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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Partindo das narrativas dos habitantes da fictícia Jatuomba em “Histórias que só existem quando lembradas”, refletimos sobre identidade e memórias coletivas como parte de pesquisa realizada em parceria IFF / UFF.

english
Starting from the narratives of the inhabitants of the fictional Jatuomba in “Stories that only exist when remembered”, we reflect on identity and collective memories as part of research carried out in partnership with IFF / UFF.

español
A partir de las narraciones de los habitantes de la ficticia Jatuomba en "Historias que solo existen cuando son recordadas", reflexionamos sobre la identidad y los recuerdos colectivos como parte de una investigación realizada en asociación con IFF / UFF.


how to quote

ALVES, Ana Claudia Nunes; COSTA, Daniella Martins. Cidades que só existem quando lembradas. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 251.04, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.251/8047>.

Histórias que só existem quando lembradas. Direção Julia Murat / Roteiro Julia Murat e Maria Clara Escobar. Brasil/Argentina/França, 2011
Foto divulgação

“Há cidades que param. Deixam de se transformar através dos diálogos, nem sempre mansos, entre espaço e tempo. A rigor, não deveriam mais ser chamadas de cidades. No dizer de Oriol Bohigas, viram museus, cemitérios, cenários de turismo, o que quiser... Não merecem mais ser consideradas centros urbanos reais” (1).

Quando Carlos Nelson (2) fala sobre as cidades que viram museus, refere-se àquelas que transformam a preservação numa profusão de relíquias e monumentos, negando-se à passagem do tempo e da vida. Claro que não estamos aqui justificando a destruição do patrimônio cultural das cidades pela necessidade de modernização ou atualização da malha urbana ou de suas edificações. Algumas cidades, porém, estão entre estes dois pontos. É o caso de Jatuomba, situada no Vale do Paraíba.

Jatuomba é uma cidadezinha de terra seca às margens de uma ferrovia desativada e onde o tempo parece ter parado. A população se nega a pensar ou falar do tempo, numa negação da morte que se traduz num certo apagamento da vida. Pelo menos esta é a cidade imaginada por Julia Murat no filme Histórias que só existem quando lembradas (3). Esta cidade fictícia que usaremos para nossas discussões, está em processo de apagamento de memórias, isso até que uma jovem, seguindo os trilhos deste trem imaginário, chega à cidade, uma estranha, uma hóspede que não compartilha valores, memórias ou identidade com os moradores locais. Este é o cenário que usaremos para discutir as questões do tempo, história, memória e narrativa no patrimônio edificado.

Uma estrangeira (4) que aparece sem vestígios do lugar de partida e sem saber que direção vai seguir. Esta presença incômoda em um lugar onde as memórias estão a ponto de se apagar, vem questionar a impossibilidade de parar o tempo com a negação da memória e dos registros, abrindo portas e janelas numa narrativa delicada. “Isso, dizendo mais uma vez, não é absolutamente novo: para constituir o espaço de uma casa habitável e um lar, é preciso também uma abertura, uma porta e janelas, é preciso dar passagem ao estrangeiro. Não existe casa ou interioridade sem porta e sem janelas” (5).

A relação entre a história e a memória negada nesta cidade fictícia nos serve de base para a discussão sobre o patrimônio cultural e a identidade de nossas cidades, uma vez que,

“O chamado patrimônio cultural jamais é resgatado em sua totalidade e integridade, mas sempre por intermédio dos seus fragmentos, que exigem ser cuidadosamente resgatados, restaurados e preservados. Nesse sentido, o patrimônio é uma vasta coleção de fragmentos, na medida em que seus componentes são descontextualizados, retirados dos seus contextos originais, no passado ou no presente, e reclassificados nas categorias das ideologias culturais que informam as políticas oficiais de patrimônio. Sua integridade não é presente e positiva, mas uma integridade necessariamente perdida, situada numa dimensão distante no tempo ou no espaço. Os fragmentos que o compõem são metonímias de uma totalidade temporal ou espacialmente longínqua: o passado, o futuro, a cultura brasileira, a identidade brasileira, a civilização, a tradição, a diversidade cultural etc. Eles representam, ao mesmo tempo, continuidade e descontinuidade” (6).

Seguindo os rastros e fragmentos recolhidos no filme, traçamos algumas questões para reflexão de nossas cidades, em especial no que se refere ao reconhecimento e sentimento de pertencimento, ambos necessários à preservação do patrimônio cultural (7).

História e memória da cidade

Transformamos memórias em relíquias e inventamos tradições a partir de rituais cotidianos, como se corrêssemos o risco de esquecer quem somos, de perder a nossa memória.

Diante deste quadro, a matéria histórica passa a ter grande importância como guardiã de nossa identidade, como um porto seguro onde podemos tocar nossa memória. Nossos centros urbanos, bens supostamente estáticos, onde o registro do nosso modo de vida se deposita em camadas, têm papel fundamental, pois guardam um conjunto de vestígios e valores que não se resumem aos seus projetos e implantação, mas extrapolam a matéria permitindo uma leitura como bem cultural.

São muitos os mitos contados pela matéria de nossos sítios urbanos preservados. A história que os inventores deste Brasil mítico escreveram através de nossas cidades tiveram alguns parágrafos apagados e outros editados em favor da imagem idealizada do que seria este Brasil verdadeiro. Os vestígios dessas edições estão espalhados por nossas cidades. Uma forma de seguir suas pistas é não se concentrar apenas em sua arquitetura, mas ampliar o foco e incluir a observação da malha urbana antiga, que dirá muito sobre seus fundadores, assim como a observação do conjunto de hábitos, costumes, histórias, cores e texturas que materializam a imagem de um país ou cidade. “É nestes artefatos físicos e seus traços que nossas memórias da cidade estão enterradas, pois o passado é transportado para o presente através desses sítios” (8).

A cidade de Jatuomba é apresentada através da rotina de seus habitantes, todos idosos, e da cidade cheia de relíquias, traços e vestígios do tempo que passou. As cenas iniciais apresentam estas relíquias, objetos perdidos no tempo, como o trilho do trem desativado, as casas desgastadas pelo tempo e os objetos pessoais, iluminados pela luz fraca de uma lamparina.

Este pode ser um paralelo interessante entre a narrativa do filme e a falsa imagem que se faz da preservação do patrimônio, quando esta é entendida como a necessidade de manter a história intacta, estática. Algo, por sua vez, da ordem do impossível, já que a ideia de retorno a um estado original é apenas utopia. O que se percebe em algumas cidades históricas no Brasil é um congelamento do tempo ou, mais frequentemente, a patrimonialização do bem histórico, isto é, quando na tentativa de retornar aquela imagem utópica do bem autêntico, se acabam criando cenários ficcionais que simulam o que teria sido a vida naquele lugar em determinado período.

Na contramão deste movimento, propõe-se uma apropriação do espaço urbano considerando seus usos, costumes, hábitos e memórias, mantendo seus vestígios de tradição sem perder de vista as inovações necessárias ao desenvolvimento urbano. Essas múltiplas camadas de tempo, recolhidas em histórias de vida, imagens e sons, fazem presentes os lugares de memória de nossas cidades.

David Lowenthal afirma que para suscitar a agitação da rua, tornando cada canto da cidade num lugar interessante e significativo, onde a vida pode ser triste e alegre, cansativa e emocionante, mas não sem significação e afeto, para além da história e sua fidelidade aos fatos, o passado deveria ser vivido novamente, não apenas extraído da ficção, mas vivido como romance.

Os espaços narrados no filme, assim como aqueles das cidades reais, não são constituídos apenas pela materialidade física de suas edificações, objetos e traçado urbano, mas incluem a paisagem, hábitos, crenças, tradições, costumes e suas memórias, que conferem identidade aos mesmos.

Tradição e memória

“Como mantemos nosso equilíbrio? Tradição! Através de nossas tradições mantivemos nosso equilíbrio por muitos e muitos anos. Temos tradições para tudo: como comer, como nos vestir, como trabalhar [...] se você me perguntar como estas tradições se iniciaram ... eu não sei! Mas é uma tradição! É por nossas tradições cada um de nós sabe quem é, e sabemos o que Deus espera de nós! Sem nossas tradições nossas vidas seriam tão incertas quanto um violinista no telhado” (9).

Um outro filme, um clássico dos anos 1970, define de forma muito clara a relação entre nossas tradições e costumes, e a passagem da memória e da identidade. A fala acima, do personagem Tevye, no filme O Violinista no telhado, é a primeira do filme. Ela dá o tom da trama e introduz o contexto do filme, uma outra cidade fictícia, Anatevka, onde a tradição é guardiã da memória e da identidade daquele povo. Em Jatuomba, as tradições do dia a dia vão determinando a função de cada um naquela pequena sociedade. A narrativa lenta do filme vai nos apresentando a cidade e suas tradições: como é feito o pão, o café, como se fazem as refeições. A história se inicia apresentando as tradições da cidade, em particular, a rotina de Madalena que mantém viva a tradição de fazer o pão e sabe que esse é o seu papel, se reconhece neste lugar. Sua rotina é alterada quando a jovem Rita aparece em sua porta. Essa presença é inicialmente vista com desconfiança e até certo desprezo.

“Já se disse muitas vezes: vivemos na era da memória e o temor ou ameaça de uma ‘perda de memória’ responde, mais que ao apagamento efetivo de algo que deveria ser recordado” (10). Surge aí um conflito, mencionado por Sarlo e Nora (11) e explorado por St. Agostinho, instalado na evocação do passado. Este, quando acessado através de um lugar de memória, como as cidades históricas, será sempre um passado mítico e conflitivo, dado que “o passado já não existe” (12), e a memória pode nos pregar peças históricas, pois “a memória desconfia de uma reconstituição que não ponha em seu centro os direitos da recordação” (13).

“Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão [...], pois, se também aí são futuras, ainda lá não estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam não podem existir senão no presente. Ainda que narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas palas imagens daqueles fatos” (14).

Assim, como nos afirma Santo Agostinho, o passado irá se tornar sempre mais interessante e ajustado ao mito que estamos contando, já que a memória nos conta a história através da interpretação tendenciosa de nossas lembranças. Nossas cidades históricas têm um papel fundamental, são o suporte material destas lembranças míticas. E como nos afirma Lowenthal (15), alguns lugares não precisam ser magnificentes para ser memoráveis, basta que eles o ajudem a acender aquela fagulha. Objetos e espaços fazem desencadear em nós a lembrança de fatos do passado ou de uma pessoa já falecida e essas marcas e memórias podem atribuir identidade a um grupo social.

Essa capacidade de disparar a memória como um gatilho concentrado em um mínimo de matéria é o que faz dos lugares de memória irresistíveis a nós, desmemoriados da modernidade, já que “a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial” (16).

Halbwachs fala da memória coletiva, insistindo que ela está sempre atrelada ao espaço e às experiências compartilhadas de determinado grupo. No caso da cidade fictícia de Jatuomba, a lembrança reaparece quando a personagem da jovem requisita a memória coletiva com sua curiosidade, registrando os lugares por onde os habitantes mantém suas tradições e rituais. A evocação desta memória coletiva se dá a partir do momento em que a viajante começa a suscitar afeto pelos habitantes da cidade e estes lhe retribuem contando suas memórias, como que abrindo a ‘caixa de pandora’, pois a memória afetiva pode ser considerada como uma construção ou como uma ficção de algo já vivido e que está sempre ancorada em bases concretas – ambientes, odores, texturas, cores, sons.

Pois, “não há maneira de pensar espaço significativo desacompanhado de história que o explique [...] Da mesma forma, é impossível imaginar história ou mito não referenciados a espaços reais ou imaginários” (17).

As cidades podem ser ferramentas, que como fagulha acendem, ou melhor dizendo, ativam a memória, histórica ou mítica. A malha urbana, como um livro de história tridimensional, guarda os vestígios dos acontecimentos que mais tarde permitem que a história seja costurada em uma trama única. Assim, quando nasce o desejo de se delinear uma imagem, a memória evoca um passado mítico, conflitivo em muitos pontos, como afirmam Sarlo e St. Agostinho, e por isso, extremamente seletivo.

Jatuomba é uma cidade esquecida, e que quer esquecer. Sem acesso a outras cidades, onde os habitantes vão esquecendo ... até de morrer, como conta Antônio quando questionado pela jovem: “Antônio, aquele painel atrás da igreja, por que vocês não anotam mais quem morre?” Ao que Antônio responde: “Aqui a gente esquece de morrer”. A marca deste congelamento é seu cemitério trancado, impedindo a entrada de visitantes que queiram lembrar. Tudo isto começa a mudar com a chegada da jovem estrangeira. Vazia de memórias e significados. Sem origem e sem destino. Ela se instala na cidade e começa a preencher este vazio, colhendo a memória, hábitos e costumes locais. Começa a deitar raízes e para isso é necessário ‘ler’ a história através de seu suporte material e da história viva: os moradores locais. Isso nos traz a outro ponto da discussão sobre a cidade e a memória: o da necessidade da aceitação da passagem do tempo e da morte para que a rememoração possa se dar.

O gatilho para ativar essas memórias, além da chegada e acolhida da estrangeira, é a sua inserção na comunidade, compartilhando hábitos. Assim, ela passa a ter acesso às memórias a partir do momento em que passa a viver como os cidadãos do vilarejo. Esse momento é marcado no filme quando ela recebe a chave do cemitério e é convidada a permanecer na cidade. Porém, à medida que recebe essa permissão, avisa: ‘Vou virar o lado’. E a partir daí, o tempo parece voltar a andar.

Memória e lugar

O lugar compreende os fenômenos concretos, mas também aqueles intangíveis como os sentimentos, sendo capaz de gerar uma pausa no movimento corrido de nossos dias, como que tornando o tempo visível. Ele é uma totalidade, um fenômeno qualitativo que não se reduz às relações espaciais, incluindo sensações, formas, cores, texturas e afetos compartilhados intersubjetivamente. Para Norberg-Schulz (18), um lugar possui uma identidade própria que lhe confere características específicas e pessoais. O objetivo de arquitetos e urbanistas seria então o de descobrir os significados potenciais presentes no ambiente através da vida vivida no cotidiano das comunidades.

Para o autor, habitar um lugar é incluir necessariamente duas funções psicológicas: a orientação e a identificação com o ambiente. Essa identificação com o ambiente implica que este propicie uma experiência significativa, havendo uma correspondência entre exterior e interior e entre corpo e psique. Estas experiências implicam um conhecimento detalhado sobre o lugar e na constituição de um vínculo afetivo com o mesmo.

Desta forma, na narrativa do filme, a todo instante esse movimento pendular entre o passado e o futuro, a morte e a vida, nos auxiliam para a construção das memórias e da apropriação afetiva deste lugar imaginário.

O projeto de pesquisa no qual este tema foi inserido buscou, através do reconhecimento do espírito do lugar, coletado através da ferramenta do imaginário e utilizando técnicas de inventário de patrimônio cultural, ampliar o sentimento de pertencimento e a preservação do patrimônio cultural na cidade de Maricá, estado do Rio de Janeiro.

Buscou-se, assim, resgatar a memória da cidade através da apropriação e mapeamento de edificações, praças e espaços públicos na área central de Maricá em seus usos cotidianos, permitindo o aprofundamento de conceitos necessários ao reconhecimento e à preservação da cultura, ampliando o sentimento de pertencimento da comunidade e divulgando referências desconhecidas ou talvez esquecidas pela população local.

Jodelet considera que o ambiente construído possui um papel na construção da identidade, à medida que a identidade do lugar se refere ao conjunto de memórias, interpretações, ideias, afetos e experiências em determinada espacialidade. Assim, a identidade do lugar pode ser entendida como uma construção pessoal a partir da relação entre o indivíduo e o meio onde são atribuídos afetos, experiências, memórias, ideias e significados a determinados espaços.

“A questão, pois, é saber em que condições a cidade pode aparecer como um lugar que possa ser definido por seu caráter identificador; um lugar que permita que seus habitantes se reconheçam e se definam por meio dele, que, por seu caráter relacional, permita a leitura da relação que os habitantes mantem entre si, e por seu caráter histórico, possibilite que os habitantes reencontrem os vestígios de antigas implantações, seus sinais de filiação” (19).

Através da apropriação destes espaços da área central do Município de Maricá e da coleta de relatos de moradores mais velhos, a pesquisa vai colhendo estes vestígios do tempo, trazendo narrativas, presentificando esse espírito do lugar numa construção coletiva de identidades e lugares de memória mapeados. A inclusão de estudantes locais visa o estabelecimento de uma cidadania, entendida aqui como o conjunto de direitos e deveres exercidos pelas pessoas que vivem numa cidade, no que se refere ao seu poder e condição de intervir e transformar estes espaços.

Cidade narrada, cidade lembrada

No filme, há dois tipos de narradores, a estrangeira, que registra sua viagem à cidade desconhecida e os idosos conhecedores das tradições e rituais, o que nos permite uma alusão ao texto O Narrador de Walter Benjamin. Além disso, a riqueza da narrativa utilizada está, exatamente, na sua simplicidade. A estrangeira adquire essa “chave” para acessar a memória coletiva da cidade apenas quando começa a viver ao modo de seus habitantes, na arte de fazer pão com Madalena, nos encontros para beber cachaça, na dança.

“Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las” (20).

Na narrativa do filme, as roteiristas introduzem o lugar como se fosse real, como se aquelas pessoas e acontecimentos existissem. Nela são configuradas identidades, numa estratégia discursiva que nos lembra que a memória, assim como a narrativa, é ficcional, mas ancoradas em objetos, percepções e espaços reais.

Os lugares são filmados lentamente, no ritmo dos velhos com seus passos lentos, nos cenários, especialmente aquelas que ocorrem dentro das edificações, sejam elas a casa ou a igreja. O tempo que passou é enfatizado através da pouca luz, closes em fissuras, objetos antigos e descascados, mostrando o desgaste da matéria e a passagem do tempo, ainda que haja essa negação dos habitantes. A simplicidade e a utilização de moradores locais, não atores, no filme –apenas três dos onze idosos são atores profissionais – faz com que o filme demonstre esta imersão na “cidade onde o tempo parou”.

Não por acaso, a ferramenta escolhida para o registro deste lugar foi a fotografia pinhole, onde a relação com o tempo e as imagens produzidas perdem seu estatuto de instantaneidade e de verdade, uma vez que sua forma de captar a luz exige maior tempo de exposição à luz e que as imagens produzidas são mais ficcionais do que reais, apresentando distorções, sombras e ângulos fora do controle do fotógrafo. Assim, a narrativa segue mostrando que a passagem do tempo é algo inexorável, ainda que tentemos preservar tudo, matando a vida e a renovação.

O historiador Michel de Certeau afirma que “[a] recordação não cessa quando não existem mais traços do que é para ser lembrado, mas se reforça a partir desta ausência”. Para ele, “memória é uma espécie de antimuseu: não é localizável [...] a principal característica da memória é que ela vem de outro lugar, está fora de si mesma, movimenta as coisas” (21), e quando a memória se torna fixa ligada a um objeto específico, é sinal de que a memória está em declínio. Com base nesses termos, objetos podem se transformar em inimigos da memória, pois eles a mantêm presa a uma única possibilidade e acabam conduzindo a um processo de esquecimento de outras faces da história.

Desta forma, o filme apresenta uma positivação do novo ao mesmo tempo que um respeito e compartilhamento com o antigo. Como reflete Derrida,

“Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda antecipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não de um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de um outro país, um ser humano, animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou feminino” (22).

A memória como presença/ausência nos remete à ideia de reconhecimento tal como um dado fenomenológico, permanecendo como uma resistência ao apagamento e desaparecimento dos bens que conferem singularidade e significação a determinados lugares. E, desta forma, não se buscou na pesquisa uma verdade ou confrontação de testemunhos, bem como as motivações para tombamento de determinados bens pelo patrimônio, mas sim memórias compreendidas como um “não te esqueças” (23).

Num primeiro momento, quando a jovem apresenta suas fotos à Madalena ela afirma que “não tem ninguém aqui, só coisa velha”. E este costuma ser o discurso do ‘progresso’ quando da demolição de monumentos e sítios históricos, sem que se perceba que sua retirada implica na extração de parte da identidade cultural local.

Porém, na narrativa, aos poucos a jovem percebe o que Norberg-Schulz chamou de “espírito do lugar”, inserindo-se nas atividades e ritmo da cidade e trocando a câmera digital por sua pinhole, num resgate ao que é essencial da experiência, do fenômeno vivido. A partir desse olhar mais afetivo Madalena e os demais habitantes dão permissão para que a jovem participe de seus rituais e tradições diários, num processo de reconhecimento mútuo, após o longo período de adormecimento. Quando Madalena faz à jovem perguntas como “a que lugar você pertence?” e a jovem fica sem palavras, ela compreende este reconhecimento mútuo.

Ao final da narrativa, Madalena e a jovem Rita, fazem pão juntas, numa alusão a este respeito, compartilhamento do tempo e identidade do lugar. Neste momento Madalena diz: “Você tem de sentir o tempo da massa na sua mão”. Afinal, “Pão é como gente, se não respira, endurece”.

Considerações finais

A pós-modernidade trouxe consigo, além da velocidade informacional, uma quebra de padrões e paradigmas tidos como inquestionáveis sob o ponto de vista do racionalismo clássico, com a inclusão do afeto, do acaso, da inconstância e incerteza como parte de estudos científicos. Lyotard (24) utiliza o termo deslegitimação para designar esse retorno ao acaso; às lógicas não-denotativas; à crise dos dispositivos que legitimavam o modernismo e à rediscussão da noção de desordem.

Alguns autores apontam, como decorrência destas características da pós-modernidade, uma perda de identidade, aumento do individualismo, inseguranças e algum grau de desesperança. especialmente àqueles que calcaram sua trajetória profissional e pessoal nas certezas utópicas do modernismo. Isso tenderia a gerar espaços esvaziados de significado e marcados pelas figuras do excesso e do espetáculo. Entretanto, nossa hipótese é a de que seria possível intervir em espaços públicos com a participação ativa das comunidades, privilegiando seu uso como lugares de encontro, brincadeira, ócio e prazer, de forma a suscitar a memória do lugar.

Utilizando a narrativa delicada do filme de Julia Murat, trouxemos a discussão poética do habitar os espaços da cidade e da importância da memória para o reconhecimento de si e para pensarmos a preservação do patrimônio cultural de nossas cidades. Pois, como nos lembra Heidegger, o homem é à medida que habita, de-morando nos lugares que nos tocam. Desta forma, alguns espaços tornam-se lugares a partir do momento que adquirem definição e significado, possibilitando memórias e experiências compartilhadas. Esses lugares seriam capazes de nos afetar, moldar e gerar potência criativa, podendo ser presentificados através de relatos e da percepção de seus usos e costumes cotidianos.

A cidade de Jatuomba inicialmente é apresentada através da rotina de seus habitantes, suas relíquias, objetos perdidos e casas cobertas pela pátina do tempo, mostrando a resistência à sua passagem. Isto nos faz lembrar de Santos (25) em sua crítica à criação de cidades-museu, que não se renovam, mantendo apenas monumentos e relíquias, mas perdendo sua memória. Assim como em Jatuomba, esta relação do passado e do futuro em suas múltiplas camadas de tempo, é uma discussão sempre atual para os pesquisadores da arquitetura e do urbanismo. Ficção e realidade se interpenetram nesta relação sempre delicada entre o preservar e o renovar, abrindo as portas e janelas da memória para compartilhar tradições.

Assim, para que estes lugares de memória continuem existindo é necessário abrir as janelas para que novos ares possam entrar. Uma corrente de aceitação e abertura ao outro, estranho, diferente e estrangeiro. Ventilar os espaços ajuda a massa a crescer, isto é, mantém vivas as bactérias e fungos que transformam elementos inertes como farinha, água e levedura em massa viva, que se expande e cresce. Assim acontece com os lugares, as tradições e a memória, que para crescer e se manter vivos, precisam sempre que a sua história seja lembrada e contada as próximas gerações. Afinal, “pão é como gente, se não respira, endurece”.

notas

NE – Este artigo foi originalmente apresentado no evento V Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – V Enanparq – Arquitetura e Urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios, ocorrido em Salvador entre os dia 13 e 19 de outubro de 2018.

1
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo. Projeto, São Paulo, n. 186, 1986, p. 59-63.

2
Carlos Nelson Ferreira dos Santos foi um arquiteto, urbanista, professor universitário e antropólogo brasileiro.

3
Histórias que só existem quando lembradas. Direção Julia Murat / Roteiro Julia Murat e Maria Clara Escobar. Brasil/Argentina/França, 2011.

4
Considera-se na narrativa do filme a jovem como estrangeira, não por falar outra língua, mas por estar inserida em outra cultura e não compartilhar valores com os cidadãos de Jatuomba.

5
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo, Escuta, 2003. FORTY, Adrian. Introduction. In The Art of Forgetting. New York, Berg, 1999, p. 55.

6
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Iphan, 2002, p. 106.

7
A discussão destes conceitos é parte da pesquisa Memória e lugar: cidadania e identidade através da apropriação do espaço urbano em Maricá, realizado através do Projeto Jovens Talentos com fomento da Faperj com alunos do Curso Técnico de Edificações do IFF Maricá em parceria com a UFF.

8
BOYER, M. Chirstine. Dreaming the Rational City: The Myth of American City Planning 1890-1945. Cambridge, The MIT Press, 1983.

9
Um violinista no telhado. Direção Norman Jewison. Roteiro Joseph Stein. USA, 1971.

10
SARLO, Beatriz. Tiempo passado: cultura de la memória y giro subjetivo: una discussion. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2005.

11
NORA, Pierre (Org.). Rethinking the French past: Realms of Memory. Vol. 1: Conflicts and Divisions. New York, Columbia University Press, 1993, p. 22

12
AGOSTINHO, Santo. Bispo de Hipona. Confissões. Coleção Livros que mudaram o mundo, vol. 12. São Paulo, Folha de São Paulo, 2010, p. 178-180.

13
SARLO, Beatriz. Op. cit., p. 9.

14
AGOSTINHO, Santo. Op. cit., p. 178-180.

15
LOWENTHAL, David. The Past is a foreign country. Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 42.

16
NORA, Pierre (Org.) Rethinking the French past: Realms of Memory. Vol. 1: Conflicts and Divisions. New York, Columbia University Press, 1993, p. 22.

17
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Op. cit., p. 59.

18
NORBERG-SCHULZ, Christian. Fenômeno do Lugar. In NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica (1965-1995). São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 443-461.

19
JODELET, Denise. A cidade e a memória. In DEL RIO; Vicente; DUARTE, Cristiane Rose; RHEINGANTZ, Paulo Afonso. Projeto do lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria/Proarq, 2002, p. 33.

20
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 9.

21
CERTEAU, Michel de. Apud FORTY, Adrian. Op. cit., p. 7.

22
DERRIDA, Jacques. Op. cit. FORTY, Adian. Introduction (op. cit.).

23
RICOEUR, Paul. A história, a memória, o esquecimento. Campinas, Editora da Unicamp, 2007.

24
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro, José Olympio, 2009.

25
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Op. cit., p. 59-63.

sobre as autoras

Ana Claudia Nunes Alves é arquiteta e urbanista (UFF, 1996), mestre (PPGEC UFF, 2001), doutoranda em arquitetura e urbanismo (PPGAU UFF) e professora do EBTT Arquitetura do Instituto Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Pesquisas Aplicadas à Arquitetura e Construção Civil do IFF e do Grupo de Pesquisa Cidade, Processos de Urbanização e Ambiente da UFF.

Daniella Martins Costa é Arquiteta e urbanista (UFRJ, 2005), mestre (Proarq UFRJ, 2012), doutora em arquitetura com ênfase em Preservação do Patrimônio Cultural (PPGAU UFF, 2017). Professora adjunta do Departamento de urbanismo e meio ambiente (DPUR FAU UFRJ). Membro do Lana – laboratório de narrativas em arquitetura do Proarq UFRJ e líder do grupo memória, cultura e arquitetura na cidade, com pesquisas na área do patrimônio cultural.

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Reflexões sobre a espacialidade dos espectros yanomami

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251.07 paisagem

Análise visual da paisagem da BR-101 em Santa Catarina

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