Inúmeras foram as transformações ocorridas nos últimos anos do século 19 e primeiros do século 20 na região paulista, na qual se insere Espírito Santo do Pinhal (1), uma das cidades da expansão cafeeira do estado de São Paulo, localizada na Serra da Mantiqueira, distante 193 km da capital do estado, totalmente receptiva às novas influências nas formas de habitar e construir. É o período do desenvolvimento da cultura do café e da instalação de uma extensa malha ferroviária, que facilitou a comunicação entre as zonas cafeicultoras e o porto de Santos, mas também a vinda dos imigrantes e das novidades da Europa. Em Pinhal, a intensificação da produção de café, ocorre a partir de 1860 e da instalação da ferrovia, em 1889. Assim, o transporte ferroviário e a nova situação econômica favoreceram a consolidação definitiva das novas ideias, e sem dúvida o ecletismo esteve associado ao binômio café-ferrovia. As tendências ecléticas, ainda que alheias ao meio, foram prontamente aceitas pela sociedade, como expressão de refinamento cultural e modernidade. O mesmo trem que possibilitou o escoamento da produção de café trouxe os materiais de construção importados, produzidos em massa e indispensáveis para a difusão do novo estilo em voga. Além disso, trouxe também o imigrante italiano, que não necessariamente se fixou nas fazendas de café, muitas vezes preferindo a cidade. Como ocorreu em São Carlos SP, “eles se transformaram nos executores do ecletismo, a mão-de-obra disponível e necessária, para a implantação das novas técnicas já conhecidas por eles” (2).
O desenvolvimento proporcionado pelo dinheiro do café mudou as características de Pinhal, que passava de acanhada à possuidora de “progresso material”, segundo palavras do jornal A República, de 15 de março de 1903, e, portanto, marcada pelo ecletismo, o novo estilo arquitetônico representativo desse novo contexto econômico e cultural. Segundo Nestor Goulart Reis Filho (3), será a camada formada por militares, médicos e engenheiros, cujas profissões os aproximam das ciências positivas e que propiciarão a propagação do movimento positivista, que irá
“Construir e utilizar uma arquitetura mais atualizada e tecnicamente elaborada, em sintonia com os padrões europeus daquela época, arquitetura tipicamente urbana, produzida e utilizada sem escravos, não como exceção palaciana, mas como resposta universal para as necessidades de todos os tipos e, teoricamente, de todas as regiões nacionais, onde o ecletismo, manipulado pelos profissionais renovadores de seu tempo, apresentou-se durante a segunda metade do século 19 – e mesmo durante o início deste – como um veículo estético eficiente para a assimilação de inovações tecnológicas” (4).
Em Pinhal, a arquitetura eclética foi introduzida pelo fazendeiro de café, que frequentemente visitava São Paulo e Rio de Janeiro, e que, conhecendo também as cidades europeias, buscou inspiração na produção arquitetônica destes lugares para executar sua própria residência urbana, que deveria representar sua posição social e econômica. A consolidação dessa imagem do fazendeiro de café passou necessariamente pela remodelação de sua residência urbana. Dessa forma, esse ecletismo produzido em outros lugares e especialmente na capital da então província de São Paulo serviu de modelo para novas apropriações e reinterpretações locais. Nesse sentido concordamos com Vladimir Benincasa, quando afirma que
“O Ecletismo proporcionou a realização de casas nos mais variados estilos e formas. Apesar de ter seu repertório formal muito criticado, por ser uma releitura livre e, às vezes, superficial, de estilos consagrados do passado, foi um período muito criativo e inovador da arquitetura mundial, principalmente no tocante às inovações tecnológicas, e, mesmo tratando-se do primeiro estilo internacional, isto é, que proliferou e teve aceitação em quase todas as regiões do mundo, na época, permitiu mais contribuições e adaptações regionais do que a linguagem do modernismo, cujo repertório formal, técnicas construtivas e materiais de construção eram mais definidos” (5).
Os casarões urbanos financiados por essa riqueza do café foram construídos em Pinhal nas últimas décadas do século 19, principalmente depois da instalação da ferrovia na cidade através da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, e nas três primeiras décadas do século 20, e constituem ainda um significativo acervo arquitetônico na cidade. São belas residências construídas para fazendeiros de café e profissionais liberais enriquecidos, como médicos e advogados, em sua maioria no período compreendido entre 1880 – o início do progresso da cafeicultura na cidade – e 1930, que, em decorrência da quebra da bolsa em Nova Iorque, gerou um processo de estagnação na economia local e, consequentemente, na produção arquitetônica.
No presente texto será apresentado o Palacete Norma Barsotini (6), edificação do início do século 20, representante do estilo neocolonial, com referências ao estilo Missões e ao estilo eclético. Uma vez que não há registros nem documentos, como plantas e mapas, para o estudo e análise desse casarão foram realizados levantamentos ‘in loco’: levantamento métrico, que resultou na elaboração da planta do edifício em seu estado atual, e levantamento fotográfico, que buscou registrar as fachadas e o interior da edificação, além de detalhes construtivos e ornamentais, e de mobiliário da época da construção.
A cidade e sua arquitetura
Pinhal, cidade paulista que teve sua formação na mesma época do surto cafeeiro e seu desenvolvimento por ele patrocinado, originou-se a partir de uma doação de terras que estava relacionada a uma disputa entre fazendeiros pela sua posse. Sua origem foi singular, uma vez que a cidade não surgiu a partir de povoações preexistentes nem teve seu sítio escolhido com o intuito de se formar uma aglomeração. Sua ocupação iniciou-se na primeira metade do século 19, e o local onde hoje se encontra o centro, iniciado em 1849, foi escolhido por ter sido o palco de confronto relevante envolvendo os donos das fazendas (7). Trata-se de um lugar alto, um espigão circundado por córregos e ribeirões na parte mais baixa, fazendo parte de um amplo entorno de topografia montanhosa. O núcleo inicial foi organizado em torno da praça da atual Igreja Matriz (Praça da Independência), então capela, de onde partem algumas ruas em tabuleiro de xadrez até o limite das divisas originais do patrimônio (8).
A forma de ocupação do solo em Pinhal foi determinada pelas classes dominantes, sendo as áreas preferidas da elite cafeeira, e posteriormente dos imigrantes bem sucedidos e relacionados com os fazendeiros, as quadras da parte alta da cidade, em torno da antiga Praça da Matriz – hoje Praça da Independência. A tendência do desenvolvimento da cidade em torno da capela (e depois Igreja Matriz) enquadra-se na afirmação de Murillo Marx de que “uma Praça de Matriz se impôs pelas povoações do interior com destaque indiscutível” (9). Posteriormente, no final do século 19, outros núcleos de atração foram se estabelecendo, como o edifício da Casa de Câmara e Cadeia e a Estação Ferroviária, possibilitando o surgimento de eixos entre esses núcleos e a referida praça. A Estação Ferroviária, surgindo como um novo núcleo de atração do tecido urbano possibilitou a existência, no eixo de ligação, de “quadras regulares (que) descem suavemente exibindo casarões que anunciam a república” (10).
No Brasil do período colonial, especialmente do século 18,
“Aproveitando antigas tradições urbanísticas de Portugal, nossas vilas e cidades apresentavam ruas de aspecto uniforme, com residências construídas sobre o alinhamento das vias públicas e paredes laterais sobre os limites dos terrenos. Não havia meio-termo; as casas eram urbanas ou rurais, não se concebendo casas urbanas recuadas e com jardins” (11).
Da mesma forma, os anos do século 19 anteriores à Independência não apresentam grandes mudanças dos esquemas urbanísticos e arquitetônicos com relação ao século 18, e Reis Filho afirma que o século 19 “conservou praticamente intato, até a sua metade, o velho esquema de relações entre a habitação e o lote urbano que herdara do século 18” (12). A partir da Independência, a feição urbana passa por um processo de transformação, em virtude das mudanças dos diferentes fatores de influência, econômicos, sociais, políticos e tecnológicos, que vão exigir novas relações sócio espaciais. A arquitetura também sofre alterações, “como as platibandas amputando os beirais dos telhados, a geometrização e a simetria dos cheios e vazios das fachadas, a introdução de outros materiais e detalhes construtivos” (13). Reis Filho afirma que “a essas transformações no campo da arquitetura correspondiam modificações significativas nos centros urbanos” (14), melhor percebidas nas cidades maiores.
A arquitetura residencial urbana de Pinhal, que inicialmente apresentava um aspecto externo limpo de ornamentações, caracterizado por uma certa monotonia estética, passou, a partir da década de 1880, a ostentar cada vez mais elementos decorativos vinculados à linguagem eclética. Essas manifestações ecléticas em Pinhal foram, de maneira geral, de forma tardia e superficial, no sentido de estarem livres de maiores compromissos com considerações de ordem filosófica e mesmo formal. Desse modo, as diversas tendências estilísticas ocorreram de maneira mais livre, bastando, muitas vezes, a justaposição, às antigas estruturas construtivas, de uma ‘decoração’ classicizante, ‘art-nouveau’ ou até mesmo neocolonial.
Novos programas e técnicas construtivas foram assimilados pela sociedade local, produzindo uma diversificação do antigo partido da moradia urbana, onde os agenciamentos internos foram, progressivamente, tendendo a uma maior liberdade de organização espacial. Podemos perceber, nos casarões com implantação tradicional, no alinhamento do lote, a assimilação do ecletismo, evidenciadas nos detalhes decorativos de argamassa, nas molduras decorativas no entorno de janelas e portas, dos tímpanos triangulares ou cimbros sobre as aberturas. Nas duas últimas décadas do século 19, notamos a predominância das casas térreas de porão alto, implantadas no alinhamento e sem recuo ou com recuo mínimo, e apenas um sobrado. Mas ainda na última década do século 19 apareceu a implantação com recuos laterais, mantendo-se, portanto, simultaneamente à implantação tradicional, que ainda persistiu até a primeira década do século 20.
Os casarões implantados inteiramente isolados no lote, chamados de palacetes, surgiram em Pinhal, em maior número, na década de 1920. Este esquema de implantação, com a edificação afastada em relação a todos os limites, foi, de acordo com Reis Filho uma grande transformação, e após 1918, “em São Paulo, surgiam como exemplos as edificações em bairros residenciais em torno da Avenida Paulista, sobretudo na direção de Santo Amaro, na Aclimação e Perdizes” (15). Carlos Lemos afirma “que essa solução é própria do tempo em que a indústria e o comércio começaram a contar no panorama econômico”, e que
“Essas casas [...] possuíam certas características em seus partidos e nesse aspecto morfológico apresentavam seus critérios exclusivos de composição. Já que eram edifícios isolados, seus telhados poderiam participar com mais desenvoltura da composição arquitetônica, em vez de ficarem escondidos e acomodados atrás de altas platibandas” (16).
Geralmente, o maior afastamento lateral correspondia à passagem de veículos, e era evidenciada pela respectiva coberta, saliente no corpo da casa. Aí se localizava a entrada lateral da residência, de acesso ao hall. Os antigos jardins laterais iam desaparecendo, sendo que
“Só mesmo nos casos excepcionais, de lotes com dimensões exageradas e por exigência da própria solução arquitetônica, é que áreas laterais eram ajardinadas sempre como continuação dos jardins da frente, mas interrompendo-se nas proximidades dos fundos, áreas que confinavam com os locais de serviços e intimidade. [...] Os espaços adequados para as coisas comprometidas com o mundo rural, com a intimidade e resquícios da escravidão, seriam não dos lados, mas nos fundos” (17).
Os casarões assobradados desse período em Pinhal já não se localizavam mais nos alinhamentos dos lotes. Dessa forma, estavam resguardados do exterior, preservando sua intimidade. Nesse sentido, puderam dispensar os antigos porões altos e se aproximar dos jardins. Entretanto, com uma topografia montanhosa, a implantação continuou seguindo o partido mineiro, com sobrados à meia-encosta mantendo porões para vencer os desníveis. Ainda assim também encontramos as edículas, garagens e depósitos. De acordo com Reis Filho, “transferiam-se para o fundo das casas aquelas dependências, uma vez que, longe do alinhamento e das vistas dos passantes, as residências reduziam seus embasamentos, conservando apenas porões discretos, com galerias para arejamento” (18).
O Palacete Norma Barsotini se encaixa no contexto dos casarões edificados na segunda década do século 20, na área central da cidade, próximo à Praça da Independência. De uso residencial, é um sobrado elevado do solo e sem porão, implantado totalmente isolado no lote e cercado por jardins, no estilo neocolonial, com referências ao estilo Missões e ao estilo eclético.
O palacete
Localizado na esquina da Rua Jorge Tibiriçá, com a Rua Vicente Gonçalves, a duas quadras da Igreja Matriz, o palacete, edificado em 1920 no estilo Neocolonial com influência do estilo Missões, está implantado em um grande lote de esquina, cuja topografia apresenta leve desnível. O primeiro proprietário foi o fazendeiro e advogado Capitão Eduardo Leite Vieira, citado na Revista Polianteia, de 1949 (19), como sendo de sua propriedade. A atual proprietária, Norma Barsotini, viúva do neto do Capitão, o utiliza como residência, mesmo uso que apresentava originalmente, e aí mantém móveis antigos, além de cuidar para que a edificação não sofra alterações que a descaracterize.
Essa edificação foi o local escolhido para hospedar, em 1931, o pinhalense Cardeal Leme (20), segundo cardeal do país e da América Latina e um dos responsáveis pela campanha pelo monumento do Cristo Redentor no Rio de Janeiro (21).
O palacete Norma Barsotini foi edificado pelos construtores Giovanni Cesare Turbiani e Guerino Costa, imigrantes italianos que trabalharam em Pinhal até 1930 (22). Apresenta telhados movimentados com beirais e acabamento em estuque; sacadas com peitoris de acabamento em arcos sobrepostos, com os eixos desencontrados; vitral na escada; frontões barrocos salientes nos telhados; janelas com muxarabis; elementos de composição do estilo neocolonial. Além disso, também tem elementos ecléticos, como os ornamentos das fachadas e as colunas do patamar de entrada e das sacadas, de capitel com referência à ordem jônica.
É um sobrado de uso residencial, elevado do solo e sem porão, implantado totalmente isolado no lote e cercado por jardins, com base em alvenaria. O terreno tem declive acentuado, e, além do palacete, há no lote uma edícula e uma garagem. O fechamento do lote é feito com gradis ornamentados fixos sobre uma base de alvenaria, tendo um portão de ferro ornamentado localizado na esquina, para acesso de pedestres, que dá acesso a uma escada de dez degraus que leva ao alpendre de acesso principal, e também outro acesso, para veículos, pela Rua Jorge Tibiriçá. O telhado é em águas, bastante movimentado e com recortes e frontões barrocos.
A fachada voltada para a Rua Vicente Gonçalves tem um eixo central marcado por um frontão saliente no telhado, e tem em cada lado alpendres no térreo e sacadas no pavimento superior. A fachada voltada para a Rua Jorge Tibiriçá acontece da mesma forma, com a parte central com janelas e encimada por frontão, e com alpendres e sacadas em cada lado. As janelas dos dormitórios não têm venezianas, e sim muxarabis, indicando influência moura, provavelmente decorrente de raízes ibéricas, dentro do estilo Missões.
Não obstante já apresentar referências neocoloniais e influência do estilo Missões externamente, o palacete se manteve interiormente fiel às manifestações ecléticas, com a permanência das pinturas parietais e da ornamentação nos tetos. No interior da área social, nas salas de estar, de música e de jantar, há rica ornamentação, sendo as paredes das salas de estar e de música inteiramente pintadas, com motivos florais. O teto da sala de jantar apresenta réguas de madeira, ornamentadas com pequenas volutas, em todo o perímetro, e no centro há um grande lustre ornamentado em madeira. Na sala de música o teto é igualmente decorado, com um lustre central em cristal.
Com relação aos aspectos externos da arquitetura realizada dentro do novo esquema de implantação, encontramos em Carlos Lemos esclarecedora descrição:
“A tônica desses palacetes isolados eram as coberturas movimentadas, com seus beirais bastante recortados e nessa hora recorreu-se mesmo ao ecletismo desenfreado, com o abandono do obrigatório neoclássico, para serem escolhidos os mais variados estilos ou combinações de modernismos que permitissem com mais facilidade a sempre almejada personalização do imóvel rico.
Essas já são casas de edículas obrigatórias e de jardins bem cuidados. Casas também de porão e quase sempre, de alpendres e varandas acessíveis por meia dúzia de degraus. Varandas elevadas, revestidas de finos ladrilhos hidráulicos importados da Europa e sustentadas por abobadilhas compostas de arcos abatidos de tijolos ancorados, em suas nascenças, em trilhos de ferro. Aliás, essa técnica também era empregada na confecção de pisos dos banheiros elevados, que os ricos exigiam junto aos dormitórios, e no revestimento das cozinhas em cima dos porões” (23).
Segundo o autor, nessas edificações os porões eram muitas vezes habitáveis, abrigando os quartos de empregados. Com relação às soluções técnicas, estas eram mais ou menos semelhantes ao período anterior, sendo que a alvenaria estrutural de tijolos forçava a repetição das plantas nos dois pavimentos. Os pisos, em madeira, exigiam a existência de porões no pavimento térreo e de forros de gesso ou madeira nos dois andares, e os telhados amplos, quase sempre com beirais, podiam lançar as águas nos jardins, ou ainda mostrar o sistema de condutores e calhas em balanço.
Neste momento acontecia a difusão do neocolonial, e Carlos Lemos assegura que as “obras populares nascidas da reprodução simplificada dos modelos ‘eruditos neocoloniais’, [...] chegaram a compreender a quase totalidade das construções da década de 1920” (24). Estão incluídos nesse grupo as edificações do estilo Missões.
O neocolonial e o estilo Missões possuem fundamentos comuns, pois a arquitetura colonial, tanto no Brasil como no restante da América Latina, traz as mesmas raízes ibéricas. Contudo, há diferenças, especialmente nos detalhes decorativos e no partido, pois no neocolonial, por exemplo, a planta geralmente é retangular, e o telhado é de quatro águas com beiral sustentado por cachorros, enquanto que no estilo Missões, a liberdade da composição é maior, tendo os arquitetos adeptos do estilo trabalhado bastante com jogos de volumes.
Característica marcante é a profusão de elementos decorativos na fachada, onde encontramos colunas retorcidas, telhas em forma de pluma, arcos no hall de entrada, reboco em relevo, azulejos, pinhas e frontões; o estilo Missões, conforme Carlos Lemos, é composto por
“Tijolo à vista, incorporado ao estilo tradicional preenchendo os vãos entre cunhais e pilastras de pedra; a pedra desapareceu e faixas de argamassa caiada passaram a ordenar a modinatura dos frontispícios; beirais estucados com falsos cachorros, depois beirais lisos; jardineiras com gerânios nos peitoris das janelas; vitrais; faixas de cimento moldado cercando as quatro fachadas na altura das vergas das janelas do segundo pavimento. Foram raras as casas térreas desse estilo” (25).
Os telhados foram, em geral, mais movimentados e cobertos por telhas tradicionais ou francesas, sendo muito utilizado o beiral, forrado de estuque ou não. Um complemento indispensável foi o alpendre, aplicado de formas variadas - pequeno ou mais longo, com telhado independente ou não, mas sempre contornado por elementos vazados em meia-lua, e precedido por uma escada de poucos degraus, devido à existência de porão (26). Além disso, bastante recorrente foi o emprego de:
“Pequenos balcões no pavimento superior, todos necessariamente guarnecidos de guarda-corpos executados com “meias-luas” desencontradas, como aqueles semicírculos empregados por Victor Dubugras no Largo da Memória, em 1919; o uso de jardineiras em balanço abaixo dos peitoris para o plantio de gerânios; emprego exclusivo de venezianas nos dormitórios, sendo elas facultativas nas salas de estar diurno; adoção de pequenos ou grandes vitrais” (27).
O estilo Missões foi divulgado no Brasil por conta da crescente difusão do cinema americano, e se propagou rapidamente. Carlos Kessel esclarece que
“Apesar das semelhanças formais justificadas pela proximidade entre as arquiteturas coloniais portuguesa e espanhola, o Estilo Missões representava o último dos frutos da árvore eclética que o movimento neocolonial tinha se proposto a derrubar – e o fato de que boa parte do público não-erudito tomasse um pelo outro constituía-se em fator de irritação para os propugnadores do neocolonial” (28).
O autor ainda afirma que o neocolonial e o estilo Missões são caracterizados pela importância dada ao paisagismo e pelo respeito à topografia, tendo conquistado em São Paulo seu espaço no Jardim América, bairro inspirado no conceito de ‘cidade-jardim’ desenvolvido por Ebenezer Howard no final do século 19 (29).
Conclusão
Em casos como o do palacete apresentado podemos verificar a difusão do ‘neocolonial simplificado’, realizado por profissionais imigrados, cuja formação teve que se ajustar ao novo repertório neocolonial, através dos veículos de comunicação da época, como cinema, rádio, revistas, catálogos, entre outros. No entanto, também percebemos que características do ecletismo ainda se faziam presentes, ainda que com menos força. Constatamos a presença de telhados mais movimentados e beirais forrados de estuque; de faixas ornamentais de argamassa; de jardineiras sob as janelas; de parapeitos de elementos vazados em meia-lua e vitrais ao lado de elementos ecléticos, como colunas com êntase no fuste e capitéis renascentistas.
Apesar das especificidades locais e das interpretações pessoais, a arquitetura do período posterior à Primeira Guerra Mundial em Pinhal, até 1930, procurava seguir as tendências em voga nos grandes centros, da mesma maneira que nos períodos anteriores. As possibilidades financeiras advindas com a cafeicultura continuavam a crescer, e cada vez mais o luxo e a riqueza deveriam ser exibidos. Além disso, os imigrantes enriquecidos com o comércio ou sendo profissionais liberais também mostravam sua nova condição através da arquitetura. Com a crise da cultura cafeeira, com o café perdendo força no município a partir de 1929, seguindo o rastro deixado pela quebra da bolsa de Nova Iorque (EUA), essa situação de riqueza e possibilidades foi rompida. Iniciou-se um processo de estagnação na economia local e, consequentemente, na produção arquitetônica. Os problemas enfrentados na agricultura atingiram os grandes produtores rurais e refletiram no espaço urbano e na arquitetura, e não se pode dizer que houve outro período tão rico na cidade.
Essa arquitetura guarda em si valores culturais, sociais e simbólicos. Estas edificações remanescentes são representativas de distinção social e poder econômico de uma época de importantes e significativas transformações. Nesse sentido, pretendemos aqui apresentar alguns subsídios para uma percepção, por parte do poder público e da sociedade pinhalense, da necessidade de preservação desse patrimônio edificado como documento histórico e arquitetônico de Pinhal. Além disso, almejamos propiciar um maior conhecimento do lugar, das pessoas e das edificações, pois conhecendo a história entenderemos nosso presente. Através do estudo desse palacete visamos mostrar o valor dessa arquitetura, a fim de contribuir para que haja maior conscientização sobre a necessidade de preservação desse patrimônio como documento histórico e arquitetônico.
notas
NE – O presente artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado
FERREIRA, Camila Corsi. Arquitetura residencial urbana: Espírito Santo do Pinhal, 1880-1930. Dissertação de mestrado. São Carlos, EESC USP, 2010.
1
No decorrer do texto iremos nos referenciar à cidade apenas pelo nome Pinhal, por ser esta a forma mais usada por seus moradores.
2
BORTOLUCCI, M. Ângela P. de Castro e Silva. Moradias urbanas construídas em São Carlos no período cafeeiro. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1991, p. 378.
3
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1997, p. 152.
4
Idem, ibidem, p. 178.
5
BENINCASA, Vladimir. Velhas fazendas: arquitetura e cotidiano nos campos de Araraquara 1830-1930. São Carlos/São Paulo, EdUFSCar/Imprensa Oficial do Estado, 2003, p. 277.
6
O palacete está localizado na área envoltória de bens tombados integrantes do Núcleo Histórico Urbano da cidade, definida pela resolução SC-35, de 16.11.1992, processo de tombamento no 26.264/88, arquivo do Condephaat.
7
Sobre a questão da disputa pelas terras que faziam parte do atual centro da cidade de Espírito Santo do Pinhal, ver: MARTINS, Roberto Vasconcellos. Divino Espírito Santo e Nossa Senhora das Dores do Pinhal - História de Espírito Santo do Pinhal. São Paulo, Impressora Latina, 1986; FERREIRA, Camila Corsi. Op. cit.
8
MARTINS, Roberto Vasconcellos. Op. cit.
9
MARX, Murillo. Cidade Brasileira. São Paulo, Melhoramentos/Edusp, 1980, p. 28.
10
Idem, ibidem, p. 39.
11
REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. cit., p. 22.
12
Idem, ibidem, p. 34.
13
MARX, Murillo. Op. cit., p. 98.
14
REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. cit., p. 42.
15
Idem, ibidem, p. 71.
16
LEMOS, Carlos. Alvenaria Burguesa. São Paulo, Nobel, 1989, p. 99.
17
REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. cit., p. 74.
18
Idem, ibidem, p. 78.
19
RIZZONI, Ernesto (Org.). Poliantéia do centenário do Pinhal 1849-1949. Espírito Santo do Pinhal, 1949.
20
Sebastião Leme de Silveira Cintra nasceu em Espírito Santo do Pinhal, hoje Pinhal SP no dia 20 de janeiro de 1882, filho do professor Francisco Furquim Leme e de Ana Cândida da Silveira Cintra. Foi o segundo cardeal brasileiro, e também Arcebispo de Olinda e Recife e Arcebispo do Rio de Janeiro.
21
BARTHOLOMEI, Marly de Alencar Xavier. Espírito Santo do Pinhal – O romance de Pinhal. São Paulo, Bellini Cultural, 2010.
22
Foram os imigrantes italianos que tiveram um papel fundamental no desenvolvimento e constituição da arquitetura local, trazendo as formas de construir do ecletismo europeu. Um construtor teve importância especial nas décadas de 1910 e 1920 na cidade: o imigrante italiano Giovanni Cesare Turbiani (bisavô da autora). Várias foram as edificações construídas por Turbiani, que trabalhava em parceria com outro construtor, Guerino Costa, até o início da década de 1930, quando se transfere para a capital do estado e vai trabalhar no escritório de Anhaia Melo. FERREIRA, Camila Corsi. Op. cit.
23
LEMOS, Carlos. Op. cit., p. 99.
24
Idem, ibidem, p. 75.
25
Idem, ibidem, p. 96.
26
BORTOLUCCI, M. Ângela P. de Castro e Silva. Op. cit., p. 323.
27
LEMOS, Carlos. Op. cit., p. 184.
28
KESSEL, Carlos. Arquitetura neocolonial no Brasil: entre o pastiche e a modernidade. Rio de Janeiro, Jauá, 2008, p. 140.
29
O bairro Jardim América, inspirado no conceito de cidade-jardim desenvolvido por Ebenezer Howard no final do século 19, foi projetado e construído pela Cia. City, na década de 1910, com projeto dos urbanistas ingleses Barry Parker e Raymond Unwin. FERREIRA, Camila Corsi. Estratégias de preservação do Jardim América: teoria e prática em seu processo de tombamento. Monografia de conclusão de disciplina. São Carlos, SAP EESC USP, 2009.
sobre a autora
Camila Corsi Ferreira é arquiteta e urbanista (2003) e mestre (2011) pela EESC USP. Doutora (2015) pelo IAU USP com estágio na Università di Napoli Federico II, Nápoles, Itália (2013-2014) e docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da FAPAC ITPAC. Publicou Luís Saia e as teorias de restauro: São Paulo, 1937-1975 (Annablume, 2017).