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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Através de uma análise dos textos constitutivos, o artigo propõe uma leitura crítica do Favela-Bairro, programa motivado por uma ideologia da segregação que se somou ao histórico de violências perpetradas contra os moradores das favelas.

english
Through an analysis of texts, this paper presents a critical reading of Favela-Bairro, a program motivated by an ideology of segregation that added to the history of violence perpetrated against the residents of Rio's favelas.

español
Mediante una lectura de los textos constitutivos, el artículo propone una lectura crítica de Favela-Bairro, programa motivado por una ideología de segregación que se sumó a la historia de violencia perpetrada contra los residentes de las favelas de Río.


how to quote

LEONIDIO, Otavio. Favela, bairro, cidade. O programa Favela-Bairro e a violência contra as favelas. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 242.07, Vitruvius, jul. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.242/7824>.

Este texto defende a tese de que, não obstante seus objetivos declarados (notadamente, “transformar essas áreas em bairros populares, criando formas de promover a integração de dois lados distintos do mesmo Rio: a cidade oficial e a cidade informal”) (1), o Programa Favela-Bairro, implementado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro a partir de 1994 (2), foi motivado por uma ideologia da segregação, tendo na prática se somado ao histórico de violências perpetradas pelo aparato estatal contra xs moradorxs das favelas cariocas.

Não é preciso ser grande um conhecedor do Favela-Bairro para saber o quanto essa tese contraria algumas das ideias mais amplamente aceitas sobre o programa (3), em especial: 1. o Favela-Bairro foi uma das manifestações mais tangíveis de uma mudança de paradigma (de parte do poder público, mas não apenas) vis-à-vis do “problema da favela” (mudança sintetiza pela substituição da retórica da “erradicação”/“remoção” pela retórica da “integração”/“regularização”) (4), e 2. em que pese suas alegadas insuficiências, o Programa foi, parcialmente pelo menos, bem sucedido, tendo na prática resultado numa significativa melhora das condições de vida das populações beneficiadas, tanto no que concerne às condições físicas/ambientais da favela, quanto no diz respeito aos direitos civis de seus moradores (5).

E no entanto, não me parece difícil argumentar que nem a autoimagem nem a imagem pública alcançada pelo Favela-Bairro ao longo do tempo resistem a uma análise que dê a devida atenção aos textos constitutivos do programa (aí incluído seu repertório de imagens) (6), com destaque para a) os editais de seleção e contratação dos escritórios responsáveis pela elaboração dos projetos de arquitetura que compuseram o Favela-Bairro, e b) suas peças oficiais de divulgação, com destaque para os livros publicados pela Prefeitura da CIdade do Rio de Janeiro.

Meu argumento não se baseia, contudo, nos textos do Favela Bairro apenas. Optei, em vez disso, por contrastar esses textos com os textos de outro importante programa de requalificação urbana implementado, simultaneamente ao Favela Bairro, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – o Projeto Rio Cidade.

A opção por uma análise comparativa entre Favela-Bairro e Rio Cidade me parece auto-justificada. Como é notório, o Rio Cidade constitui, junto com o Favela-Bairro, o carro chefe da política de requalificação urbana posta em prática pelas gestões casadas dos prefeitos César Maia (1993-1996, 2001-2004 e 2005-2008) e Luiz Paulo Conde (1997-2000). E o que é mais importante, tanto em termos físicos/ espaciais quanto conceituais/ retóricos, o Rio Cidade foi de fato concebido e apresentado como par complementar do Favela Bairro. Para lançar mão do vocabulário oficial, somados, os dois programas pretendiam dar conta (espacial e conceitualmente) das duas faces “do mesmo Rio: a cidade oficial e a cidade informal”. Buscar o significado do Favela-Bairro na confrontação de seus textos com os textos do Rio Cidade me parece, portanto, incontornável. Porque do modo como foram concebidos, implementados e divulgados, um programa simplesmente não faz sentido sem o outro.

Favela-Bairro. Uma outra história da Cidade do Rio de Janeiro e Rio Cidade. O urbanismo de volta às ruas, livros de divulgação dos projetos Favela-Bairro e Rio Cidade
Imagem divulgação [Vivercidades/ Mauad]

Ora, uma simples passada de olhos nos textos dos dois programas já expõe o aspecto segregacionista do Favela Bairro. Digo “passada de olhos” porque esse aspecto se manifesta claramente ao nível do desenho – notadamente, nos desenhos que assinalam a abrangência dos projetos de arquitetura e urbanismo que compunham um e outro programas. De fato, enquanto os desenhos do Rio Cidade são por regra lineares e axiais (evidenciando que as áreas de intervenção do projeto são tratadas como segmentos de reta que se conectam às vias arteriais da cidade) os desenhos do Favela Bairro têm sempre a forma de poligonais fechadas – poligonais que circunscrevem, delimitam e isolam o território da favela do tecido urbano à sua volta.

Esse aspecto de cesura e enclausuramento é tão forte que a linha de contorno da área de intervenção não é interrompida, nesses desenhos, nem mesmo quando cruza ou tangencia as principais vias de acesso à favela. O que isso sugere é mais do que uma simples distinção entre o que está e o que não está incluído no projeto: de algum modo, explicita-se que a linha que distingue a área de projeto e a área à sua volta separa na verdade dois mundos essencialmente diferentes: do lado de dentro, a favela; do lado de fora, tudo aquilo que não é favela – no caso, a cidade.

Desenho indicando área de intervenção do Favela-Bairro da favela Matriz/Queto, 2003
Imagem divulgação [Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro]

No caso do Rio Cidade, contudo, a realidade é bem outra. Isso fica evidente não apenas na tipologia predominantemente linear de seus projetos, mas também na preocupação que se teve em estender as áreas de projeto até seu entorno imediato – notadamente, à primeira quadra das ruas transversais aos grandes eixos de intervenção. O objetivo desse transbordamento me parece claro: trata-se de estabelecer uma zona de transição entre o objeto principal da intervenção (os grandes eixos urbanos) e o que está à sua volta, quer dizer a cidade. Não por acaso, esse aspecto do Programa é realçado pelos desenhos artísticos que ilustram uma das principais peças de divulgação da primeira edição do Programa, o livro Rio Cidade. O Urbanismo de Volta às Ruas, publicado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em 1996: claramente, o hachurado que assinala as áreas afetadas pela intervenção vai perdendo intensidade à medida em que se afasta dos eixos centrais, evidenciando que, diferentemente do Favela-Bairro, aqui não se trata de um corte abrupto entre bairro e cidade, mas ao contrário de um bairro que se dilui na cidade.

Desenho Ilustrativo do Projeto Rio Cidade Tijuca, 1996
Elaboração César S. Monteiro [O urbanismo de volta às ruas, Mauad]

Tais discrepâncias (e poderia citar mais um punhado delas – por exemplo, o modo como são tratadas as “vias de acesso” à favela (7), e mesmo o lugar que os carros – grandes protagonistas do Rio Cidade – ocupam, ou melhor, não ocupam no Favela Bairro) se tornam ainda mais significativas quando se tem em mente que ambos os programas foram concebidos (embora só no caso do Rio Cidade este dado seja explicitado na apresentação do Programa) tendo como matriz conceitual a ideia, então emergente, de uma cidade feita de “múltiplas” e "novas centralidades" (8). O débito que o Rio Cidade tem para com essa concepção emergente de cidade é, uma vez mais, explicitado em Rio Cidade. O Urbanismo de Volta às Ruas. Tratando do que chama de “uma especificidade histórico-geográfica da malha urbana carioca” (a saber, o fato de a cidade ter-se expandido “por entre as montanhas e ao longo dos vales, conformando corredores viários, eixos urbanos dominantes [...] em torno dos quais nasceram e consolidaram-se vários bairros”), o texto assinala:

“Com o tempo essas artérias se transformaram em polos de atração descentralizados, subcentros de uma metrópole polinuclearizada, que o Programa Rio-Cidade optou por reforçar, em contraposição ao modelo dicotômico de cidade: centro x periferia” (9).

E no entanto, o “modelo dicotômico” (no caso, o que opõe bairro e favela) é o pressuposto básico (se se quiser, o móvel ideológico) sem o qual o Programa simplesmente não fica de pé.

Dizer que, no caso do Favela Bairro, o emprego de um “modelo dicotômico” estava a serviço de uma agenda transformadora; que a política de requalificação urbana posta em prática pelas gestões Maia e Conde tomou a oposição bairro x favela com o único propósito de vê-la posteriormente superada (por força da eficácia do projeto de requalificação urbana) me parece problemático: ao projetar para o futuro a transformação da favela em bairro, o Favela Bairro querendo ou não reafirmou a separação atual (na dupla acepção da palavra) entre favela e bairro (10).

Mas acaso poderia ser diferente?, pode-se objetar – não seria afinal uma atitude irrealista simplesmente cancelar, ainda que apenas retoricamente, a dicotomia favela x bairro?

Uma vez mais, valho-me dos textos do Rio Cidade para responder a essa objeção. Porque no caso do Rio Cidade o cancelamento discursivo da dicotomia bairro x cidade ocorreu sem maiores constrangimentos. Prova disso é a confusão (uma vez mais, em Rio Cidade: Urbanismo de Volta às Ruas) das noções de “bairro” e “cidade” – como ocorre, por exemplo quando, no trecho em que se destaca os benefícios do Programa, afirma-se:

“Assim, elencaram-se, preliminarmente gêneros de intervenções que melhorassem significativamente a qualidade de vida urbana, proporcionando a pedestres, idosos, crianças, gestantes e deficientes o desfrute das ruas, restituídas de seu caráter público; ações que tornassem a cidade um lugar mais adequado ao pleno exercício da cidadania e que, ademais, valorizassem o comércio estabelecido, motivassem a participação interessada dos beneficiados e embelezassem a cidade” (11).

Como se percebe, em contraste com o que ocorre no Favela Bairro, no caso do Rio Cidade não há qualquer dificuldade em considerar que bairro e cidade são uma coisa só: as ações em questão, implementadas (fisicamente) no âmbito do bairro, tornaram a “cidade” (e não apenas o bairro) “um lugar mais adequado ao pleno exercício da cidadania”. No limite, portanto, as ações em questão fizeram mais do que promover a integração entre bairro e cidade; trabalharam para consolidar (também discursivamente) uma ideia de cidade na qual a distinção entre noções de “cidade” e “bairro” se dissolve.

Ora, mas se a dicotomia entre bairro e cidade é cancelada, cabe perguntar: o que ocorre então com a dicotomia, mantida de pé no discurso do Favela Bairro, favela x bairro? A resposta me parece óbvia: em última instância, ela se transforma na dicotomia favela vs. Cidade.

Uma vez mais, o fato de os dois programas terem sido concebidos e implantados simultaneamente é um dado crucial, que aponta para uma evidência no mínimo incômoda: claramente, o que valia para o Rio Cidade não valia para o Favela-Bairro. Mais: que no exato momento em que os bairros eram reconceitualizados e, assim, reposicionados no contexto dessa nova ideia de cidade (de uma cidade feita de bairros que se interconectam numa rede orgânica e rizomática de múltiplas centralidades), a favela era mantida refém de numa concepção de bairro ultrapassada e, nesse contexto, literalmente “de exceção”: o bairro (se se quiser, a sub-categoria bairro-favela) como espaço/território segregado e isolado da cidade.

Tamanha discrepância não era, claro, acidental. Na verdade, ela refletia uma distinção assumida e tornada pública pelo Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro – PECRJ – o extenso trabalho desenvolvido durante a primeira gestão César Maia e cujo relatório final foi apresentado em setembro de 1995. De fato, conforme estabelecia o PECRJ, os programas Rio Cidade e Favela-Bairro pertenciam a Estratégias distintas (implicando que não deveriam nem atender aos mesmos Objetivos nem dar lugar às mesmas Ações): enquanto o Rio Cidade pertencia à Estratégia 2/Rio Acolhedor (respondendo ao Objetivo de “Qualificar e fortalecer a vida dos bairros e melhorar a qualidade dos espaços púbicos”, e devendo originar Ações no sentido de “Melhorar a qualidade do espaço urbano”), o Favela-Bairro estava alocado na Estratégia 4/Rio Integrado (respondendo ao Objetivo de “Normalização urbanística” e devendo dar lugar a Ações para “Normalizar a situação urbanística”). A disparidade é de fato expressiva: se para os bairros prevalece o discurso da “qualidade”, à favela se aplica o discurso da “normalização” (12).

Não surpreende nesse sentido que os programas tenham recebido os nomes que acabaram recebendo. Porque tendo eles sido concebidos simultaneamente (13), e com o propósito declarado de dar conta dos “dois lados do mesmo Rio”, seria de esperar que os nomes a eles atribuídos fossem, de algum modo, complementares. Neste caso, ou bem o Rio Cidade se chamava Bairro Cidade, ou bem o Favela-Bairro se chamava Favela-Cidade.

O que ocorreu foi algo bem diverso e, uma vez mais, eloquente: o programa destinado a requalificar os bairros tem a cidade duas vezes em seu nome (“Rio” e “Cidade”); o programa destinado à requalificação do outro lado do mesmo Rio – a favela – não tem cidade alguma em seu nome. E o que seria isso senão um ato de violência?

Estou indo longe demais ao tratar nesses termos um programa que se consagrou, fora do Brasil inclusive (14), como modelo contemporâneo de intervenção em favelas? Acho que não. Acho, ao contrário, que nos acostumamos (nós, arquitetos e urbanistas, e não apenas nós) a olhar para o Favela-Bairro com uma simpatia significativamente maior do que olhamos para a favela ela mesma. E uma das consequências disso é a dificuldade que temos de reconhecer como, em que pese a vontade de “requalificar” a favela (ou justamente por causa dessa vontade), e mesmo a evidência de que o Programa trouxe, sim, benefícios para seus moradores, o Favela Bairro manteve a favela na condição em que sempre esteve – qual seja, a de um Outro que não nos inclui (nós, os não-“favelados”) e que podia, portanto, ser objeto de ações que não nos implicavam.

Não estou dizendo, obviamente, que entre o discurso da “erradicação” e o discurso da “integração” (sem o qual o Favela Bairro jamais existiria) não há diferenças. Estou apenas chamando a atenção para o fato de que, se mudança houve, ela esteve longe de constituir, como pode-se supor, uma mudança de paradigma no trato com a favela; que, de toda evidência, essa mudança não alterou o pressuposto ou motivação estrutural (“estrutural” em sentido análogo ao de “racismo estrutural”) do Favela-Bairro – a saber, a ideologia da segregação; que por isso meso, querendo ou não, o Programa se inscreve no histórico de violências perpetradas pelo aparato estatal contra os moradores da favela.

Do mesmo modo, não quero sugerir que não existem diferenças essenciais entre a violência discursiva (15) e as inúmeras formas de violência física perpetradas contra a população da favela – com destaque para as rotineiras e hoje naturalizadas operações policiais. O que não se pode, contudo, é ignorar os vínculos existentes entre essas duas formas de violência – o fato de que, por regra, a violência física (e mais ainda a violência física sistemática) ocorre porque é precedida e sancionada pela violência discursiva; que se o corpo dx moradorx da favela é sistematicamente vilipendiado, agredido, torturado, violado, aniquilado, é porque já havia sido lançado em um espaço discursivo que, de modo explícito ou sub-reptício, constituiu esse corpo como passível de vilipêndio, agressão, tortura, violação, aniquilamento.

Que argumentos como esse permaneçam predominantemente ausentes da fortuna crítica do Favela Bairro apenas confirma como a disciplina da arquitetura (aí incluídas a prática, a crítica, a historiografia e o ensino de arquitetura e do urbanismo) logrou permanecer imune à voga autorreflexiva e autocrítica (e a partir dela, ao verdadeiro giro epistemológico e ético) que tomou de assalto inúmeros campos disciplinares a partir do final dos anos 1960.

Tome-se por exemplo a etnografia: se há algo que marca a reflexão crítica e o debate contemporâneos sobre o que James Clifford chamou de “a experiência etnográfica”, é de fato a consciência de que a pesquisa etnográfica “clássica” jamais se restringiu ao âmbito (supostamente neutro) da produção de conhecimento; que ela não pode ser dissociada de uma rede de “situações coloniais” caracterizada, dentre outras coisas, por uma gritante assimetria entre aqueles que se constituíam como sujeitos (os exploradores e os cientistas) e aqueles que, à sua própria revelia, eram constituídos como objeto (de exploração colonial e de pesquisa científica); que, em suma, aquilo que se apresentava – e legitimava – publicamente como adstrito exclusivamente ao domínio da ciência era parte integrante da máquina colonial de exploração e produção de violência (16). Não por acaso, um dos conceitos mais discutidos da operação etnográfica é a noção de “observação participante” – vale dizer, a ideia de que, em contraste com o compromisso positivista com a adoção de uma observação objetiva e neutra de seu objeto de estudo, ao etnógrafo contemporâneo só resta a opção de envolver-se com os grupos e os indivíduos estudados (17).

Significativamente, coube a dois moradores de favelas cariocas levar a discussão sobre o papel da participação em pesquisas sobre a favela a um patamar até então inalcançado no Brasil. De fato, em sua “convocação intelectual e militante para descolonizarmos o conhecimento” (o incômodo e desafiador texto “Para que e para quem servem as pesquisas acadêmicas sobre as favelas? – Uma nova epistemologia é possível”) Fransérgio Goulart e Rodrigo Calvet argumentam que a – necessária, urgente – descolonização do conhecimento não virá enquanto não entrar em vigor o princípio da “representação acadêmica” (18).

Esta não é a ocasião para esmiuçar ou problematizar o texto de Goulart e Calvet. O que cabe enfatizar é como o conceito de “representação” se coloca aqui como alternativa (epistemológica e também política) radical à noção de “participação” dos moradores da favela em pesquisas acadêmicas. Pois em lugar de uma participação restrita e controlada em situações e instâncias definidas por aqueles que conduzem e controlam a pesquisa, a representação pressupõe que as pessoas mobilizadas tenham controle sobre os inúmeros processos constitutivos da pesquisa. Donde a ideia de que a substituição da participação pela representação se coloca como pré-requisito para o advento de uma condição epistemológica/política decolonial (19).

Ora, embora trate especificamente da questão das pesquisas acadêmicas sobre favelas, o texto de Goulart e Calvet afeta diretamente a discussão sobre o Favela-Bairro. Afinal, como é igualmente notório, a legitimidade do Programa sempre se assentou em um único ponto: a efetiva participação das populações afetadas nas diversas instâncias do projeto – mais elaboradamente, e para citar uma de suas principais peças de divulgação, a “participação articulada e contínua dos moradores, das organizações comunitárias e das instituições que atuam nas áreas beneficiadas” (20).

Ora, não descuidando das distinções que separam, de um lado, as pesquisas acadêmicas sobre favela e, de outro, as intervenções arquitetônicas/urbanísticas nesses espaços, cabe perguntar: o que poderia ser a representação (e não mais a participação) “articulada e contínua dos moradores, das organizações comunitárias e das instituições que atuam nas áreas beneficiadas” em um projeto de requalificação urbana de favelas? Seria a adoção dessa noção alternativa a pré-condição para o advento de algo como um projeto arquitetônico/urbanístico decolonial? Que impactos essa nova condição teria sobre as diversas instâncias do projeto arquitetônico, com destaque para o desenho? Que novos arranjos sociais e institucionais ela traria, em especial entre os domínios do fazer institucionalizado e outros tipos de fazer?

E é por parecerem cada vez mais incontornáveis que essas perguntas também ajudam a compreender o significado histórico do Favela-Bairro. O Favela-Bairro pertence a seu tempo. E nesse tempo a ideia de uma intervenção arquitetônica promovida pelo Estado, projetada por arquitetos-urbanistas não-moradores das favelas, e que se limitasse a contar com a “participação” dos moradores das áreas afetadas parecia a muitas pessoas – em especial, a nós, os representantes do status quo da arquitetura e do urbanismo brasileiros – não apenas legítima, mas também extremamente bem-vinda (21).

Esse tempo acabou, e qualquer tentativa de seguir adiante com modelos análogos de intervenção urbanística em favelas não deveria ser aceitável (22). Não mais.

notas

NA – Este texto é o desenvolvimento de um comentário que fiz à fala de Mônica Benício no Primeiro Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da PUC-Rio, realizado em 28/11/2019. Devo a Mônica não apenas a sugestão de alguns dos temas aqui abordados, mas também a inspiração para abordá-los do modo como fiz. A Mônica, meus agradecimentos e meu carinho.

1
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Cidade inteira. A política habitacional da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1999, p. 23.

2
O Programa se estende até 2008, tendo sido substituído pelo Programa Morar Legal, lançado pelo Prefeito Eduardo Paes em julho de 2010. Ver PAES, Eduardo; MAGALHÃES, Sérgio. Morar carioca. Drops, São Paulo, ano 11, n. 038.03, Vitruvius, nov. 2010 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/11.038/3653>.

3
Ver, por exemplo, FRANÇA, Elisabete; BAYEUX, Gloria. Favelas Upgrading: a cidade como integração dos bairros e espaço de habitação. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 027.00, Vitruvius, ago. 2002 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.027/756>.

4
Sobre as transformações dos discursos e das posturas face às favelas ver ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro, FGV, 1998; CAVALLIERI, Fernando. Favela Bairro: integração de áreas informais da cidade. In ABRAMO, Pedro (Org.). A cidade da informalidade. O desafio das cidades Latino-Americanas. Rio de Janeiro, Sette Letras/Faperj, 2003.

5
BURGOS, Marcelo. Favela: uma forma de luta pelo direito à cidade. Mimeo, s/ data.

6
“Texto”, nas palavras de Skinner, “deve ser entendido num sentido bem amplo, pois podem ser pinturas, peças de música, obras de literatura e de filosofia, estilos arquitetônicos etc”. Cf. SKINNER, Quentin. Quentin Skinner. In PALLARES-BURKE, Maria Lucia. As muitas faces da história. Nove entrevistas. São Paulo, Unesp, 2000, p. 331.

7
Creio que a noção de “via de acesso”, conforme utilizada nos editais do programa, alude não a um segmento ou trecho conectado à malha viária da cidade, senão à porta de entrada por onde aquilo que vem de fora (a começar pelos “serviços básicos”) é eventualmente introduzido na favela.

8
Esta é uma das ideias centrais do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Rio sempre Rio. Relatório Final do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1995.

9
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Rio Cidade. O urbanismo de volta às ruas. Rio de Janeiro, Mauad, 1996, p. 25. Grifos do autor.

10
Nesse sentido, o Programa estaria apenas reproduzindo aquilo que, nas palavras de Marcelo Burgos, constitui “uma certa forma de lidar com a favela, que naturaliza a antinomia cidade versus favela”: “O poder público, os partidos políticos, os agentes econômicos, as escolas, as igrejas, as Ongs e as instituições filantrópicas, a mídia, a polícia e os intelectuais em geral, praticam esta forma de lidar com a favela”. Donde a conclusão de que “O processo de urbanização que beneficiou parte delas não foi capaz de mitigar essa antinomia. Ao contrário, as evidências indicam o agravamento da segregação”. BURGOS, Marcelo. Favela: uma forma de luta pelo direito à cidade (op. cit.), p. 4.

11
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Rio Cidade. O urbanismo de volta às ruas (op. cit.), p. 25. Grifos do autor.

12
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Rio sempre Rio. Relatório Final do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro (op. cit.), p. 42-43; 66-67.

13
Ressalte-se que os programas foram desenvolvidos por duas secretarias diferentes – o Rio Cidade pela Secretaria de Urbanismo, o Favela Bairro pela Secretaria de Habitação.

14
Com destaque ao Sixth Veronica Rudge Green Prize, atribuído, em 2000, a Jorge Mario Jauregui. Ver SEGRE, Roberto. A experiência do favela-bairro: modelo para o habitat da pobreza no século XXI. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 038.01, Vitruvius, fev. 2005 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.038/3168>.

15
BUTLER, Judith. Excitable Speech. A Politics of the Performative. Nova York/Londres, Routledge, 1997.

16
Ver CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. In GONÇALVES, José Reginald S. (Org.). Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1998; DWYER, Kevin. On the dialogic of fieldwork. Dialectical Anthropology, v. 2, n. 2, 1997, p. 143-151.

17
Uma alternativa é a noção de “descrição densa”, proposta por Clifford Geertz. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.

18
GOULART, Fransérgio; CALVET, Rodrigo. Para que e para quem servem as pesquisas acadêmicas sobre as favelas? Uma nova epistemologia é possível. Canal Ibase, 2017, <https://bit.ly/30fqWAQ>.

19
Sobre o giro decolonial, ver CASTRO-GÓMEZ, Santiago, GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Colombia, Siglo del Hombre Editores, 2007.

20
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Cidade inteira. A política habitacional da cidade do Rio de Janeiro (op. cit.), p. 14.

21
Marcelo Burgos vê esse contexto como o capítulo final do modelo de “incorporação tutelada” das classes populares – modelo que tem na lida com a favela uma de suas instâncias mais expressivas. Nessa ótica, a resposta dos moradores da favela ao modelo de intervenção proposto pelo Favela-Bairro integraria o acordo tácito estabelecido entre burguesia e moradores das favelas. Nas palavras de Burgos, “o movimento de resistência dos moradores das favelas, que apesar de ter animado todo o processo de organização coletiva, encontrou sua forma mais eficiente em uma acomodação até certo ponto confortável para as partes, na qual foi possível trocar a permanência nas favelas – muitas delas em áreas valorizadas da cidade – pela submissão parcial ou completa ao controle social e politico exercido a partir do Estado, e operacionalizado através do uso permanente do aparato policial, e de engrenagens de captura de sua participação política”. O esgotamento do Favela Bairro, aponta Burgos, se daria no momento em que os termos desse acordo se rompem, justamente quando o discurso da incorporação por meio (também) da requalificação urbana é substituído e obliterado pelo mito da “cultura da violência” (sobre o qual se assenta o programa que, na prática, suplanta e determina o esgotamento do Favela Bairro – as UPPs). Como afirma Burgos, “Da perspectiva do mundo popular, esse deslocamento parece indicar que a luta pela cidade não poderá mais contar com a forma favela”. BURGOS, Marcelo. Favela: uma forma de luta pelo direito à cidade (op. cit.), p. 7-8.

22
Até onde percebo, o programa de urbanização da favela da Rocinha recentemente lançado pelo Governador Wilson Witzel e eloquentemente chamado “Comunidade Cidade”, segue conceitualmente atrelado ao modelo do Favela-Bairro. V. Comunidade Cidade, programa de urbanização para a favela da Rocinha, é lançado pelo Governo do Estado do Rio, UIA 2021 Rio, 31 jan. 2020, <https://bit.ly/3fGElIG>. Sobre modos atuais de intervenção em favelas, ver FERREIRA, Lara; OLIVEIRA, Paula; IACOVINI, Victor (Org.). Dimensões do intervir em favelas. Desafios e Perspectivas. São Paulo, Peabiru TCA/Coletivo LabLaje, 2019. Agradeço a Bruna Nélio pela indicação desta importante obra.

sobre o autor

Otavio Leonidio é arquiteto (Universidade Santa Úrsula, 1994), doutor em História (PUC Rio, 2005), professor associado do curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio. Autor de Carradas de razões: Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (PUC-Rio/Loyola, 2008) e Espaço de risco (Romano Guerra/Nhamerica, 2018). Foi pesquisador visitante no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, Califórnia.

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