Quem, ainda na década de 1930, pegasse a estrada de Itapecerica, ou do M’Boy, em direção ao interior, passados uns três quilômetros do incipiente loteamento do “Cachinguy”, forçosamente atravessaria o “Charco Grande”, corpo d’água que, engrossando o das Almas, desaguava na margem direita do ribeirão Pirajussara. Tangenciaria, à direita, uma área assinalada como “capoeira” na convenção cartográfica adotada no “Mappa Topographico do Município de São Paulo”, executado naquela época pela empresa Sara Brasil, sem suspeitar que, poucos anos mais tarde, ela se transformaria na Chácara do Ferreira que seria, por sua vez, adquirida em 1946, com “as três casas e o forno de olaria” (1), pelo Jockey Club de São Paulo.
Capoeira: ka'a ("mato") uera ("do passado"). A língua tupi permitia expressar, sinteticamente, a permanência do que foi naquilo que atualmente é. O mato cortado, o mato do passado está presente na formação vegetal que o sucede, a capoeira, não só na palavra, mas de fato. Os tupis sabiam disso e souberam dizê-lo.
Na trilha dos tupis, pode-se admitir que a capoeira, ao transformar-se na Chácara do Ferreira e, em seguida, na Chácara do Jockey, nunca deixou de estar presente, assim como a argila da várzea do Pirajussara, depois de processada na olaria contígua, perdura nos tijolos com que se construíram as cocheiras e os alojamentos para cavalariços até hoje ali existentes .
Desativada em decorrência do declínio do turfe e do crescente montante de dívidas acumuladas pela instituição proprietária, a chácara teve seus espaços paulatinamente deixados ao abandono. Embora não tenham sido interrompidas as atividades do Clube Pequeninos do Jockey, sediado na área desde os anos 1970, tampouco os periódicos shows musicais, o lugar se viu desprovido das intencionalidades que o constituíram.
Ainda assim, ao se caminhar pela pista de corridas, à sombra vasta dos flamboaiãs, percebe-se algo do tempo que, embora passado, atinge os dias de hoje. O pequeno camarote – no qual três ou quatro aristocratas entusiasmados com os treinos dos alazões são trazidos facilmente ao nosso tempo pela imaginação – conserva nos tijolos gastos as marcas daquilo que um dia foi e que um dia deixou de ser. Avistam-se, no fim da pista, os edifícios das baias e, entre eles, as ruas abertas no interior da chácara. Um renque de pau-ferros sexagenários e, na divisa, um muro com frisos há muito encardidos completam a cena.
Ao mesmo tempo, capins crescem em meio aos pedriscos e, nos entremeios, uma presença irresistivelmente atual espraia-se, manifestando-se por uma força originária nas touceiras não podadas, nas invasoras intempestivas, nos musgos que revestem as sombras. Vários tempos e distintas temporalidades estão ali presentificados, às vezes de modo intangível, como espectros, mas tão vivos e verazes quanto estes.
A espectralidade é uma forma de vida, ainda que seja “uma vida póstuma ou complementar, que começa apenas quando tudo acabou e que tem, por isso, em relação à vida, a graça e a astúcia incomparável daquilo que está consumado, a elegância e a precisão de quem nada mais tem diante de si”. O contexto de onde saíram estas palavras é o de um ensaio no qual, ao tratar “da utilidade e dos inconvenientes do viver entre espectros” (2), Giorgio Agamben, logo no primeiro parágrafo, refere-se à aula inaugural proferida em 1993 por Manfredo Tafuri. Na ocasião, o historiador se insurgia contra a candidatura de Veneza para sediar uma vindoura exposição mundial por reconhecer em tal pretensão a indecência de se embelezar um cadáver para melhor vendê-lo. Veneza, um cadáver posto à venda.
No mesmo ensaio, Agamben prossegue ponderando que à morte e à decomposição sucede o estágio espectral, aquele em que o morto aparece repentinamente emitindo sussurros insuportáveis aos ouvidos não familiarizados, exibindo escarificações produzidas pela história que só farão sentido a quem delas tiver sido íntimo. Trabalhos de restauração equivocados, ao limparem essas marcas, ao “confeitarem e uniformizarem” as obras, impedem a leitura dos sinais de que são feitos os espectros, tornando-os ilegíveis (3).
Por que falar de espectros? Qual é o sentido do viver entre espectros e decifrar-lhes os sinais? Qual o interesse dessas observações ao se tratar de um espaço real, corpóreo – a Chácara do Jockey, em São Paulo – aberto ao uso público?
Espectro é aparência impalpável, é algo que se faz presente sendo intangível. Conquanto intátil, instável, fugidio, o espectro de um lugar condensa tudo o que ali aconteceu, em todos os tempos. Todo lugar tem seus tempos e, em qualquer momento que se o considere, ele encerra todos os seus tempos, tanto os idos – o tempo dos fatos consumados – quanto os que podem vir a ser – o tempo dos seus espectros futuros.
Haveria espectros na Chácara do Jockey, mesmo que ali nunca tivesse existido um centro de treinamento e de reprodução de cavalos, nem cocheiras e raias ou qualquer outra construção. Antes do Jockey Club de São Paulo ter adquirido a área, teria havido ali algum outro uso e, caso apenas fosse uma grande porção de terreno baldio, ele poderia ter sido frequentado ou atravessado por pessoas e animais, ter sido sobrevoado por pássaros, habitado por árvores e plantas pequenas, participado da vida de quem se limitasse a passar ao longo dele, sem mesmo nunca tê-lo tocado com os pés.
De todo modo, ocupam espaço na Chácara do Jockey ruas e calçadas, paredes, portas, telhados, janelas, inscrições do tempo dos homens. Neste espaço e neste tempo exercemos e exerceremos nossas práticas. Mas há também ali terra, água, plantas, insetos, expressões de outra temporalidade em relação à qual medimos nossos feitos.
Quem e como se acessa e decifra a escrita dos espectros idos e futuros? Quem pode entender seus sussurros, e como? Agamben arremata o ensaio sobre os espectros de Veneza asseverando que somente àquele que tiver sabido fazer-se íntimo e familiar das pedras e das palavras descarnadas poderá, talvez, abrir-se a fresta pela qual a vida irrompe bruscamente para cumprir as suas promessas (4).
Há de valer algo viver entre espectros: ao menos se aprenderá a soletrar o fantasma de uma língua, mesmo que suas palavras já não se dirijam a nós; ao menos haverá, quem sabe, a possibilidade de se abrir alguma fresta. A condição para tanto, porém, não é o trabalho, a obra que se procura preservar ou restaurar, ou aquela que venha a ser feita. Tampouco é o que foi e o que ainda será feito (o “programa” de usos e as formas que os abrigam), e sim o como (5) se opera. Em uma palavra, mais do que a positividade da efetuação, trata-se da inoperosidade, entendida na perspectiva da desativação de qualquer finalidade, produtiva, da não submissão a constrangimentos práticos. Da inoperosidade poderiam advir as oportunidades de modificação dos sentidos normais do uso dos dispositivos, ou seja, de tudo aquilo que “captura, orienta, determina, intercepta, modela, controla e assegura os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (6).
A inoperosidade não é nada fazer; ela não se define como o oposto da atividade humana; ela tem antes a ver com aquilo que podemos não fazer, já que “todo poder fazer é também, sempre, um poder não fazer” (7), sem nos esquecermos que é “somente a lúcida visão daquilo que não podemos ou podemos não fazer que dá consistência ao nosso agir” (8).
A que vêm estas considerações quando se fala da Chácara do Jockey? O mote pode estar na matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo em 30 de março de 2015, onde se denuncia o abandono, por parte da Prefeitura de São Paulo, da área que fora desapropriada para ser um parque público (9). No artigo referido, lê-se que “Quase seis meses depois (da posse da área), não há nada no local que lembre um parque”. “O mato cresceu (...). As cocheiras da antiga Chácara do Jockey também foram tomadas por moitas”. Fica-se também sabendo que “terça-feira passada, pela primeira vez após a Prefeitura ter recebido a posse, uma equipe da administração municipal foi até o local tirar o mato”; que, segundo um agente da Guarda Civil Metropolitana, não identificado, “Uma viatura nossa já chegou a ficar presa no mato”; que “hoje, a única funcionalidade do terreno é a escola de futebol Pequeninos do Jockey”; que, segundo a Prefeitura, “pelas características do terreno, o espaço será destinado à ‘contemplação da natureza’ e a atividades culturais” e, por fim, que “A Prefeitura também quer que o lago que fica nos fundos tenha a mesma atratividade que o do Parque do Ibirapuera”.
Ainda hoje, tendo sido inaugurado o parque – a contrapelo das expectativas implícitas no artigo citado acima – chama a atenção o insistente comparecimento do “mato”, não na área que se tornou parque público, mas no artigo. Não menos curiosa é a observação de que a única funcionalidade do terreno é uma escola de futebol. Deduz-se que um parque, afora não ser lugar para “mato”, deva ter várias “funcionalidades”. O artigo não permite concluir, mas não seria a presença do “mato” justamente uma condição para que se cumpra uma das destinações propostas pela Prefeitura para aquela área, qual seja, a de contemplação da natureza? Outra pergunta: não seria possível dispensar um parque de ter “funcionalidades”, ou, em outros termos e já contemporizando, não poderia haver ao menos algumas partes do parque inoperantes? Mais uma: será que não conviria, por meio das atividades de gestão e manejo do parque, deixar o lago da Chácara do Jockey ser o que ele é, sem precisar aspirar a ser o do Ibirapuera?
Convém, retomando o já exposto, lembrar que contemplação não deve ser confundida com renúncia à ação; não significa não fazer nada, e sim liberar-se da operosidade, o que, aliás, assentaria muito bem a um parque. Talvez a maior qualidade de um parque sejam não as “funcionalidades”, e sim as possibilidades e a universalidade que ele reúne em sua singularidade. Se o “mato” for entendido não como fruto de um desleixo, ou meramente como um espaço técnico reservado à biodiversidade, mas assumido como terreno da “indecisão”, afiançando, assim, todo o possível, nada melhor do que ter muito “mato” no parque.
Sem detrimento das necessárias áreas reservadas à preservação e ao incremento da flora e da fauna, e dos benefícios dos chamados “serviços ambientais” que a natureza viria a prestar, onde melhor se poderia contemplar a natureza, na sua potência em ato, se não no “mato” que cresce espontaneamente e onde não é chamado? Se não nas plantas que assaltam o espaço pelas fissuras das paredes e pisos; nas raízes e gavinhas que se insinuam nas estruturas abandonadas; no musgo que recobre degraus adormecidos?
Quanto alimento para a imaginação, indispensável à vida, estaria disponível se, ao invés da erradicação, por sinal ineficaz e custosa, de todo “mato” se deixasse, como diretriz de manejo do parque, as plantas reptantes revestirem, a partir de dentro e ao seu modo imperfeito, porque inconcluso, as superfícies; se, ao invés de atribuir “funcionalidade” a todo e qualquer objeto existente na área do parque se desse espaço à fala dos espectros. Seria então possível surpreender, na menor fenda colonizada pela menor planta, toda a força interior da terra vindo à luz, porque “o grande sai do pequeno, não pela lei lógica de uma dialética dos contrários, mas graças à libertação de todas as obrigações das dimensões, libertação que é a própria característica da atividade de imaginar. (...) Assim, o minúsculo, porta estreita por excelência, abre um mundo” (10) (grifo nosso).
Ao contrário do que se poderia inferir do artigo supracitado, a presença de “mato” na Chácara do Jockey não precisaria ser imputada, necessariamente, a possíveis atrasos por parte da administração pública para a abertura da área ao público. A associação imediata do desordenamento, próprio da espontaneidade da natureza, a problemas de gestão da municipalidade, leva a crer que a primeira medida a ser tomada pelos órgãos competentes, de maneira inquestionável, com vistas unicamente à implantação do parque, deveria ter sido o corte de tudo o que fosse indesejado, a supressão de todas as marcas de uma natureza que retoma para si o que foi abandonado pelo mundo humano.
Entretanto, ainda que tivessem sido arrancadas todas as pequenas plantas espontaneamente presentes num recanto entre as antigas cocheiras ou à beira do lago, ainda que se tivesse limpado todo o terreno numa faxina esterilizante, o parque público recém-inaugurado herda da antiga chácara muito mais do que a matrícula do imóvel e as benfeitorias nele feitas há cerca de setenta anos. A força originária da natureza, manifesta nos musgos, nas trepadeiras, na vegetação crescida ao acaso, não é uma condição que o projeto do parque conseguiria silenciar. O acaso aberto à natureza que se expressa dessa forma, valendo-se das frestas entre espaços ainda que rigorosamente zelados por tesouras atentas às mínimas ervas daninhas, continuará irresistivelmente presente, gerando matos, moitas, touceiras desordenadas.
Alheio à teimosia dos roçadores de grama, das podas, da topiária, posto que resistente às tentativas de controlá-lo, o caráter originário da natureza vem à tona nos mais diversos espaços que escapam à intencionalidade humana, em glebas abandonadas, em nesgas de terrenos ociosos, nas trincas da pavimentação. Os espaços da Chácara do Jockey deixados ao acaso ao longo de vários anos, notadamente desprovidos de qualquer intencionalidade aparente durante esse tempo, são recolhidos pela natureza que, rusticamente, os habita. Tais espaços se abrem, por sua vez, às oportunidades mais diversas de afecções e apropriações possíveis. Em espaços enjeitados por um tempo, deixados ao tempo, a natureza se vê atualizada na Chácara do Jockey, em sua originalidade, de modo ruderal.
A transformação em parque da antiga chácara, por anos destituída de intencionalidade, não requereu o constrangimento de todas as expressões originárias da natureza a finalidades operacionais, a utilidades práticas impostas à área. O parque, independentemente dos usos para ele propostos e das formas concebidas para abrigá-los, não poderia ser suposto, por um lado, como a preservação ou a restauração das condições vigentes ou passadas da chácara, nem, tampouco, como a invenção do novo absoluto, como um processo de pura criação. A possibilidade de reconhecimento das expressões mais espontâneas da natureza ali vigente não está vinculada ao partido formal ou aos aspectos utilitários do parque, e sim ao modo como ele foi concebido e como será cotidianamente mantido: trata-se de considerar sincronicamente as componentes descritiva e inventiva do projeto; de entender o projeto como a relação, propositadamente ambígua, entre o que existe (descrição) e o que poderia ali, e só ali, existir (invenção) (11); trata-se de colocar a paisagem em imagem – um ato de projeção – e, assim, imaginar o que ela poderia vir a ser – um ato de projetação; trata-se de encarar o ato de projetar de dois modos, simultâneos e inextricáveis quando se fala de paisagem sob o ponto de vista da intervenção projetual: por um lado, inventariando a realidade, por outro, inventando-a, mas sempre a partir do que já está ali; trata-se de assumir que o parque não precisa aparentar ser, assim, tão novo, nem ex novo, mas que também não é um mausoléu dedicado ao que já passou. Há de ser um parque atual, ao menos no que tange à natureza que nele se faz presente sempre de modo originário.
Não foi o caso, no parque em questão, de ativar os tons melancólicos de um mundo abandonado que se acaba, como ocorre na ruína romântica; de voltar a ser metal, madeira e pedra o que já foi faca, barco e mó; nem de anunciar as ruínas do futuro, e sim da abertura de um mundo. Não um mundo nascido do nada, tampouco um mundo escondido como um tesouro que requer escavações para ser trazido à tona, mas um mundo que se faz possível e comparece à medida que o reconhecemos, simultaneamente, como familiar e estranho. Sim, a natureza nos é estranha, sobretudo onde não é chamada:
"estamos assustadoramente sós entre as árvores que florescem e entre os riachos que correm. Sozinhos, na companhia de um cadáver, não estaríamos tão abandonados como quando sozinhos no meio das árvores. Por mais misteriosa que seja a morte, ainda mais misteriosa é a vida quando não é a nossa vida, quando não participa da nossa vida e, como se não nos visse, celebra suas festas que nós, com certo embaraço, como hóspedes que chegaram por acaso e falam uma outra língua, apenas observamos" (12).
No entanto, diante de um enigma como o da natureza, que se mantém enigmática desde que não a reifiquemos, se dá em nós um duplo movimento: um estranhamento, uma distância e, ao mesmo tempo, “o sentimento de que este estranho é aquilo que nos é maximamente próprio, que esta distância é aquilo que nos é maximamente interior” (13). De fato, não nos apercebemos daquilo a que estamos demasiadamente acostumados; é preciso um afastamento, um estranhamento para que possamos percebê-lo. Assim, somente quando nos dermos conta, como homens, que a natureza é “outra coisa, indiferente, sem nenhuma intenção de nos acolher” é que tivemos condições de nos (re)aproximarmos dela “de modo adequado e sereno, com menos confiança e respeitosa distância” (14).
Ao pretendermos um meticuloso e generalizado domínio sobre toda e qualquer manifestação da força originária da natureza, trazendo-a subjugada para nossa órbita, domesticando-a, perdemos justamente o outro com o qual poderíamos nos medir. Não conhecemos mais as feras fora dos locais onde as confinamos, apenas os animais de estimação que moldamos à nossa semelhança.
Há pouco mais de duzentos anos (há menos tempo, no caso brasileiro), expressões da natureza passaram a ser, mais do que admitidas, desejadas no meio urbano. Os parques e jardins públicos, a arborização das ruas, atestam tais tentativas de reaproximação que se deram “de modo adequado e sereno”, sim, mas não com “menos confiança e respeitosa distância”. Acostumamo-nos demasiadamente à natureza domesticada a ponto de não suportarmos sua expressão fora dos códigos e limites que preestabelecemos para ela, mesmo que esta manifestação não passe de uma planta que insiste em rebrotar das arestas, das frestas dos pisos e das paredes depois de cada sessão de assepsia, ou de ervas “invasoras” que vêm macular a pureza de um gramado. O que perdemos com isto? A possibilidade de reconhecermos a nossa própria dimensão. Que não estejamos plenamente atentos a estas manifestações a toda hora e em todo lugar é compreensível: as exigências práticas da vida cotidiana o impedem. No entanto, muitas vezes, é nos espaços cotidianos que estes “afloramentos” despontam e se colocam mais à mão; cabe-nos escolher se os colhemos ou erradicamos. Não poderia um parque público acolhê-los?
Cumpre indagar as razões das dificuldades em se admitir, num espaço público urbano, as expressões paisagísticas do indisciplinado ou do espontâneo. Uma prescrição de longa data talvez explique a intolerância em relação ao “mau comportamento” da natureza, à sua falta de urbanidade. A interdição já estava presente quando se começou a pensar em introduzir, pelo filtro do jardim público, a natureza nas cidades europeias, na segunda metade do século 18. Disseminava-se, na época, o gosto pelo jardim informal que, ao simular suas irregularidades e imprevisibilidades também enfatizava o poder destruidor da natureza, potencializado com o auxílio do tempo. Assim, tanto árvores mortas plantadas propositalmente, quanto margens de riachos que se deixava desbarrancar, andavam pari passu com a premeditada construção de ruínas.
Mas estas eram extravagâncias admitidas apenas nos jardins privados. Aos jardins públicos convinha a “simplicidade e a simetria”, preconizava Watelet (15), no que era reforçado por Morel: “A simetria se aplica com sucesso na composição de jardins públicos; estes não são senão lugares arborizados, situados no perímetro urbano, onde os cidadãos se encontram, não para gozar do espetáculo da Natureza, mas para um exercício momentâneo (…)” (16). Os vários tratados sobre como deveriam ser os jardins públicos, divulgados a partir da década de 1870, consolidaram a distância que eles deveriam ter em relação ao jardim privado: somente este, “não constrito pelos laços da utilitas, é o ambiente poético” (17). A poesia como privilégio do espaço privado, é o que parecem afirmar.as normas setecentistas às quais, muitas vezes de modo inconsciente e extemporâneo, continuamos a obedecer.
Pode-se contrapor que um parque urbano é uma área “reservada”, por decisão administrativa, para determinados fins e que, portanto, não deveria ser confundida com os fragmentos que Gilles Clément reúne sob o termo Terceira Paisagem:
"Se cessarmos de olhar a paisagem como o objeto de uma operação, descobriremos subitamente – seria um lapso do cartógrafo, uma negligência do político? – uma quantidade de espaços indecisos, desprovidos de função, aos quais é difícil dar um nome. Este conjunto não pertence nem ao território da sombra nem àquele da luz. Ele se situa nas margens. No limite dos bosques, ao longo das estradas e dos rios, nos recessos esquecidos da cultura, onde as máquinas não entram. Ele recobre superfícies de dimensões modestas, dispersas como os cantos perdidos de um campo; unitárias e vastas como os pântanos, as charnecas e certas sobras de terra recentemente abandonadas. Entre estes fragmentos de paisagem nenhuma similitude de forma. Somente um ponto em comum: todos constituem um território de refúgio da diversidade. Em qualquer outro lugar ela é perseguida. Isto justifica agrupá-los sob um termo único. Proponho Terceira Paisagem" (18).
No entanto, ainda que de modo paradoxal, não seria válido pensar que um parque pudesse ter, ao menos em parte, uma “destinação” de Terceira Paisagem, uma reserva para a diversidade não só biológica, mas também de imaginação?
Não é o caso de esperar – nem de interromper, de acelerar ou refrear – e sim de observar, a cada dia, a diversidade de oportunidades que se apresenta nos espaços deixados ao abandono (19). Do próprio desinteresse, ou abandono, que favorece a epifania da natureza, podem emergir as oportunidades de modificação dos sentidos normais dos usos e funções a serem atribuídos aos diversos lugares de um parque. A atenção a um processo de evolução natural inconstante e imprevisível, mediante a reinterpretação cotidiana e atual das condições mutáveis do ambiente, apresenta forte proximidade com o pensamento de Gilles Clément em seu Manifesto. Os espaços que foram ocupados pelo homem, uma vez degradados e deixados ao abandono, constituem um território de refúgio à diversidade. Em qualquer outro lugar, seja nas áreas dominadas por uma “natureza intocável”, intencionalmente escolhidas pelo homem como ambientes a serem preservados integralmente, seja nos espaços mais profundamente antropizados, a diversidade é eliminada (20).
A Terceira Paisagem reúne espaços que, situados entre os domínios da natureza e a vontade humana, não expressam o poder nem a submissão ao poder. Trata-se do território que, segundo Gilles Clément, é o único refúgio à diversidade na medida em que corresponde à abertura completa ao porvir. Desajeitados, posto que rejeitados, os espaços da Terceira Paisagem, mesclados entre a cultura e a natureza, espalham-se por todo o mundo – compondo o Jardim Planetário (21) – sem que nenhuma intenção os defina a priori. Expressão do recolhimento pela Terra do que deixou de ser cultivado, os espaços da Terceira Paisagem são, no sentido mais amplo do termo, oportunidades.
Seria, pois, nos espaços abandonados da Chácara do Jockey e recolhidos pela natureza, nas situações que, num primeiro momento, se apresentam como a negação da paisagem – uma vez que são tidos como feios, desajeitados, mal cuidados – onde residiriam as oportunidades mais diversas de apropriações e afecções possíveis. Recantos que outrora cumpriram funções específicas ao propósito de uma chácara, onde a natureza, sem ter sido chamada, comparece de modo fortemente expressivo, podem prestar-se ao ócio, ao sem propósito, ao despropósito, ou seja, ao “excesso”, que um parque bem pode acolher, sobretudo num meio onde predominam as tentativas de controle de tempo e do espaço. A ausência de esmero que permitiu que em tais recessos brotassem as formas mais espontâneas da natureza pode oferecer uma grande diversidade de paisagens não evidentes, latentes, a serem descobertas na experiência sensível do parque.
Não é preciso, nem desejável, tornar cristalino o reflexo turvo do lago barrento, restringir a profundidade de suas águas escuras, para que se possa apreciá-lo e permitir à imaginação mergulhá-lo. À sombra da figueira da área brejosa, quanto deleite caminhar rente às raízes cavernosas, descobrir com os pés o chão forrado de folhas, tatear a ousadia das gramíneas que conseguem a superfície. A poucos metros desse recanto sombrio, junto ao galpão da antiga mecânica, o capim já alto em poucas semanas de chuva vela o pomar de goiabeiras para o sabor de sua descoberta – e que perda considerável manter sempre evidentes o cobre retorcido nos troncos, o vermelho da alvenaria, o mato roçado. Juncos, cipós, lírios-do-brejo. O enorme arrimo côncavo de matacões, rente às paredes úmidas do antigo picadeiro, não consegue conter a vontade irresistível das samambaias e das avencas que decalcam, como num mapa, o caminho entre as pedras.
À medida que se caminha pelas ruas antigas da chácara descobre-se que elas permanecem ruas, ainda que não se vejam as guias, as sarjetas e mesmo que já não se saiba o pavimento em cascalho ou terra batida. Na impossibilidade da linha reta, a vegetação rasteira debruçada à beira do caminho esboça curvas, estremece ao vento, inventa trilhas. São, ao mesmo tempo, velhas e novas as ruas da Chácara do Jockey.
Um coreto, o biotério, a casa de máquinas, cocheiras. Ao longo do caminho que leva a essas construções, touceiras de inhames, guaimbês e aves-do-paraíso guardam as marcas do tempo em que os canteiros eram tratados. Logo além, um bosque denso encerra um barranco que sobe íngreme, com os arbustos rentes à rua. Do zelo, enquanto recantos aprazíveis, à rusticidade, quando já não mais cultivados, tais canteiros, contudo, resistem no tempo em sua condição de jardim. Imiscuídas nos cipós pendentes das árvores que as protegem, encarapitadas, displicentes, ao redor dos troncos, as plantas cultivadas que ornavam as beiradas da mata misturam-se a ela, invadem seus domínios e são por ela invadidas. Espraiam-se, uma vez desprovidas dos cuidados que as conduziam, à condição de um único jardim capaz de abarcar a densidade do bosque, a rua e o capim que a permeia, e transborda para os canteiros ajardinados.
De certo modo, pelos objetos e ritmos – humanos ou naturais – que continuam a habitá-lo etereamente, apesar de já expirado o seu tempo, pode-se dizer que se trata de um jardim espectral; mas, justamente por isso, as plantas ruderais que assomam por todas as gretas e cantos e as imagens com que os devaneios se encarregam de povoá-lo fazem-no um jardim vivaz, adensado, substancial e constantemente atualizado; um jardim que abarca o que não se vê – mas que se supõe ou imagina – e que não tem limites aparentes; um jardim planetário (22), finito, mas de fronteiras desconhecidas.
Convém, porém, para preservar toda essa riqueza de sentidos reais ou latentes, prevenir os excessos de assepsia e de polimento que, normalmente, marcam as ações de manejo e de gestão de jardins e parques públicos: por não se reconhecer a fala dos espectros e das terceiras paisagens, ou pela incapacidade de decifrá-la, busca-se a todo custo fazer brilhar as superfícies usando o esmeril com tal força a ponto de sequer sobrar superfície e só restar um brilho, este sim meramente espectral, envolvendo a ocacidade das formas.
notas
1
Transcrição no 12.600, feita em 12 de setembro de 1946, relativa à aquisição da propriedade pelo Jockey Club de São Paulo, conforme relato da historiadora Natália Maria Salla, redigido em 13/09/2013, folha de informação no 75 do processo no 2006-0.197995-4.
2
Giorgio Agambem, “Dell’utilità e degli inconvenienti del vivere fra spettri”, Nudità, Roma, Nottetempo, 2009, 2a edição 2013.
3
Idem, Ibidem, p. 61.
4
Idem, Ibidem, p. 65.
5
Giorgio Agamben, La comunità che viene. Bollati Boringhieri, Torino, 2001.
6
Giorgio Agamben, “O que é um dispositivo?”, in O que é o contemporâneo e outros ensaios, tradução Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó, Argos, 2010, p. 40.
7
Giorgio Agamben, “Su cio che possiamo non fare”, Nudità, op. cit., p. 67.
8
Idem, p. 70.
9
Disponível em <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,haddad-deixa-chacara-do-jockey-fechada-ha-seis-meses,1660305>.
10
Gaston Bachelard, A poética do espaço, tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2008, pp. 163-164.
11
Jean Marc-Besse, “Les cinq portes du paysage. Essai d’une cartographie des problèmatiques paysagères contemporains”, in Le Gôut du Monde, Arles. Actes Sud / ENSP, 2009, p. 63 et passim.
12
Rainer-Maria Rilke, “Del paesaggio / Introduzione”, in Paolo D’Angelo (org.), Estetica e paesaggio. Bologna, Il Mulino, 2009, p. 60.
13
Gianni Carchia, “Per una filosofia del paesaggio”, in Paolo D’Angelo (org.), Estetica e paesaggio. Bologna, Il Mulino, 2009, p. 214.
14
Rainer-Maria Rilke, “Del paesaggio / Introduzione”, in Paolo D’Angelo (org.), Estetica e paesaggio. Bologna, Il Mulino, 2009, p. 58.
15
Claude-Henri Watelet, Essai sur les Jardins, apud Franco Panzini, Per I piaceri del popolo. Bologna, Zanichelli, 1993, p. 121.
16
Jean-Marie Morel, Théorie des Jardins, apud Fracno Panzini, op. cit., p. 122.
17
Franco Panzini, op. cit., p. 122.
19
Gilles Clément, Manifesto del Terzo Paesaggio, Macerata. Quodlibet, 2005, p. 10.
20
Idem, Ibidem, p. 63.
20
Idem, Ibidem, p. 11.
21
Idem, Ibidem, p. 16.
22
Idem, Ibidem.
sobre os autores
Arthur Simões Caetano Cabral é Arquiteto e Urbanista, graduado pela FAU-USP, pesquisador do Laboratório Paisagem, Arte e Cultura – LABPARC, da FAU-USP; integrante da equipe técnica do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da PMSP.
Vladimir Bartalini é Arquiteto e Urbanista, mestre e doutor pela FAU-USP; pesquisador do Laboratório Paisagem, Arte e Cultura – LABPARC, da FAU-USP; professor dos cursos de graduação e de pós-graduação da FAU-USP, na Área de Concentração Paisagem e Ambiente.