O verde do entorno de Brasília é o Cerrado, savana tropical que se espalha pelas áreas mais centrais do país, e que também guarda algumas semelhanças tipológicas com os lotes vagos das grandes cidades e seus matagais. O Cerrado são as plantas forrageiras de Brasília e seus arredores, onde há também ervas daninhas, pestes vegetais, capins que invadem calçadas e todo o verde indesejado (nesse sentido estrito, Cerrado= capim urbano). E assim como os capins são odiados quando em meio urbano, o Cerrado pode ser considerado como o bioma brasileiro mais desprotegido em termos legais.
Abrangência
Segunda maior formação brasileira, o Cerrado é um dos sete biomas do país e possui uma área de aproximadamente 1,5 milhão de km² (22% do território nacional). Ele está concentrado no Planalto Central e se estende desde o Amapá até o Paraná, sendo os estados com maior área Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins. Possui cerca de um terço da biodiversidade brasileira, 5% da flora e fauna mundiais, e é o nascedouro de águas que formam as três grandes bacias hidrográficas do país (do Araguaia/Tocantins, do São Francisco e do Paraná/Paraguai). Tem flora específica e é característico por possuir árvores e arbustos espaçados coexistindo com uma vegetação rasteira, caracterizando uma variação sul-americana da savana africana. Pelas suas características ecológicas (tem limite com todos os outros ecossistemas brasileiros), geopolíticas (localizado no centro do Brasil) e territoriais, o Cerrado é considerado o bioma da integração nacional. O equilíbrio desse sistema, cuja biodiversidade pode ser comparada à amazônica, é de fundamental importância para a estabilidade dos demais ecossistemas brasileiros.
Porquê Cerrado?
O aparecimento das formações vegetais no Cerrado é explicado (1):
- Pelas teorias pedológicas: em que a vegetação seria dependente de aspectos edáficos e geológicos, como deficiências minerais, saturação do solo por elementos como o alumínio, diferenças de drenagem e profundidade do solo;
- Pelas teorias climáticas: pelas quais a vegetação seria o resultado do clima, principalmente em função da limitação sazonal de água no período seco; e
- Pelas teorias bióticas: nas quais a vegetação seria o resultado da ação do homem, principalmente pelo ocorrência frequente do fogo, ou ainda resultante de outros agentes da biota, como as formigas.
Flora
O Cerrado pode apresentar diferentes tipos de vegetação dependendo da quantidade de água do local, do regime de fogo e do tipo de solo. Assim, são perceptíveis no Cerrado as seguintes fisionomias: campo limpo, campo sujo, Cerrado sentido restrito, cerradão e mata de galeria. O campo limpo é dominado por vegetação rasteira, como as gramíneas; o campo sujo possui vegetação rasteira e arbustiva; o Cerrado sentido restrito já possui estrato arbóreo; o cerradão é uma vegetação mais densa e a mata de galeria é encontrada perto de córregos e possui árvores mais altas e normalmente sempre-verdes.
A flora do Cerrado é rica. A ordem que predomina no estrato lenhoso é a das Leguminosas, enquanto que no estrato herbáceo é a das Gramíneas e Compostas. Estima-se que no Cerrado existam 10 mil espécies diferentes, muitas delas usadas na produção de cortiça, fibras, óleos, artesanato, além do uso medicinal e alimentício. As árvores têm raízes pivotantes e profundas, podendo chegar a mais de 12m de profundidade para atingir o lençol freático – o que lhes permite usufruir reserva de água mesmo no período da seca. Outra característica é a caducifolia, ou seja, perda das folhas; um dispositivo contra a perda de água por transpiração durante o período da seca. Os indivíduos mais robustos são de médio porte (3 a 6m) e têm tronco e galhos esculturalmente retorcidos, cascas pré-historicamente espessas e folhas coriáceas.
O aspecto retorcido dos galhos é explicado pela “queima do meristema apical”. Todas as plantas têm um meristema apical (zona de crescimento) e meristemas secundários que ficam inativos, só funcionando caso o meristema apical deixe de existir. Com as queimadas periódicas que ocorrem no Cerrado, o meristema apical seria queimado e com isso os meristemas secundários seriam ativados e iniciar-se-ia um crescimento em outra direção. A explicação do fogo ganha fundamento quando se analisa algumas sementes que só germinam após terem sido queimadas – o que pode ser considerado uma proteção contra o fogo – ou mesmo quando se analisa a casca extremamente grossa, que é outra proteção contra o fogo (2).
Piropaisagem
Se as formas convolutas das árvores do Cerrado são assim por causa dos incêndios, temos então a composição vegetal desse bioma como uma conseqüência de sua capacidade de se adaptar à destruição pelo fogo. Uma “piropaisagem” constituída de uma pirovegetação de dois tipos: as pirofitas passivas, constituídas por espécies que resistem ao fogo (as árvores convolutas); e as pirofitas ativas, constituídas por espécies que regeneram-se graças ao fogo (as gramíneas) (3).
Mato
Por ser uma savana tropical vista apenas como o bioma da vegetação pobre e como reserva de expansão para áreas agrícolas, o Cerrado é desamparado em termos de proteção legal. Diferentemente da Mata Atlântica, da Amazônia e do Pantanal, o Cerrado não é configurado como Patrimônio na Constituição Federal, apesar de sua biodiversidade ser considerada uma das 25 mais ricas do planeta e, em termos de savana, ser a mais rica. Apenas 1,7 % de sua área encontra-se protegida em unidades de conservação e proteção integral. E assim como as pragas urbanas (como o capim) são ignoradas, o Cerrado tem sido visto como área para novos empreendimentos em escala territorial: de cerca de 6% da soja do Brasil no início da década de setenta, a região Centro-Oeste, maior depositária do Cerrado, produz cerca de 50% da soja cultivada no país. A pecuária no Centro-Oeste, atividade que mais invade a área do Cerrado, tem crescido exponencialmente e detém hoje mais de um terço do rebanho bovino nacional e cerca de 20% dos suínos. Estudos recentes da Embrapa demonstram que restam menos de 5% de fragmentos do Cerrado com possibilidade de sobrevivência – aqueles com mais de 2.000 ha. e por isso capazes de assegurar a permanência das cadeias genéticas reprodutivas. Porém, se acrescentarmos fragmentos menores, restam ainda 20% do Cerrado preservados.
Lúcio Costa
Inspirado pelos parques da Inglaterra, país onde passou sua infância, Lúcio Costa, autor do Plano Piloto de Brasília, considerava os lawns, extensos gramados dos parques ingleses, como um dos principais ingredientes da concepção urbanística da capital. Brasília é, em essência: um eixo dos edifícios públicos principais, um eixo das superquadras residenciais, e um sistema rodoviário capaz de funcionar sem a necessidade de cruzamentos. Tudo isso rodeado de jardins e parques desenhados segundo a “técnica da paisagem”.
Mas essa para ele não era uma cidade-Cerrado e sim cidade da paisagem entre o artificial e o natural, ele insinuava: “Normalmente, urbanizar consiste em criar condições para que a cidade aconteça; ao passo que em Brasília tratava-se de tomar posse do lugar e de lhe impor – à maneira dos conquistadores ou de Luiz XV – uma estrutura urbana capaz de permitir, num curto lapso de tempo, a instalação de uma Capital. Ao contrário das cidades que se conformam e se ajustam à paisagem, no Cerrado deserto e de encontro a um céu imenso – como em pleno mar a cidade criou a paisagem” (4).
Mas, na verdade o que houve foi o contrário: a paisagem criou a cidade, e isso me permite dizer que Brasília é, acima de qualquer outra definição, uma cidade-Cerrado (ou, para criar uma definição mais sonora, uma cidade-mato). Esta é, sem dúvida, o maior elogio que uma cidade construída no Cerrado poderia ter – não importando aqui as muitas diferenças que existem, de um lado, entre as árvores exóticas de Brasília e, de outro, o Cerrado intocado das regiões mais distantes do Distrito Federal.
Cidade-Cerrado?
Provavelmente há uma mitologia brasiliense que ainda está por ser narrada. O céu azul e a terra vermelha ainda vão inspirar uma nova prosa, uma nova ecologia: a dos capins sem fim. Nenhum monumento, nenhuma exuberância. Mesmo assim, por que é que o Cerrado é fascinante? Deve ser a potência da pura extensão territorial. Os sussurros da imensidão ameaçada. O fim da distinção heróica entre natureza e cultura. O choque incalculado entre a arquitetura nacional e o Planalto Central. A sucessão de funções rígidas do urbanismo moderno (setor hoteleiro, setor comercial, setor bancário etc.) corrompidas pela sucessão livre de árvores de casca grossa (barbatimões, pau-santos, jacarandás-do-cerrado etc). As curvas orgânicas dos troncos retorcidos sobrepostas às curvas geométricas das abóbodas e dos arcos. A capital como prova irrefutável de que o Brasil não é um país moderno (e sim um país de natureza soberana e avassaladora, ainda). A negação da herança barroca e colonial e o elogio da vitalidade primária da terra. E por último, a imagem maior da nossa culpabilidade: porque Brasília não é, de fato, uma cidade-Cerrado?
Vingança
O domínio artificial das gramas batatais da Esplanada dos Ministérios está com seus dias contados. Pois, ao contrário do que queria Lúcio, não há gramados ingleses em Brasília: há sementes de capim-carrapato em hibernação, à espreita de uma oportunidade para vingarem a sua expulsão. O futuro é das espécies locais e não das exóticas mantidas sofregamente pelos garis do Distrito Federal.
Defensores de Brasília vão argumentar que na verdade há vegetação autóctone na cidade. Estão enganados pelas aparências. Por exemplo: os buritis que adornam os palácios da capital não nasceram ali, foram transplantados. Para a Praça dos Buritis foi um indivíduo com cerca de 20m de altura, 25 toneladas e 200 anos (idade calculada pelos anéis do fuste). Em 1967, 51 buritis foram levados para o Palácio do Itamarati. Em 1971, 47 foram para o Setor Militar Urbano. Em 1977, buritis que antes habitavam uma vereda em Goiás foram levados para o Parque Recreativo de Brasília (5). (Um dos motivos dos transplantes é que as plantas do Cerrado são de crescimento lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos, e um buriti atinge 30m de altura com 500 anos. Como disse o geógrafo Altair Barbosa, as veredas – que existiam em abundância até pouco tempo – eram compostas de plantas jovens quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil. Palmeiras que brotaram em 1500 são os mesmos buritis que hoje têm 25m ou 30m).
Mas voltando à vingança dos capins: esta não é uma questão local. Considere, por exemplo, o efeito negativo da grama nos Estados Unidos, um país onde toda casa deve estar envolta por um relvado sempre bem cuidado. Esta tradição começou nos castelos das aristocracias francesa e britânica no final da idade média, quando o relvado era (e ainda é) símbolo de poder, prestígio e dinheiro. Tempos depois, com o modelo de subúrbio americano seguido pela invenção dos sistemas de irrigação automática e do corta-gramas, o relvado tornou-se acessível a milhões de famílias a ponto de ser hoje um elemento fundamental do paraíso suburbano cultivado pela pequena burguesia dos Estados Unidos. Recentemente, um estudo da National Aeronautics and Space Administration – Nasa concluiu que há 63.000 milhas quadradas de grama no país, cobrindo uma área maior que a do estado da Geórgia. Manter a grama verdinha pode consumir cerca de 50 a 75% da água de uma residência. Corta-gramas das casas americanas poluem o ar e exigem 17 milhões de galões de gasolina todo ano. Gramados requerem fertilizantes e pesticidas: são US$ 36 bilhões gastos só com estes químicos, quantia 4,5 vezes maior do que o orçamento anual da Agência de Proteção Ambiental americana.
Um gramado de plantas nativas, por outro lado, fornece habitat para pássaros, insetos etc. Gramíneas locais extraem dióxido de carbono do ar e fixam-no no subsolo, têm raízes mais profundas e armazenam mais carbono. Em lugares secos como o sul da Califórnia não há razão para os gramados convencionais existirem: em meio à seca dos últimos anos, as prefeituras californianas estão oferecendo incentivos para os proprietários converterem seus gramados em vegetação nativa (6).
Biological invasions
Parece o título de um filme-catástrofe, mas é uma revista acadêmica publicada desde 1999 pela editora suíça Springer International Publishing. Biological Invasions tem diversos artigos sobre espécies exóticas invasoras. Biotic Homogenization of the South American Cerrado, por exemplo, fala sobre a invasão do Cerrado e discute como ela pode estar contribuindo para a homogeneização biótica. O Cerrado está sendo paulatinamente dominado pelas espécies não-nativas na forma de culturas cultivadas e pastagens, enquanto as espécies nativas estão cada vez mais ameaçadas de extinção devido a perdas de habitat e à alcalinização do solo ácido do Cerrado.
Figura x Fundo
Como vários críticos da cidade moderna notaram, na cidade tradicional barroca o fundo é os casarios das ruas, a figura é as ruas. As fachadas são uma massa sólida de edifícios que servem como fundo para as praças e ruas, espaços primordialmente públicos. Em Ouro Preto, por exemplo, os vazios não são infinitos: são figuras e têm forma, que nos é dita pelas testadas. A Praça Tiradentes, a principal área cívica da cidade, é um retângulo que tem quatro lados bem delineados: a Escola de Minas de um lado, a Casa de Câmara e Cadeia de outro, e os casarios de um pavimento nos outros dois. Uma convenção da cidade tradicional pode ser esquematicamente resumida como sólido=fundo, vazio=figura. As massas contíguas (sólidos) formam um ambiente (vazios), ou as estruturas cotidianas são um definidor das praças públicas.
A cidade moderna inverteu essa convenção radicalmente: cada edifício deve ter a importância de uma figura. Ao invés de compor um pano de fundo contínuo e homogêneo, os prédios agora são objetuais e têm a importância de um monumento. Antes, as fachadas ouro-pretanas eram contínuas e os vazios eram descontínuos, delimitados. Agora, os vazios são contínuos e os prédios são figuras, objetos. Têm quatro fachadas e todas as quatro são importantes e podem ser vistas de infinitos ângulos, enquanto os prédios anônimos de Ouro Preto só têm a fachada principal. Todo edifício moderno aspira a ser um monumento ilhado por espaços verdes; todos os blocos das superquadras querem ser figuras contra um fundo neutro (7).
Mas a cidade feita de objetos isolados e vazios contínuos, de objetos assim esparsos que em princípio traduzem uma sociedade justa e iluminada, livre e racional – esta também é a cidade das desorientações provocadas pela repetição, pelo continuum ininterrupto sem qualquer limitação, da falta de referências que aturde mesmo seus mais antigos moradores (e, obviamente, é também a cidade da desigualdade e da injustiça). Todos os blocos são esculturais, mas esse acúmulo de objetos gera o que o antropólogo James Holston chamou de “anonimato escultural” e de “impossibilidade semântica”. Objetos que dizem definir o espaço das superquadras, mas que, no final, são apenas ocupadores (e não definidores) de espaço. Talvez por isso seja inútil por Brasília de um lado e o Cerrado de outro: é preciso assumir uma outra estratégia fundo-figura, natureza-arquitetura.
Nova Ecologia
Estaríamos diante de uma oportunidade para imaginarmos uma nova ecologia urbana? Uma nova forma de ver a cidade na qual cidade e território estariam confundidos numa mesma e indissociável paisagem? Aqui, o fundo predomina e embaça a figura; o ar, a luz, a vegetação e o calor desfazem a arquitetura. O de Brasília é um verde selvagem que não precisa ser protegido por grades, como num parque urbano convencional. Um meio-termo não rotulável: é a vegetação de gramas tão indesejada como aquela dos lotes vagos das grandes cidades, mas ao mesmo tempo uma extensão urbana de um domínio natural onde está a segunda maior reserva da fauna e da flora do país. Uma operação bem-sucedida de fusão figura-fundo que põe em prática o que outras cidades modernas têm como um fim último – fim aqui alcançável já que estamos em meio a um ativo inebriante: o Cerrado.
O verde que entusiasma em meio aos blocos que desencantam; o mar de espaço que combate a arrogância desta empreitada urbana: é preciso falar de Brasília com inocência, esperando com isso o despertar de uma artimanha ainda embrionária. Uma manobra que apela para a coexistência da ordem e da desordem, da permanência e do devir, do futuro e do passado, do fundo-figura e da figura-fundo.
No final, este descobrir do torpor do Cerrado deve ser feito sempre com uma ressalva: hoje ele não é mais virgem, não é uma folha sem traços de uma utilização prévia. Antes, essa operação deve estar, necessariamente, contaminada por um conflito entre sólidos e vazios, verdes e magentas. Analogamente, a obra iconoclasta “Desenho de De Kooning Apagado” serve como um paralelo dessa revelação dos vazios. Em 1953, o artista Robert Rauschenberg comprou um desenho de um outro artista da sua geração, Willem de Kooning. Com o consentimento deste (o autor do desenho), Rauschenberg pôs-se a apagar as linhas da obra original até que apenas indícios do desenho ficassem visíveis sobre o papel, “usando o gesto para extinguir o gesto, o mesmo recurso de construção para desfazer um conjunto de sentidos e instituir um outro, devolvendo a unidade estética alcançada pela obra finalizada à unidade primordial onde ela tem a sua origem – o vazio da tela ou da folha de papel” (8). O procedimento de Rauschenberg apagou mas deixou as marcas do desenho de De Kooning; sinais indeléveis que não tiveram como ser removidos da folha de papel por completo.
Como disse o crítico José Miguel Wisnik, “O sertão se destrói, inviolável – porque nele resiste, para o bem ou para o mal, o substrato irredutível e rebelde às superações – retornando sempre, já que nada é capaz de cortá-lo (e as árvores cortadas só o confirmam)” (9).
O sertão é inviolável, mas nem todos o veem assim. Ao traçar os dois eixos que resumem seu Plano Piloto, Lúcio Costa enunciou a frase digna de um conquistador: “Gesto de quem toma posse: dois eixos cruzando em ângulo reto”. Mas não, Brasília não tomou posse do Planalto Central: este é que está, capciosamente, recuperando um território aparentemente perdido. Deve haver um solo ácido e vermelho sob o asfalto brasiliense (sous les pavés, la terre!); deve haver indícios de uma persistência do Cerrado em Brasília e de Brasília no Cerrado. Assim como a modernidade conservadora do Brasil é feita de duas camadas – o arcaico e o novo – sempre sobrepostas e nunca separadas.
O outro, o mesmo
O sertão então virou a capital do país? Sim, se apostarmos na força do contrassenso. “Essa potência construtora e destrutiva, que toma e assume o espaço, cega à biomassa que desmata, é ainda e sempre o sertão, outro e mesmo, sua dobra” (10). O mesmo sertão que, já em 1968, o sociólogo Gilberto Freyre defendia: “como cidade nova, Brasília não é para ser considerada um puro problema de arquitetura ou, sequer, de urbanismo, mas de ecologia. De ecologia tropical em toda sua complexidade”. E denunciava: “acuso ao próprio Juscelino Kubitschek por não ter convocado ecologistas e cientistas sociais que associassem aos arrojos desses artistas outra espécie de saber ou de conhecimento” (11).
Rio
O que são os jardins desenhados por Le Corbusier vistos de dentro dos prédios da sua Cidade Contemporânea? Parte de seu plano para “desentupir o centro” e levar o verde para toda a cidade. Mas também um ponto essencial da cidade moderna: a de dotá-la de enormes gramados neutros como fundo para uma arquitetura sempre designada como figura. Um paisagismo domesticado e homogêneo.
“Sol, espaço, verde: alegrias essenciais. Através das quatro estações estão as árvores, amigas do homem. Grandes blocos de habitação percorrem a cidade. O que isso importa? Eles estão atrás da tela das árvores. A natureza é contratada” (12).
Pois agora desfaçam essa neutralidade para substituí-la pela virulência verde. Infiltrando-se no meio dos prédios num movimento irracional em contraponto ao discurso moderno. Como poderia ser o Rio de Janeiro, cidade tomada pela força das plantas ornamentais: singônios, costelas-de-adão, jibóias e guaimbês são expulsos das garagens num plano sorrateiro dos vegetais para ocupar a cidade. Despencando dos peitoris de concreto até chegar nas calçadas, subindo pelos troncos das árvores e brotando pelos canteiros como pestes. Esta é a diferença entre as outras cidades e o Rio: aqui, um plano como “Tumor Benigno” (13) não é um delírio ambientalista, mas sim um item a mais que compõe uma realidade surreal. Mesmo que este delírio só assombre a zona sul, quem sabe aguardando uma oportunidade para tomar o centro e a zona norte.
Moisei Ginzburg, ou o encontro conflituoso do magenta com o verde
Foi Moisei Ginzburg, arquiteto e teórico do construtivismo soviético, quem propôs uma estratégia ainda mais radical para Moscou em sua Cidade Verde: a capital seria transformada de uma forma gradual. Moscou seria dissolvida natural e entropicamente.
De acordo com o edital de um concurso de arquitetura organizado pelo governo da URSS em 1930, inicialmente a Cidade Verde deveria ser um resort de férias conectado a Moscou por uma estrada de ferro existente e apto a receber até 100.000 visitantes a um só tempo. Mas a ambição da proposta de Ginzburg ia mais longe: transformar Moscou inteira, que haveria de se tornar, ela mesma, um gigantesco parque. Para esta transformação, ele propôs então três medidas estratégicas: realocar os prédios institucionais, realocar a população moscovita nas áreas lindeiras às estradas que chegavam à capital e, a mais radical, banir toda e qualquer nova construção em Moscou.
Permitam que os prédios sejam tomados pelos capins das estepes russas, deixem que a cidade se transforme entropicamente, apaguem qualquer traço da presença contrarrevolucionária. (Moscou seria um manifesto urbano da Segunda Lei da Termodinâmica, como nos diria o escritor Isaac Asimov: “Precisamos trabalhar duro para arrumar uma sala, mas quando a deixamos por si mesma ela se torna mais uma vez desordenada. Mesmo se nunca entrarmos, ela se empoeira e embolora. Como é difícil manter casas, máquinas e nossos próprios corpos em perfeita ordem de funcionamento: e como é fácil deixá-los se deteriorarem. De fato, tudo que precisamos fazer é não fazer nada, e tudo se deteriora, entra em colapso, se quebra, desbota, tudo por si mesmo – e é disso tudo que trata a Segunda Lei” (14).
Voltando a Ginzburg, ele propôs desurbanizar a cidade tradicional, deixar apodrecer a cidade capitalista e suburbanizar a União Soviética inteira. Os prédios símbolos do czarismo não seriam preservados artificialmente: a partir do momento que eles fossem considerados dispensáveis, não seriam mais tombados. Não haveria a atenção de nenhum órgão como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan e o estado não teria a carga de simular vida em prédios mortos: eles seriam deixados esmorecer para depois serem substituídos por áreas verdes. Com o tempo, Moscou seria um grande parque de lotes revegetados, ruínas de palácios e edifícios antigos preservados sem tubos, bombas ou próteses. Ou melhor, Moscou seria um mosaico de tons verdes e magentas onde os surtos de tons quentes encontrariam ilhas de repouso nos lotes verdes. Mas aqui estes verdes nunca seriam enfadonhos por causa das interrupções violentas – ou das infiltrações saudavelmente perturbadoras – de magenta. No final, essa visão de uma “cidade ao contrário” geraria não a monotonia verde e nem o nervosismo magenta, mas uma mistura dos dois: magenta + verde= cinza.
Ginsburg estava sob influência do desurbanismo, doutrina que pregava o fim do conceito de cidade tal como o entendemos. Em 1930 a URSS ainda era um laboratório de experimentos extremos, com diversos grupos de artistas e arquitetos organizando-se sob o abrigo de manifestos revolucionários que rivalizavam entre si. O sociólogo Mikhail Okhitovich foi um destes intelectuais que propôs levar a aventura socialista a caminhos perigosamente inauditos. Seu desurbanismo adotava um plano de assentamentos dispersos pelo território da União Soviética, com restaurantes coletivos, instalações recreativas e centros de emprego em entroncamentos rodoviários, vagamente lembrando a Broadacre City de Frank Lloyd Wright. Através de uma rede de transporte, energia e comunicação que atravessaria toda a nação, o desurbanismo espalharia casas unifamiliares de 42m quadrados pra todo lado. O estado concederia a cada pessoa uma unidade leve pré-fabricada, deixando o morador livre para combinar e organizar os módulos, e usando rodovias, ferrovias e aeroportos para conectá-los. A aglomeração urbana das cidades seria eliminada para criar assentamentos auto-suficientes de baixíssima densidade, com 50, 20 – ou só três moradores! E Moscou, livre do fardo de ser uma cidade, seria convertida num parque (15).
Defensor da oposição do então exilado Leon Trotsky, Mikhail Okhitovich entrou em desacordo com o Partido Comunista no início do período de Stalin e, depois de atacar o culto à sua personalidade, foi repreendido pelo Politburo por sua produção intelectual e arquitetônica, sendo acusado de que o desurbanismo era economicamente incapacitante. Foi preso, enviado para um Gulag e finalmente executado em 1937 (16).
Le Corbusier teria dito que a cidade moderna deveria ser um grande parque, mas sua Cidade Contemporânea não era suficientemente radical. Ele não chegou a imaginar uma cidade-parque com a extensão do maior país do mundo nem uma Paris inteiramente tomada pelas forças destruidoras da natureza. E por isso que o próprio Ginzburg atacou seu ex-ídolo, agora tido como um conformista e reacionário. Interessado em projetar na URSS, país que despontava como a esperança de uma nova sociedade e um novo mundo, Corbusier prontamente atacou a ameaça dos arquitetos desurbanistas em carta endereçada a Ginzburg. Que assim reagiu:
“Meu caro Le Corbusier,
[...] Você é o melhor dos cirurgiões da cidade e quer curá-la de seus males a qualquer custo. Então você levanta a cidade inteira em pilotis, esperando resolver o problema do trânsito urbano insolúvel. Cria maravilhosos jardins nas lajes de prédios altos na esperança de dar às pessoas um pouco de verde, você projeta casas cujos moradores desfrutam da mais perfeita conveniência, paz e conforto. Mas você faz tudo isso porque quer curar a cidade, porque está tentando manter essencialmente o mesmo que o capitalismo fez.
Acontece que nós na URSS estamos em uma posição mais favorável – não estamos amarrados ao passado. A história nos confronta com problemas que só podem ter uma solução revolucionária e, por mais débeis que sejam nossos recursos, nós os resolveremos, não importa o que aconteça.
Estamos fazendo um diagnóstico da cidade moderna. Nós dizemos: sim, ela está doente, mortalmente doente. Mas não queremos curá-la. Preferimos destruí-la e pretendemos começar a trabalhar em uma nova forma de assentamento humano que seja livre de contradições internas e possa ser chamado de socialista” (17).
Identidade
Mas não estamos em épocas tão futuristas quanto aquelas que engendraram a cidade moderna ou a Cidade Verde. Pelo contrário: no nosso tempo mais vale vislumbrar o futuro com o que já temos e considerar o potencial latente da cidade existente, seja ele qual for.
Em função do tombamento pela Unesco em 1987, desde aí tudo em Brasília conspira para a manutenção ipsis literis; para o engessamento, a rigidez e a burocratização. Fossilizada pela nostalgia, seu futuro já não está no Plano Piloto, mas nas cidades satélites fundadas pelos candangos que o construíram. Daí que a solução para reinventar o Plano só pode estar nos vazios: só aqui – em seus verdes e não em seus sólidos – podemos imaginar o potencial da paisagem como um recurso para trazer surpresas e identidades. Ou: o magenta como um mar de mesmices formado por blocos de seis pavimentos; o verde como a liberdade e o devir. Hoje, tornar Brasília uma cidade mais diversa é investir naquilo que resta como potencial de identificação e diferenciação: por um lado, a paisagem como expressão das superquadras; por outro, como um futuro melhor para as cidades satélites. A partir do Cerrado onipresente, uma nova região metropolitana com mais variações e menos desigualdades.
Esta proposta não de todo contraria, mas confirma certas idéias de Lúcio Costa sobre a paisagem urbana: as super-quadras, segundo ele, seriam “emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano como que amortecido na paisagem. Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios” (18).
Tombamento
No final, o que o tombamento pela Unesco fez foi congelar uma cidade que é mais mato que cidade e que têm vazios tão vastos que até seriam mais interessantes com mais uns sólidos, provavelmente. Por ironia, os ecologistas urbanos, potenciais amigos do Plano Piloto verde, desaprovam-no. O tombamento perpetuou Brasília como cidade economicamente inviável, socialmente injusta e ecologicamente insustentável: suas zonas monofuncionais e as largas distâncias entre tudo são a imagem de uma cidade inimiga do pedestre, da rua, da mistura de usos, do caminhar e do transporte público viável (sem mencionar os grandes desequilíbrios sociais entre o Plano e as cidades satélites). Eficazes, para eles, são as cidades densas e compactas que conseguem maximizar investimentos públicos e privados pela capacidade de gerar seus próprios recursos, necessários para manter um desenvolvimento contínuo e sustentável. Brasília, capital federal e símbolo do país, é então a marca da ineficiência do Brasil – característica que não deixa de ter seu lado positivo. Então Brasília é uma cidade anti-moderna: se o que é moderno está associado à função, à racionalidade e ao terapêutico, Brasília é pujança, excesso e desperdício; todos causados pelos vazios intermináveis e pelo zoneamento moderno.
Mas a cidade não está sozinha nesse fiasco de dois gumes. Ela é a confiança na técnica, numa técnica de dimensões poéticas, feita como espasmos e convulsões momentâneas que depois relaxam para voltar a um estado primitivo. Como disse o crítico de arte Ronaldo Brito em Contra o Culto da Ignorância, “Desejamos uma ‘ordem natural’ – ao pensamento cabe, o mais depressa possível, voltar a ela. [...] Aos problemas do pensamento, [nós, brasileiros] aplicamos a natureza. Aos da natureza, o pensamento. Toda a nossa confiança na técnica parece repousar, secretamente, sobre a crença na natureza – afinal ela é amazônica, pródiga e inesgotável. O nosso simbólico responde à técnica de uma maneira simples – procurando mitificá-la, torná-la, de um modo ou de outro, mágica”.
Resta agora acreditarmos nesta outra capital, transformando-a numa cidade-Cerrado antes que o avanço da agropecuária transforme tudo. Já que quase todo o Cerrado virou soja e pasto, agora uma vingança absurda da natureza vai se manifestar ambiental e politicamente onde menos se espera: em Brasília.
notas
1
Guia do Cerrado. São Paulo, Empresa das Artes, 2003.
2
Ecossistemas: Cerrado. ONG VivaTerra <http://www.terravivarn.org.br/>.
3
Segundo uma classificação empregada pelo paisagista Gilles Clément. CLÉMENT, Gilles. Paysages du feu. Botanique Jardins Paysages <https://www.botanique-jardins-paysages.com/102011-2/>.
4
Costa, Lúcio. Registro de uma Vivência. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.
5
ROMERO, Marta Adriana Bustos. A sustentabilidade do ambiente urbano da capital. In Brasília, controvérsias ambientais. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2003.
6
HOLTHAUS, Eric. Get Rid of Your Lawn. Slate Magazine, Nova York, 6 mai. 2019 <https://slate.com/technology/2019/05/lawns-are-bad-get-rid-of-them.html>.
7
HOLSTON, James. A cidade modernista. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 126.
8
WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo, Cosac & Naify, 2002.
9
Wisnik, José Miguel. O famigerado. Scripta, v. 5, n. 10, Belo Horizonte, 2002.
10
Idem, ibidem.
11
FREYRE, Gilberto. Brasis, Brasil e Brasília. Rio de Janeiro, Record, 1968.
12
Le Corbusier [1948]. The Home of Man. Apud ROWE, Collin; KOETTER, Fred. Collage city. Cambridge, MIT Press, 1984, p. 51.
13
“Se a história de Belo Horizonte é um filme, este pode ser resumido a uma transformação dos vazios de uma cidade jovem em cheios de uma cidade saturada. Esse projeto é a imagem desse filme vista em câmara rápida, mas em sentido inverso (como a imagem que se tem com a tecla rewind dos VCR): é um retrocesso na história que, paradoxalmente, aponta para os melhores futuros da cidade. Recapitulemos toda a história de BH em poucos minutos, para que o absurdo da ocupação dos vazios fique mais claro. Se o “progresso” desta cidade está identificado com a paulatina ocupação de seus lotes, parques e áreas verdes, um retrocesso significa desocupar os cheios e re-instaurar os vazios e o natural. Desafogar o Centro, adensar e interligar a periferia eficientemente, imaginar projetos tão delirantes como o foi a densificação de Belo Horizonte. Voltar às origens da cidade. Imaginar, mais uma vez, a liberdade e a força dos vazios. Agora, a zona urbana passará a ser um grande Parque Municipal, num gesto de ‘vingança do urbanismo’. Como um enorme Central Park – que é ao mesmo tempo negação e exaltação da cidade -, a zona urbana passará a ser a natureza de que dispomos: a natureza das coisas que escaparam ao artificialismo da arquitetura. A vingança: metástase inversa daquela que caracterizou o crescimento da cidade. Um tumor benigno. Uma mancha de vazios contaminando os cheios. Um retrocesso: volta ao início da história como forma de enxergar um futuro mais saudável”. TEIXEIRA, Carlos M. História do vazio em Belo Horizonte. São Paulo, Cosac Naify, 1999.
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ASIMOV, Isaac. In the Game of Energy and Thermodynamics You Can't Even Break Even. Smithsonian Institution Journal, jun. 1970, p. 6.
15
LUCARELLI, Fosco. Mikhail Okhitovich and the Disurbanism. Socks, 14 jul. 2012
<http://socks-studio.com/2012/07/14/mikhail-okhitovich-and-the-disurbanism/>.
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Idem, ibidem.
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VRONSKAYA, Alla. The utopia of personality: Moisei Ginsburg project for the Moscow’s park of culture and leisure. Problema voluminis 4.
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COSTA, Lúcio. Plano Piloto de Brasília. Módulo Arquitetura Ltda, s/data. Outra referência sobre a importância da integração da paisagem no trabalho de Costa é a memória descritiva do seu Anteprojeto para a Vila Operária de Monlevade (1934), que está estruturada em três princípios norteadores, sendo o terceiro deles “3. Prejudicar o menos possível a beleza natural do lugar a que se refere, muito a propósito, o programa”.
sobre o autor
Carlos M. Teixeira é arquiteto pela Escola de Arquitetura da UFMG, mestre em urbanismo pela Architectural Association e doutorando pela FAUP. Publicou os livros Em obras: história do vazio em BH (Cosac Naify, 1999) e Ode ao Vazio (Romano Guerra/Nhamérica, 2017), e é sócio do escritório Vazio S/A.