“From passion for things to things himselves”.
Peter Zumthor
O ritmo frenético em que vivemos nos atropela, deixando-nos com pouco ou nenhum tempo para sentimentos, relações interpessoais, entendimentos e sinapses, roubando-nos a todo instante, sensações, memórias e percepções.
A arquitetura também é impactada por essa realidade ao dar protagonismo excessivo à dimensão da visão, impondo uma espécie de ditadura do olhar que produz edifícios de formas escultóricas e exuberantes que representam, em grande medida, realidades políticas que são prejudiciais à sociedade por gerarem a gentrificação. Esses projetos que não dialogam com as populações locais e nem levam em conta as características materiais e tectônicas do lugar onde serão implantadas compõe a chamada arquitetura de estilo global – arquitetura de imagem a serviço do capital. Uma arquitetura que celebra o não essencial, a estetização e a globalização. Para Fredric Jameson,
“A globalização é uma espécie de ciberespaço em que o capital (dinheiro) chegou ao seu final na desmaterialização, como as mensagens que passam instantaneamente a partir de um ponto nodal a outro pelo antigo globo, antigo mundo material” (1).
O enfrentamento a tal realidade se dá de inúmeras formas. Este artigo pretende investigar alguns dos arquitetos contemporâneos que colocam os usuários como catalisadores do espaço construído, estimulando experiências multissensoriais obtidas a partir da atmosfera criada em seus projetos. Para tanto, elegi o projeto da Capela Bruder Klaus, do arquiteto suíço Peter Zumthor, por entender que este seja talvez um dos nomes que mais opere em sentido contrário ao mainstream e aos ditames do mercado de imagens. Sua arquitetura motiva a criação de espaços dinâmicos que buscam promover no visitante a mudança de percepção e consciência do entorno.
Com vistas a dar conta dessa narrativa, visitei a Bruder Klaus na Alemanha, com o intuito de experimentar, vivenciar e comprovar se a prática projetual e construtiva de Zumthor atua, de fato, na leitura sensorial do espaço.
“Quando eu recebo a encomenda de um novo prédio, uma nova localização,
eu vou até lá e olho em torno; minha mente começa a estabelecer
os possíveis materiais para possíveis anatomias.
Eu olho para ver que energias começam fluir ali” (2).
Peter Zumthor
Com um currículo que misturava a prática projetual e a carreira acadêmica, Zumthor ingressou em 1968 no Departamento de Manutenção e Preservação de Monumentos do Cantão de Graubüngen, na Suíça, onde desenvolveu pesquisas em técnicas construtivas e novos materiais aplicáveis não somente ao patrimônio histórico, mas também a novos edifícios. Em 1979 iniciou uma carreira autônoma, e, em 1985 abriu o próprio escritório, na pequena aldeia de Haldenstein, próxima à cidade de Chur, nos Alpes suíços (3).
Zumthor, em suas várias produções e reflexões, discute o conceito de atmosfera como prática para uma arquitetura de qualidade. No seu entender, a ideia de atmosfera está relacionada à forma de como experimentamos os espaços através de nossas memórias e percepções. Isto é, o arquiteto sugere uma leitura espontânea, emocional e não intelectual do espaço, visando estabelecer uma relação de identidade com o lugar em que o projeto será implantado, prática que vai muito além da forma e da função do edifício. Encontram-se em seus projetos elementos místicos e sensoriais que criam espaços emocionais. Por isso, refere-se constantemente à slow architecture (arquitetura lenta), corrente que segue em sentido contrário às exigências da vida contemporânea propondo o conceito de se fazer menos, com mais. Outro tema que lhe é caro é a relação entre estrutura, espaço e paisagem na arquitetura. Seus edifícios propiciam o aparecimento de percepções, sem a necessidade de impô-las. Trabalha os materiais, a tectônica, a ressonância entre o espaço, o som, o ar, a luz e até o cheiro, elementos que construirão a atmosfera. Para o arquiteto, a atmosfera opera como um princípio orientador de sua prática arquitetônica.
“A qualidade de um espaço ou lugar não é meramente uma qualidade de percepção como é geralmente assumido. Pode-se dizer que atmosfera é a complexa fusão multissensorial de caráter ambiental, percebida de forma imediata e sintética que resulta em sentimentos, humor ou ambientação” (4).
Em seu livro Atmosfera, aponta que essa característica na arquitetura está relacionada à materialidade, à temperatura de um espaço e aos níveis de intimidade do visitante com o ambiente. Sob esse viés o escritor argentino Jorge Luis Borges pontua: “O que não pode ser definido pode ser identificado”. Nessa perspectiva o indivíduo opera como figura central na construção do espaço como um lugar singular. É a partir das suas percepções, memórias e sensações em relação à obra e experiência com o entorno e as coisas que nos rodeiam que se estabelece uma dinâmica que não se esgota a priori.
Na sequência, o protagonismo do edifício é usado como ponto de partida para o debate da experimentação e da relação entre o indivíduo e a realidade espaço temporal em que está situado.
Capela Bruder Klaus: o espaço além da forma
O projeto da Capela Bruder Klaus pode ser considerado como um dos mais emblemáticos de Peter Zumthor. A capela apresenta uma concepção original do espaço e dos materiais, aqui utilizados de forma a operar principalmente na percepção tátil e olfativa do visitante na construção de um lugar singular.
Bruder Klaus não pode ser considerada como um edifício topográfico e site specific, mesmo que tenham sido utilizados materiais locais em sua construção. O acesso à capela, implantada no meio de plantações e de uma área cercada e utilizada como pasto por cavalos, se dá por uma caminhada de aproximadamente quinze minutos, em uma estreita trilha de terra batida. Esta capela homenageia o agricultor e místico suíço Bruder Klaus (1417-1487), cujo verdadeiro nome era Niklaus von Füe. Popular entre a comunidade rural alemã, é também considerado como o santo padroeiro da Suíça, e foi canonizado em 1947. Pelo fato de ter impedido, em 1481, uma guerra civil entre os Cantões, atribui-se a ele a perene unidade nacional. Klaus era também o santo de devoção da mãe de Zumthor. É provável que por conta dessa familiaridade ele tenha aceitado o convite dos agricultores Eifel Hermann-Josef e Trude Scheidtweiler para a construção da capela rural em suas terras. Por este trabalho o arquiteto recebeu apenas uma taxa nominal, um valor simbólico pelo projeto (5).
Ao observarmos o edifício, inaugurado em 2007, percebe-se que se assemelha mais a um menir pré-cristão – monumento de pedra cravado verticalmente no solo, às vezes de tamanho bem elevado – do que ao programa construtivo típico de uma igreja cristã. A capela, em sua austeridade e simplicidade, se mostra como um projeto campestre. Essa configuração a aproxima do ascetismo de Klaus, e às características minimalistas de Zumthor, diferindo-a em grande medida de qualquer outro lugar de culto em grande escala. Uma leitura possível da atmosfera construída é a sensação de, ao adentrar o local, sentirmo-nos transportados à experiência vivida por um eremita do século 15, que optou por desistir de uma vida próspera em favor de uma existência de fome e exposição a dificuldades, em nome de sua espiritualidade.
Bruder Klaus localiza-se no perímetro da cidade de Mechernich no interior da Alemanha. O acesso ao local se dá por um serviço de táxi que parte da estação de trem, oferecido pela municipalidade. No entanto, o trajeto é finalizado no estacionamento que serve à capela, o restante do percurso tem de ser feito a pé pelo visitante.
No dia de minha visita, a estreita trilha de acesso à capela estava enlameada por conta da chuva que havia caído na véspera. O tempo ainda instável, transformou a caminhada pelo meio do prado, sob uma garoa fina e céu cinzento, em uma preparação para as sensações inevitáveis que o interior da capela reservava. A aproximação ao edifício despertava em mim reações típicas do debate arquitetônico atual – o interesse de como nos relacionamos como sujeitos com a paisagem construída, tanto físico como emocional. Havia uma tentativa de me situar em relação ao entorno a partir dos meus sentidos, emoções, expectativas e memória e não simplesmente como um par de olhos que flutua no espaço. Sobre esse aspecto, em várias de suas reflexões, Zumthor coloca que o objetivo de sua arquitetura é produzir a sensação de presença, descrevendo-a como o movimento do corpo do sujeito pelo espaço visando de certa forma, um aspecto cênico em uma dimensão temporal.
Peter Zumthor utilizou como fôrma para concretagem, toras de madeira encontradas na região e alinhadas de maneira a criar na área interna um cone vazado com abertura na parte superior, e, pontuado por pequenos furos que deixavam buracos no concreto. Essa configuração construiu um edifício que se comunica com o observador a partir de suas percepções emocionais e da atmosfera construída. O projeto da Capela transcende a forma; estabelece uma conexão com a vida ao apresentar em seu interior um ambiente intimista, sensual e místico, que convida à reflexão, ocultando um exterior monolítico, retangular e rígido. A relação entre o exterior e o interior se dá de forma descontinuada.
O resultado construtivo é uma superfície áspera e estriada, pontilhada pelos pelas gotas de vidro que mais parecem com um céu estrelado, inseridas nos buracos deixados durante a concretagem. Utilizando o processo de queima de carvão, foi acesa uma fogueira que ardeu por três semanas em combustão lenta. Embora intencional, este processo é relativamente incontrolável, logo, o resultado não era de domínio do arquiteto nem dos artesãos envolvidos. Tanto que a queima incompleta da madeira deixou vestígios sobre o concreto interno. Devido às chamas, o interior da capela se assemelha a uma cavidade enegrecida, com permanente cheiro de substância carbonizada. O chão foi forrado por uma camada de chumbo derretido, espalhado manualmente no local. Esse material se assemelha à tonalidade do carvão. A partir desse recurso, expôs a tectônica da construção e os materiais como mediadores da materialidade, ativando de modo literal o espaço (6).
Devido à chuva do dia anterior e pelo céu escuro e repleto de nuvens, imperava no interior da capela composta pelas paredes muito altas de concreto, a baixa temperatura e negritude. Encontrava-se ainda no centro do espaço, uma pequena poça d’água formada pela chuva da véspera. A atmosfera do ambiente, embora perturbadora, transmitia serenidade frente aquela grandiosidade e singeleza. O concreto queimado marcado pelo tempo, a quietude e, a visão do céu obtida a partir da abertura superior construiu uma experiência inigualável.
O espaço interior delimitado pela torre de cinco lados recebeu um tratamento litúrgico, como solicitado pelo cliente. Não se encontra um altar tradicional, mas sim, um pequeno aparador com areia para acendimento das velas. Próximo a ele, está uma escultura em bronze do irmão Klaus, elaborada pelo escultor Hans Josephalson. O pequeno banco ao lado do altar, oferecia uma oportunidade para contemplação do céu e absorção da atmosfera do lugar. A umidade do espaço acentuada pela entrada de luz furtiva filtrada pela abertura na cobertura do edifício e a vela ao lado do altar, além da solidão e do silêncio, construíram uma narrativa mística para aquele momento quase sublime.
Considerações finais
Fica evidente, que o edifício é experimentado pelos visitantes em sua essência material e espacial de forma singular, como uma imagem mental que se funde as funções cognitivas, de forma crítica à ditadura do olhar que nos coloca como meros observadores com entendimento fragmentado, focalizado e perspectivo do espaço. Nesse sentido, o movimento do corpo do sujeito pelo espaço desempenha um papel fundamental para a experiência, pois, ao incluir a dimensão temporal, relaciona o ambiente ao corpo humano e seus sentidos, construindo uma interrelação entre a arquitetura e o usuário.
Portanto, é pensando no espaço de maneira diferente que podemos começar a entender como a arquitetura pode influenciar a vida das pessoas, não apenas fisicamente, mas também metafisicamente. É a partir dessa narrativa que se cria um espaço que reflita a harmonia, a atmosfera e a maneira não impositiva com que nos relacionamos com o entorno. Por essa prática, Zumthor atua como via alternativa ao mercado de imagens e às grandes produções arquitetônicas da contemporaneidade, regidas por uma lógica de performance que resulta em um consumo estético forjado por uma economia emocional de sedução, sempre a procura por novidades.
O projeto de Bruder Klaus nos permite experimentar simultaneamente a descontinuidade e a síntese, a alienação e a identidade, a desorientação e a certeza, o passado, o presente e o futuro. Nos permite também a construção de um lugar onde as imagens mentais, a memória espacial, e a fé religiosa convirjam.
notas
1
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1998.
2
ZUMTHOR, Peter. In RAUTERBERG, Hanno. Entrevistas com arquitetos. Rio de Janeiro, Viana & Mosley, 2009. p. 159.
3
PALLISTER, James. Zumthor: There are still some people who believe in architecture as art. Architects' Journal, v. 237, 2013, p. 14-15.
4
BÖHME, Gernot. Encountering atmospheres: a reflection on the concept of atmosphere in the work of Juhani Pallasmaa and Peter Zumthor. Oase, n. 91, v. 93, 2014.
5
ZUMTHOR, Peter; DURISCH, Thomas; KEUSCH, Beat. Peter Zumthor, 1985-2013. Zurique, Verlag Scheidegger & Spiess, v. 2, 2014.
6
MÁRQUEZ, Leonardo. Capela de Campo Bruder Klaus / Peter Zumthor. ArchDaily Brasil, São Paulo, 25 jun. 2012 <https://bit.ly/2C4sNQH>.
sobre a autora
Betty Mirocznik é mestre pela FAU USP (2019), onde pesquisa as relações entre arte, espaço e arquitetura. Produtora executiva dos projetos expositivos Monumento Nenhum no Beco do Pinto e Chacina da Luz no Solar da Marquesa, de Giselle Beiguelman (2019) e assistente de curadoria de Guilherme Wisnik na exposição Conversas na Praça: o urbanismo de Jorge Wilheim, para o Sesc Consolação (2019).