Parmênides, e Heráclito, pensadores originários (e originários porque pensam a origem do pensar, conforme Martin Heidegger (1), pré-socráticos, fundam as antípodas do pensamento ocidental. Respectivamente, de um lado, o pensamento essencial, da Verdade (poema doutrinário), totalizante e unitário que se firma pela clareza das oposições (se existe “A”, o não “A” não pode ser, sequer existir, só tem direito de existência se se distinguir afirmativamente como “B”), no anseio pelo todo, e, do outro lado, o pensamento conflitante, da diversidade, pluralidade, que anseia a verdade no múltiplo a partir do reconhecimento da multiplicidade, da contradição, da inclusão da negatividade (“A” pode conviver com não “A” sem este, necessariamente, ser “B”, o não “A” também pode existir como negação de algo) e coexistência de contrários.
Não um ou outro, mas ambos, um pensamento entre eles, intervalar, que parte e provoca interstícios naquilo que se apresenta ou é percebido como coeso e fechado em si, mas sem destruí-lo. É a clareira necessária a um pensamento que precisa se abissalizar para não ser tragado pela visibilidade da plena presença, um aparente movimento paradoxal, portanto.
O interstício, uma forma de Stimmung, seria a passagem a um outro a partir da dilaceração e dilatação do uno, da unidade íntegra e total do ente, de qualquer ente que se apresente como entidade íntegra, fixa, unitária e ideal em seu sentido. Rasgar, romper e dividir o uno em sua aparente integridade inviolável é a condição de construção, em negativo, de uma presença ausente, uma fenda na integridade do todo, um interstício, um intervalo por onde pode-se acessar territórios ainda insondáveis, inexistentes como entidades reconhecíveis, não garantidos como presença porque encobertos pela plena presença daquilo que se mostra como máxima visibilidade, como ente ou discurso garantido, coeso, sem brechas.
Diante de entidades monolíticas, de imperturbável coesão discursiva ou significante, sua abertura seria a possibilidade da emergência daquilo que, segundo Derrida, foi e permanece recalcado pela potência e dominância do que se reafirma, incessantemente, como aletheia, como verdade histórica.
A abertura é a condição primeira para uma passagem ao que foi recalcado, sufocado, submetido pelo que se fixou como verdade. Corresponderia a esse movimento intervalar uma vontade de profanar o aparentemente improfanável, a possibilidade de, por ele, promover dissensos onde se busca, de forma iterada, a construção, constituição e preservação do pensamento consensual e a integridade do ente, da entidade una e totalizante.
Provocar intervalos, enxergar interstícios é gerar a experiência problemática na clareza do pensamento monolítico, é desejar a multiplicidade. Seriam esses raros momentos de existência – acontecimentos – em que seria possível interpretar o mundo para além do já dado e, por cada um, formatado a partir de bases conhecidas e consagradas. Seriam a objeção necessária ao senso-comum para ir além dos automatismos do pensamento costumeiro, do uso irrefletido de frases, expressões prontas, consagradas, naturalizadas, justamente por se sentir desafiado por ele em sua anormalidade, ininteligibilidade e ou contradições imanentes, [quase] sempre irresolúveis, mas abertura a um outro.
O pensamento intersticial e o antídoto à naturalização do ente
Conforme Friedrich Nietzsche nos mostra, contra a axiologia tradicional é preciso abalar o território ideal no qual a tradição filosófica se reconhece como verdade inquestionável. E, poderíamos dizer, não só filosófica, mas estético-arquitetônica e urbanística.
À incontornável necessidade de uma transmutação de valores fixos e invioláveis, a destruição como destruição ativa dos valores tradicionais, estabilizados em sua aletheia, torna-se um ethos fundamental ao exercício da transmutação desses valores, transmutação como passagem a um devir ativo, um devir incerto, a ser ainda enunciado.
E só há chance de passagem pelo intervalo, pelo interstício; o intervalo é a condição de afirmação do inaparente, do inexistente, do menor, do invisível, pela negação e destruição de tudo aquilo que os encobre por meio de uma luminosidade que os ofusca, impedindo-os de aparecer ou se apresentarem como dissonâncias consonantes, como uma espécie de Unheimlichkeit, o estranhamente familiar, a discordância no que parece familiar, dado, uma interioridade externa, desagregante apesar de ser parte constituinte. Um suplemento em sua aparente complementaridade.
Possivelmente, estejamos falando daqueles menores elementos ou movimentos que podem representar um risco à integridade ou totalidade do ente, do discurso, do objeto, se dissociados do todo, desencadeados de certas cadeias pré-estabelecidas, fixadas em seus significados e sentidos apriorísticos.
Discutido por Wolfram Eilenberger na obra Tempo de mágicos (2), Ernst Cassirer, em sua obra A filosofia das formas simbólicas, denuncia o que chama de perseguição da ideia fixa, de que deva existir algo como uma forma única, unificadora, que dê origem a absolutamente tudo o que existe. Mas sabemos que nenhum ente em sua forma conceitual e de representação mais visível é pleno o suficiente para esgotar o espaço da realidade na qual se insere.
Há, provavelmente, sempre um mínimo elemento do qual é composto, capaz de abalá-lo em sua formatação e representação plenas. Esse mínimo elemento capaz de detonar o unheimlichkeit, pode ser o punctum do qual nos fala Roland Barthes em sua obra A câmara clara (3). Indisponível a nós em função do studium (interpretações generalistas e generalizantes, que ambicionam a ordem e o todo, ainda conforme Barthes), tornam-se as brechas necessárias à perturbação do todo, da unidade.
Na vontade de aletheia e de coerência total do discurso, muitas vezes menosprezamos, negamos ou adquirimos de forma hostil as formas conceituais e significantes menores, que representem um risco à coerência total de um ente ou à defesa de um discurso sem contradição, auto-evidente.
Walter Benjamin, por exemplo, localiza o Dasein do mundo, seu ser-aí, sua mundanidade e existência, ao reconhecer os quadros micro-socilógicos da emergente realidade do século 19 precipitada pelas galerias de passagem cobertas, e seus magasins de nouveautés (4).
Surge uma cartografia fenomênico-conceitual, evidenciada sobretudo por meio do seu longo e inacabado trabalho sobre as passagens de Paris. Pequenas territorialidades intersticiais – punctum urbano – dentro e à margem de um macro território, verdadeiros movimentos de interiorização do espaço público que já anunciavam e enunciavam um mundo em devir e seu porvir, de uma sociedade em processo de alienação iluminada pela figura do flâneur, e de um cotidiano reificado em e por um crescente processo de mercadorização da esfera pública.
Para Benjamin, esses punctuns são acontecimentos apropriativos singulares, e, por isso, disruptivos, momentos intervalares no tempo capazes de interromper um aparente fluxo continuo e naturalizado da história, ao mesmo tempo que possibilita o surgimento de novas origens, início de novas cronologias e outras relações com o mundo; nesse caso, uma relação mediada pela mercadoria.
O punctum pode ser visto como a interrupção ontológica do ente, o elemento que, pertencente à coisa, é estranho a ela. O punctum, um desagregado conceito em um texto ou discurso, uma estranha inscrição em uma obra, um dispositivo suplementar em um território ou edificação são a possibilidade de cisão da unidade da coisa, abrindo-a; é a passagem a um outro ainda não vislumbrado.
Seguindo Derrida, é o espaçamento generativo, um intervalo entre o que a coisa é e pode não ser, mas nunca um “terá sempre sido” permanente. O intervalo é um suplemento que faz parte da coisa já sendo a chance de sua própria superação, ainda que sem destruí-la. Perceber, provocar quebras ontológicas, desagregar ou gerar interstícios na coisa é a chance de destituí-la de seus garantidos fundamentos, restituindo-a como um outro, deferido e diferido em relação ao seu futuro anterior, ao seu “terá sido” sempre assim. No espaçamento, pela disjunção, tece-se, ao mesmo tempo, conjunções com um ser ainda não presente, de um ente que já é um outro.
Ao provocarmos ou reconhecermos interstícios no uno, na unidade, na coisa monolítica, criamos a possibilidade de vizinhanças inexistentes entre as presenças formadas pela ausência que as formou, ou pela conjunção de presenças impossíveis, dada a coesão inicial daquilo que era visto como uno, em-si.
Disjunções criam outras conjunções justamente pela abertura criada por elas e as distâncias que agora separam esses fragmentos de outros, distâncias essas inexistentes, dada a totalidade daquilo que era uno, verdade em-si, pleno, fechado, sem falta. Seguindo Heidegger, entender que o dispositivo maçaneta só é maçaneta ao se colocar em relação com algo além dela – o dispositivo porta – é perceber a força do tecido conjuntivo entre coisas que, aparentemente, podem existir como entidades em-si, porém, sem o poder que ambas têm ao se colocarem em conjunção sem se anularem em suas singularidades.
Conceitos são dilacerados, desmembrados para que possam continuar como fonte de significações, meio para outras conjunções de conteúdo, formais, espaciais, temporais. Como nos mostram os pós-estruturalistas, sobretudo Derrida e seus jogos polissêmicos e labirínticos em torno dos conceitos, um conceito dentro de um discurso aparentemente coeso, coerente, pode ser um punctum promotor de contradições, embaralhamentos e estranhamentos.
Sempre em intervalo consigo mesmo, o espaçamento entre seu etymon, sua etimologia, e suas camadas metafóricas adicionais ao longo do tempo o tornam um território potencial da perda, da indagação e de questionamentos, e não de certezas ou reconhecimentos unívocos ou bi-unívocos. “Os conceitos são monstros que renascem de seus pedaços”, afirma Deleuze (5).
Antídoto contra a doxa, o senso-comum e o raciocínio estereotipado, o conceito é um dispositivo prospectivo, e não de recognição ou identificação,
“Num conceito, há no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado” (6).
Pela diferenciação conceitual do próprio conceito, abre-se um campo de especulações conceituais até então inaudito, encoberto pela unicidade inviolável do conceito naturalizado em seu significado ou representação. Pelo conceito, torna-se possível pensar e prospectar o mundo de forma fenomênica, ao mesmo tempo que nos afastamos da doxa e dos riscos de interpretações altamente subjetivadas, absolutas e positivadas.
Podemos nos perguntar sobre os significados do conceito de fronteira, por exemplo. Para além da ideia de limite, a ideia de deslimitação só pode vir pela delimitação de algo. Lugares de perda, de atribulações e superações semânticas, de questionamentos de suas verdades, essências são possíveis de existir no momento em que reconhecemos seus limites, seus significados e identidades dados. Fronteira nos dá a possibilidade de ultrapassar aquilo que nos é dado como campo de recognição, de identidade, de propriedade.
Restituições só podem existir quando há reconhecimento das fronteiras entre o que se deseja restituir e preservar. Entrelaçamentos e diálogos improváveis, impróprios, inadequados só podem existir a partir da clara delimitação do que seja próprio, de propriedade de alguém ou adequado a algo ou a alguém. Devires só existem a partir do reconhecimento das propriedades do ente.
Espectralidades e restâncias
Pelo e através do interstício torna-se possível enfraquecer o que se mostra em sua integridade inviolável e presença absoluta. O interstício é uma ausência que se torna presente como um suplemento espectral. A partir de um, do uno, da coisa totalizada em si, pela fenda, pelo intervalo, surgem três. Disjuntiva, a fenda atormenta o uno, o absoluto, ao dividi-lo, ao mesmo tempo que garante a relação entre as partes, nem autônomas, nem fundidas, disjuntas.
O interstício, essa ausência supérflua, desintegra o todo para torná-lo uma multiplicidade, um que se faz ao menos três, mas justapostos, avizinhados, atormentados por essa ausência que os separa e une ao mesmo tempo, restâncias do que eram e do que podem ser como novos “unos” justapostos, em relação uns com os outros. Certamente Koolhaas soube criar interstícios no discurso formatado de Le Corbusier sobre seu receituário acerca da nova arquitetura e urbanismo. Não só do receituário de Corbusier, mas da arquitetura e urbanismo modernos.
Koolhaas trabalha com restâncias da promenade architecturale corbusiana como forma de precipitar um outro ethos acerca do espaço arquitetônico. Conexões múltiplas, rupturas, continuidades descontínuas, desvios, [des]agregações programático-espaciais. Há uma generosidade tal da restituição do léxico corbusiano que acaba por superá-lo, transmutando-o em um outro, sem destruí-lo (7).
Se o interstício é condição para o labirinto e nele se realiza, a labiríntica promenade dos projetos de Koolhaas (Casa da Música do Porto e Biblioteca Pública de Seattle, por exemplo) são abertura a um outro do discurso corbusiano. Koolhaas parte do dispositivo Corbusier para abandoná-lo ao radicalizá-lo; não o coloca, portanto, à sua inteira disposição, mas o considera o suficiente para subvertê-lo. Nada está subentendido no dispositivo, é preciso reabri-lo e interrogá-lo uma vez mais.
Essa radicalidade fissurou o campo erigido, formatado e idealizado em um preciso ideário (redundância intencional) disseminado por Corbusier. Em um pensamento derridiano, nessa fissura instalou-se a promessa, a exterioridade de uma interioridade inviolável. A história é fertlização de seu próprio devir, e não lugar de preservação e reverência. O tempo não seria nada outro senão essa inclusão repetida do outro naquilo que parece ser o original, a matriz, a referência inviolável.
Sem devoção, Koolhaas liberta a promenade de suas representações, clivando-a em sua identidade, tornando-a uma identidade diferencial, uma e outra. Lança-a em um intervalo entre o que ela era no contexto corbusiano-moderno e o contexto no qual agora ela se insere, a metrópole fin de siècle.
No interstício, habitamos a presença da ausência e a ausência da presença. É por ele que os rastros do antes e do depois se manifestam. Koolhaas, deliberadamente, cinde e deforma as representações do discurso corbusiano da promenade architecturale e cria um intervalo inquietante ao aproximá-la do mundo shopping, sobre o qual teoriza em seu conhecido texto “Junk Space”.
A promenade é restituída a partir de uma leitura crítica e arguta do potencial do dispositivo escada rolante quando inserida no mundo shopping. É reinserida na metrópole como condição de interiorização de exterioridades públicas do espaço, tornando-se meio à efetivação de um potente e labiríntico continuum espacial, interiorizado, desierarquizando atividades e borrando limites entre público e privado. Congestionamentos espaciais são provocados pela manipulação extrema de conexões improváveis, realizadas por meio de fluxos não sequenciais, erráticos, rompidos, desviantes, muitas vezes.
Iterando, pelo intervalo criado ao avizinhar a promenade architecturale, imaginada por Corbusier, da escada rolante, Koolhaas recria a ideia de uma continuidade espacial transfigurada, alterada em seu valor e significado originais, apesar de não destruí-los. Um intervalo é criado entre a racionalidade da promenade “original” e sua massificação no mundo shopping. Algo resta entre um e outro, fenda por onde Koolhaas opera.
Na obra, La Vérité en Peinture (8), não é o que nos mostra Derrida ao expor uma discussão entre Heidegger e Shapiro em torno de um dos quadros da série “sapatos”, de Van Gogh. Nessa série, Van Gogh retratou, com variações, dois sapatos desgastados, surrados, supostamente bastante usados.
Em linhas gerais (quase uma heresia com Derrida) o capitulo “Restitutions” (“Restituições”) é dedicado à parousia, a total coincidência, sem resto, em uma imagem, entre objeto e as representações que carregamos sobre as coisas, anteriores a qualquer análise mais pormenorizada dos eventuais punctuns dessas imagens.
Em A origem da obra de arte (9), Heidegger – o pensador da Floresta Negra, do chalé, apegado à terra, que cultivava como maiores prazeres cortar lenha e esquiar, que tinha insights em seu chalé durante as tempestades –, ao analisar essa pintura de Van Gogh, parte da afirmação de que se trata de um par de sapatos de uma camponês, talvez de uma camponesa, para, então, interpretar o da-sein camponês e de uma camponesa. Como especula Derrida no respectivo capítulo, Meyer Shapiro, citadino, professor universitário, comunista, em correspondência enviada a Heidegger, contrapõe-se a Heidegger dizendo que não seria possível afirmar categoricamente tratar-se de um par de sapatos de uma camponesa mas que, talvez, fosse um par de sapatos de um cidadão, de um homem da cidade, possivelmente um operário de fábrica; ou até mesmo do próprio Van Gogh durante seus anos de agruras e privações em Paris. Ambos incorporam representações dogmáticas aos seus argumentos.
Derrida pergunta se ambos não estariam falando da coisa a partir de representações de mundo e valores que carregavam independentemente do objeto analisado, do que estavam vendo. A favor de Shapiro, se assim podemos considerar, destaca o fato de ter trabalhado com a dúvida, o talvez, e não com a asserção. Mas, de qualquer forma, os sapatos, desamarrados no quadro, já pareciam atados às representações de mundo de seus interlocutores. Parecem ter atado um sujet (assunto e sujeito) adequado e ideal ao modelo pintado, o próprio Van Gogh; e que, ao mesmo tempo se torna um predicado real a um objeto pintado. Os sapatos permanecem aderidos a pés e personagens específicos (10).
Pergunta-se, sem afirmar ou ambicionar uma conclusão, se era a pintura ou o próprio Van Gogh que estavam sendo analisados; a pintura já havia se tornado o próprio, uma coincidência sem resto entre um e outro. Ambos, Heidegger e Shapiro, pareciam restituir plenamente, sem intervalo, o quadro a Van Gogh e a eles próprios, expropriando, do quadro, valores intrínsecos a ele, para melhor dele se apropriarem atribuindo-lhe valores a partir de suas representações e valores pessoais de mundo, com a intenção de validar suas asserções. Interessados na verdade do quadro, projetam-no dentro de lugares imaginários, condizentes com suas próprias referências.
Se Heidegger fala de uma camponesa genérica, Schapiro o critica por supostamente ter esquecido do próprio autor do quadro, ao contrário dele próprio. Fetichizado, ambos restituem o quadro pleno de atribuições, sem interstícios entre os sapatos e seu sujet; nada parece restar a saber. Uma das questões centrais de Derrida, que permeia o texto: o que pode ainda ser produzido a partir do produto, do produzido ou do produto produzido? O produto produzido deve faltar para se tornar passagem a outras produções.
Talvez, tanto Heidegger como Schapiro, tenham retido e anexado em demasia a assinatura de Van Gogh e suas próprias, comprometendo a restituição do quadro ao público. O quadro, na provocativa análise de Derrida, parece ter permanecido de propriedade do pintor e dos dois críticos. Astuto, quase irônico, se pergunta se aqueles pés de sapato seriam parte de um par, poderiam nem ser. Olhando, minuciosamente, para os punctuns da imagem, pareciam ter a curvatura do mesmo lado, configurando o mesmo pé, além de um ser levemente menor que o outro. Poderiam, inclusive, fazer parte de um conjunto de sapatos, não retratados na pintura, indaga.
Esses restos entre a imagem e sua apreensão imediata são os intervalos necessários por onde outros pensamentos agem, operam, e outras hipóteses são construídas. Ao contrário dos outros, Derrida parece permanecer entre o que ainda pertence ao quadro e o que poderia ser algo além dele, presente nele como rastro de uma outra possibilidade, sem garantias. Estamos falando de uma desmontagem de discursos categóricos em direção a um território mais movediço, de dissensos, incerto, por isso mais fecundo como restituição pública, aberta, meio de outras construções, e não apenas adesões ao ou refutações do que chega como discurso formatado.
Se o intervalo parece faltar entre Heidegger e os sapatos e entre Schapiro e Van Gogh, em Glas (11), de 1974, uma de suas obras mais obscuras e intrigantes, é pelo intervalo, no intervalo, que Derrida estabelece um complexo, conflituoso e deslimitador diálogo entre Hegel, o monumental pensador do puro, do absoluto, do imaculado e Jean Genet, o polêmico escritor marginal do impuro, do obsceno, do autor de literatura menor. Essa impossível contigüidade abre um campo de leituras cruzadas, subtextos espectrais e improváveis conexões, que serão capazes de desmontar, pela montagem, o que parecem ser os fundamentos e o próprio de cada um.
De formato incomum, forma quadrada 25x25 centímetros, as páginas são organizadas, majoritariamente, a partir de duas colunas verticais, uma contra a outra, uma [não] sem a outra, além de uma terceira formada por erráticas inscrições, incisões entre elas, sem um início ou um fim. A coluna da esquerda é ocupada por um “diálogo” com Hegel, a da direita, com Genet (ao que parece, os textos foram escritos em tempos distintos, o texto sobre Hegel foi preparado para um seminário de 1971-1972, e aproximados como uma intertextualidade) e, na supressão de partes das colunas, nos interstícios e vãos abertos, Derrida promoverá e trabalhará uma disjunção de ambos a partir de inusitadas e improváveis junções e tangências entre ambos, com algumas notações reflexivas pontuais, suplementos que [não] suprem, emulam questões. Será por um pensamento tangencial que Derrida, de maneira criteriosa, ambígua e contraditória, construirá uma argumentação – pela aproximação por diferimento, por uma dilatação, um espaçamento entre ambos autores (Différance) – que desmontará e manterá, não incólumes, as supostas fronteiras existentes entre uma escrita maior (filosofia hegeliana e filosofia, no geral) e uma escrita menor (literatura).
É na e pela restância gerada pelo impossível diálogo entre ambos que Derrida desmonta verdades sobre algumas dualidades que só seriam possíveis e passíveis de existir simultaneamente se em antagonismo, como antípodas. Limites próprios e naturais entre um e outro são colocados à prova, interpelados, e então dissolvidos para serem restituídos em uma zona cinzenta entre ambos, por ambos, através deles.
É nesse mosaico textual, de leituras cruzadas, simultâneas, em duas colunas, aproximando a dialética de Hegel da escrita multiforme, heterodoxa de Genet, que Derrida constrói um ambiente intersticial para além de dualismos, um lugar da indiscernibilidade fecunda, de dissolução das oposições binárias ou da diferença irredutível uma à outra; elas acabam por se contaminar, gerando deslocamentos de sentidos dados. Sobre Glas, diz Benoit Peeters, em sua obra biográfica sobre Derrida:
“Glas coloca reais dificuldades de leitura; literalmente, não sabemos por onde pegar o livro. Impossível acompanhar paralelamente as duas colunas, uma página depois da outra, visto que, dessa forma, a proposta não demora a se diluir. Por outro lado, seria mais absurdo ainda ler a integralidade de uma coluna depois da outra: isso significaria negar a unidade profunda do volume e desconhecer os incessantes ecos entre essas duas vertentes. O leitor é então obrigado a inventar seu próprio ritmo, a pular cinco, dez ou vinte páginas, depois a voltar sobre seus passos, ao mesmo tempo que mantém um olho na outra coluna. Cabe a ele [o leitor] construir a relação, implícita no texto, entre a família segundo Hegel e a ausência de família em Genet, entre a sexualidade reprodutora teorizada nos “Princípios da filosofia do direito” [de Hegel] e o dispêndio homossexual do “Diário do ladrão” ou de “ Milagre da rosa” [ de Genet]” (12).
O livro é uma longa deriva teórica, filosófica e teatral pelos intersticios dos pensamentos dos dois autores. Caberia ao leitor inventar seus percursos, construir inesgotáveis relações e “indecidíveis” conclusões. O livro torna-se Khôra (13), na própria discussão derridiana do conceito, um receptáculo de infindáveis narrativas, capaz de receber todas Histórias, a construção do outro na própria História. Corroborado por Peeters, podemos dizer que Derrida apostava em um outro leitor, um leitor impossível, um leitor por vir. Nesse abismo criado entre as duas colunas, entre os dois, a impossibilidade de uma reconciliação com o pensamento próprio de cada um e, portanto, a impossibilidade de uma solução, de um fechamento.
Considerações sem [um] fim
Não é possível saber se Koolhaas tomou conhecimento ou tenha lido Glas ou qualquer outra obra de Derrida, mas isso pouco importa, traços dela reverberam em suas ações projetuais. Koolhaas justapõe diferentes mundos e os faz atritar mutuamente. Sua icônica piscina flutuante, parte do ensaio Floating pool – que por sua vez fazia parte da primeira edição de Delirious New York, mas que desaparece nas edições posteriores – que aparecerá transfigurada em alguns dos seus projetos, aproxima, como crença e desilusão, o Leste do Oeste, o comunismo do capitalismo. Seus projetos nos Estados Unidos e na China na década passada alimentam tal hipótese.
Nesse conto ensaístico, de teor surrealista, jovens arquitetos soviéticos, nos anos 1930, auge do stalinismo, no clima expansionista pós-revolução, inventam um mecanismo, uma mega piscina flutuante, capaz de cruzar o oceano. Entretanto, ao se lançarem, talvez em uma espécie de teste exibição, os nadadores-arquitetos, ou arquitetos-nadadores, relatam uma suposta estranha reação do dispositivo: ao nadarem em determinada direção estariam, na verdade, empurrando-a no sentido contrário. Após quarenta anos no oceano, após passarem por outros mundos se afastando deles, se aproximam do seu antagonista sempre tendo nadado em direção ao seu lugar de origem. Mas não há escapatória, no Oeste, o desencanto os aguarda. Ir em direção a algo, afastando-se dele, para alcançar – voluntária ou involuntariamente? – seu oposto, para, a partir daí, precipitar uma transmutação da coisa, parece ter sido um procedimento recorrente, à mão, na obra de Koolhaas. Espectro heraclitiano, uma aposta na contradição e na negatividade do significado pleno da coisa, provavelmente.
Sim, uma pequena reviravolta. A proximidade exagerada de algo, em relação a algo, sem restos, pode nos impedir de ver a extensão da coisa. O movimento de aproximação e distanciamento da coisa, um trânsito entre o punctum e o studium, é vital para que possamos habitar seus interstícios.
É recorrente essa estratégia de Koolhaas de aproximar e fazer com que mundos, aparentemente, absolutamente divergentes [a rampa e a escada rolante, Le Corbusier e o mundo shopping] interajam e se entrelacem até se dissolverem em uma síntese disjuntiva; distâncias unidas, proximidades distantes. Nem um nem outro, mas ambos, fundidos, com seus imprevisíveis desdobramentos, torna-se a condição de criação de uma zona cinzenta entre o edifício e a cidade, exterioridade e interioridade, erudito e popular, formal e informal, o distanciamento e a massificação, sem chance de restituição de um ou de outro, mas de outrem.
O outrem como tessitura de seus rastros, diferenciados em relação a si próprios porque desatrelados de seus códigos e representações discursivas originais, contaminados pela presença de outros códigos. O traço espectral resultante excede a ambos, como na disjunção discursiva promovida por Koolhaas ao aproximar o ideário moderno-corbusiano do massificado mundo shopping, desvalorizando-os como coisas em si ao mesmo tempo que os valoriza em seus corrompidos desdobramentos semânticos.
Aquilo que não se conserva a si mesmo é que não se perde, fala Adorno. Como nos diz Deleuze, em sua obra Le Pli [A Dobra], a partir de uma leitura de Leibniz, é da incompossibilidade, da junção entre incompossíveis, entre coisas, supostamente, impossíveis de coexistirem, que emerge o outro lugar do lugar que é preparado para a nossa existência na história.
Afigura-se uma outra ideia de justiça. Novamente, no interstício se instala a promessa, a ideia de uma generosa restituição pública, sem implicar em expropriação ou apropriação e construção antecipada dos significados ou possibilidades, mas campo de instáveis e conflituosas imbricações, permanentes [re]formulações e disseminações semânticas. Não apenas um lugar de diferenciações – divisão a partir da unidade – mas, sobretudo, um lugar da différance (conceito chave de Derrida), de espaçamentos, da relação horizontal, desierarquizada, entre heterogêneos.
Sem endereçamentos específicos, falamos de uma modesta restituição, forte porque frágil – guarda vestígios da origem e da destinação – em seus determinismos de propriedade e significação, uma restituição que adviria da perturbação e da inconformidade da propriedade de algo – fala, coisa, discurso, imagem – a alguém ou de alguém a algo. Enfim, um traço espectral, em [des] construção do que foi ainda sendo e seus devires.
Pelo interstício, a verdade do sentido uno do ente perde sua univocidade, abrindo-se ao compartilhamento plural de algo, de um discurso. Sem a retenção da propriedade, do próprio, do supostamente legítimo, da verdade instituídos, a priori, por algo ou alguém, ou por um desejo de formatação semântica e predicativa de um projeto ou de um discurso, o outro chama a vir e não chegará senão por meio de muitas vozes, pela plurivocidade.
Em Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (14), Nietzsche nos mostra como os metafísicos de todos os tempos, e aí inclui-se a Ciência, cultivam a crença de poder alcançar o saber pela “coisa em si”, e, a que chamam de “verdade”. “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores” (15). Contra as estruturas estáveis, permanentes, tomadas como verdadeiras, pela falta e carência do significado do ser das coisas instalam-se processos de des e remontagens, inter-relações sincrônicas não substanciais, mas forças múltiplas inter-relacionadas. Comum a esses pensamentos e procedimentos, o reconhecimento de um campo de forças instáveis, finitas, por isso, origens de novas montagens.
notas
NA – O artigo, resultado de uma apresentação, como palestrante convidado, no Colóquio Atmosfera, Aura, Stimmung, realizado na FAU USP em agosto de 2019, problematiza a noção de unidade, afinidades e complementaridades no processo de construção do pensamento a partir do que vemos e nos chega. Fissuras em um pensamento dado como coerente, coeso, formatado são a negatividade constitutiva de interstícios, por onde torna-se possível passar ao que ainda resta ser pensado
1
HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 21.
2
EILENBERGER, Wolfram. Tempo de mágicos. A grande década da Filosofia 1919-1929. São Paulo, Todavia, 2019, p. 448.
3
BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa, Edições 70, 2014, p. 106.
4
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2018, p. 1167.
5
DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? 3ª. Edição. São Paulo, Editora 34, 2010, p. 183
6
Idem, ibidem, p. 29-30.
7
KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Barcelona, Gustavo Gili, 2014.
8
DERRIDA, Jacques. La Vérité en Peinture. Paris, Flammarion, 1978.
9
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa, Edições 70, 2007.
10
DERRIDA, Jacques. La Vérité en Peinture. Paris, Flammarion, 1978, p. 336-337.
11
DERRIDA, Jacques. Glas. Paris, Galilée,1974, p. 304.
12
PEETERS, Benoit. Derrida. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013, p. 320.
13
DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas, Papirus, 1995, p. 76.
14
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: preludio a uma filosofia do futuro. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
15
Idem, ibidem, p. 10.
sobre o autor
Igor Guatelli é arquiteto e urbanista (FAU USP), doutor (FFLCH USP), pós-doutor e pesquisador associado do laboratório Gerphau – Ensa Paris La Villette e Université Paris 8. Atualmente é professor, pesquisador e coordenador do grupo de pesquisa Cidade e Arquitetura e Filosofia (FAU Mackenzie) e autor do livro Arquitetura dos entre-lugares: sobre a importância do trabalho conceitual.