEY, Ian. Responsive Environments. Routledge, London, 1985.
10
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
11
Idem
12
BENTLEY, Ian. Responsive Environments. Routledge, London, 1985.
13
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
14
LYNCH, Kevin. The Image of the City. The MIT Press, London, 1960.
15
Idem
16
Idem
17
PASSINI, Romedi. Wayfinding in architecture. Van Nostrand Reinhold, Michigan, 1992.
18
WHYTE, William. The Social Life of Small Urban Spaces. Project for Public Spaces, New York, 1980.
19
Hillier, B. and Hanson, J. 1984: The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press.
20
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
21
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Nova Aguilar, São Paulo, 1995. WHYTE, Edmund. O Flâneur. Companhia das Letras, São Paulo, 2001.
22
JACOBS, Jane. The Death and Life of Great American Cities. Vintage, New York, 1961.
23
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
24
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
25
ALEXANDER, Christofer. A Pattern Language: Towns, Buildings, Construction. Oxford University Press, Oxford, 1977.
26
LYNCH, Kevin. The Image of the City. The MIT Press, London, 1960.
27
Idem
28
GEHL, Jan. Cities for People. Island Press, London, 2010.
29
VENTURA, Tereza. Hip-hop e graffiti: uma abordagem comparativa entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Análise Social, vol. XLIV (192), 2009, 605-634, 2009.
sobre os autores
Adriana Araujo Portella é professora da Universidade Federal de Pelotas, Brasil.Pós-doc em planning pela University College London, Inglaterra.PhD. em desenho urbano pela Oxford Brookes University, Inglaterra. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil.
Inês de Carvalho Quintanilha é mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil.Especialista em Iluminação e design de interiores pelo Instituto de Pós-Graduação – IPOG, Brasil. Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil.
Nirce Saffer Medvedovski é professora da Universidade Federal de Pelotas, Brasil. Doutora em planejamento urbano pela Universidade de São Paulo, Brasil, mestre em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
Sinval Cantarelli Xavier é professor da Universidade Federal de Rio Grande, Brasil. Doutorando em engenharia civil pela Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Arquiteto e urbanista da Prefeitura Municipal de Pelotas, Brasil. Mestre em Engenharia Oceânica pela Universidade Federal de Rio Grande, Brasil. Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil.