Pesquisas recentes, como será indicado adiante, têm abordado o caráter bioclimático de parte da produção arquitetônica do Movimento Moderno em clima tropical. Resultados provenientes de avaliações qualitativas e de simulações computacionais indicam um bom desempenho ambiental dessas edificações. Ao contrário de muitas obras contemporâneas que dependem exclusivamente de sistemas artificiais de climatização e iluminação, esses edifícios modernos “dialogam” com o contexto ambiental, pois dispõem de dispositivos arquitetônicos e tecnologias construtivas corretamente aplicadas ao contexto tropical: proteção solar das fachadas, ventilação cruzada, pilotis e espaços de transição, entre outros.
No entanto, não pode ser negligenciado que nas cidades, ao longo do tempo, as condições climáticas e o território foram impactados pela ação antrópica, em maior ou menor grau (3). Fato que deve ser considerado na análise do comportamento ambiental de uma edificação modernista, pois, a sua inerente estratégia bioclimática poderia não mais atender plenamente a um desempenho ao longo do ano, apenas em partes dele. Caso em que caberia o emprego complementar de alguma tecnologia recente que contribua para a operação do edifício. Mas tendo em mente que a ventilação natural é sempre um vetor importante para a qualidade no ambiente construído.
Este ponto focal na ventilação ficou ressaltado para as edificações, bem como para as cidades, quando surgiu a pandemia do vírus covid-19, e trouxe novos desafios. No caso de espaços interiores de uso coletivo, identificou-se o risco de contaminação interpessoal do vírus pela via aérea, tendo papel importante as condições de ventilação natural do ambiente. Por conseguinte, novas oportunidades se apresentam com relação a este recurso para a mitigação da contaminação aérea relacionada com a dinâmica das correntes de ar, taxas de ocupação e o leiaute das instalações.
Nesse sentido, a identificação do valor bioclimático em edifícios modernos poderá apontar exemplos de estratégias passivas importantes para a prática arquitetônica atual. Apresentam-se neste artigo alguns estudos que abordam as características bioclimáticas da arquitetura moderna carioca, entre as décadas de 1930 e 1960, como também as suas peculiaridades relacionadas em ações de preservação.
Deste modo, procura-se discorrer sobre a possibilidade de tratar as teorias da preservação em termos evolutivos para uma adaptação às especificidades da arquitetura moderna, destacando-se a questão da autenticidade e a teoria dos valores de Alois Riegl (4). No campo da preservação do patrimônio tem sido observado, nas últimas décadas, que o foco de estudo deixa de estar no objeto arquitetônico em si e desloca-se para uma reflexão sobre os valores culturais percebidos de uma coletividade sobre ele (5). Isto é pertinente quando se trata de salvaguardar edificações modernas de valor cultural, pois permite flexibilizar, melhor fundamentar as intervenções necessárias e contribuir para a manutenção do seu valor bioclimático.
Arquitetura moderna bioclimática
Destaca-se aqui algumas pesquisas realizadas sobre o desempenho ambiental de edifícios de arquitetura moderna em contexto climático tropical construídos entre as décadas de 1930 e 1960 na cidade do Rio de Janeiro. Além de suas qualidades estéticas e construtivas, esses edifícios demonstram uma resposta adequada às condições climáticas do entorno através do uso de dispositivos de sombreamento, aproveitamento da luz do dia e da ventilação natural (6).
Eliane Barbosa e Maria Porto (7) relacionam algumas soluções de fachadas elaboradas por arquitetos consagrados do movimento moderno, e enfatizam a integração, a funcionalidade e a estética. São apresentadas obras selecionadas de Lucio Costa, Marcelo e Milton Roberto, Jorge Machado Moreira e Oscar Niemeyer para o Rio de Janeiro. O destaque segue para os respectivos elementos utilizados para sombreamento: o brise-soleil (legado de Le Corbusier), o cobogó, a marquise e o muxarábi (ou treliça). Com estes recursos, muitos dos quais adaptados da arquitetura colonial, foi possível adotar grandes superfícies de vidro mesmo em fachadas insoladas, permitir a ventilação natural e garantir a privacidade interior.
Oscar Corbella e Simon Yannas (8) analisam o desempenho ambiental de algumas edificações, como por exemplo o Palácio Gustavo Capanema e o Museu de Arte Moderna – MAM.
O Palácio Capanema é um ícone reconhecido como a primeira obra do modernismo brasileiro a aplicar os cinco pontos (9) da nova arquitetura difundida por Le Corbusier, projetado por Lucio Costa e equipe. Constitui-se em dois volumes: um horizontal, de apenas um andar sobre pilotis e orientado a Norte-Sul; e o outro vertical, com 14 andares, de eixo perpendicular ao primeiro bloco. No volume vertical, as fachadas Leste e Oeste são cegas; a fachada Sul, menos insolada, é totalmente envidraçada; e a Norte é protegida com brises horizontais móveis em fibrocimento, apoiados em lâminas verticais fixas de concreto. O prédio foi concebido para ser ventilado naturalmente – salvo algumas salas específicas, e o controle da radiação solar incidente por brises.
O MAM (1954-1968) também é ressaltado pelo bom projeto de iluminação natural, de proteção solar e de integração com a paisagem. O bloco principal de exposições, predominantemente horizontal, é orientado no sentido Leste-Oeste. As fachadas Leste e Oeste são fechadas, enquanto as fachadas Norte e Sul compõem-se de grandes superfícies de vidro do tipo polaroid. O objetivo era valorizar as obras de arte com a qualidade da luz diurna: nos trechos de menor pé direito a iluminação natural se dá pela lateral da fachada e, nas áreas de pé direito duplo, a iluminação zenital ocorre através de sheds e lanternins. O estudo aponta um excelente comportamento do edifício sob o ponto de vista térmico e lumínico.
Christine Lucas, Maria Santos e Leopoldo Bastos (10) tratam das estratégias bioclimáticas de três edifícios comerciais de arquitetura moderna, localizados no centro da cidade, relacionando-as ao potencial para eficiência energética. O edifício Aliança (1953-1957), projetado por Lucio Costa; o edifício do Instituto de Resseguros do Brasil – IRB (1936-1941), pelos irmãos Roberto; e o Edifício Boavista (1948), autoria de Oscar Niemeyer.
Nos três edifícios analisados, as fachadas com maior área envidraçada são orientadas ao quadrante Sul, e permitem vários tipos de abertura das esquadrias com controle pelo usuário. É a orientação mais favorável, com menor insolação anual, apesar da incidência solar direta nas manhãs de verão. As demais fachadas também têm amplas aberturas controláveis e são conjugadas com dispositivos de proteção solar, tais como brises, treliças e outros elementos de sombreamento vertical e horizontal. A solução projetual, com planta livre, e a possibilidade de aberturas em todas as fachadas, permitem a ventilação cruzada nos espaços.
Ainda na mesma pesquisa, relativamente à análise do potencial de eficiência energética, foi utilizado o método prescritivo do Procel Edifica, que apresenta limitação com relação às condições variadas de ventilação nos aposentos. Os autores mencionam que, mesmo assim, os desempenhos verificados foram satisfatórios, devido à orientação solar adequada, à utilização de dispositivos de proteção das fachadas e ao uso judicioso do vidro, levando-se em conta que foram concebidos em uma época anterior à conscientização sobre a necessidade de economia de energia.
Em outro estudo referente à arquitetura moderna residencial, Vitória Cunha e Leopoldo Bastos (11) realizam uma análise sobre as soluções bioclimáticas adotadas e as suas implicações sobre o conforto higrotérmico e a eficiência energética de um apartamento do edifício multifamiliar Nova Cintra (1948), concebido por Lucio Costa para o conjunto residencial do Parque Guinle, no Bairro Laranjeiras. O partido adotado na construção é alongado e pouco profundo, no qual cada unidade dispõe de ventilação cruzada. As fachadas Leste e Oeste, com insolação crítica, praticamente não têm aberturas. A fachada Sul, com menos insolação, é composta por painéis de vidros comuns alternados com outros opacos. Por fim, a fachada Norte dispõe de varandas protegidas por brises, treliças e cobogós. Além de formar um interessante jogo compositivo, esses elementos garantem permeabilidade aos ventos e aliam grandes vãos com a proteção solar.
Estes foram alguns exemplos de boas práticas projetuais relacionadas com o bioclimatismo, executadas em edifícios de arquitetura moderna da escola carioca. Espera-se que o reconhecimento dessas características possa trazer interessantes contribuições ao debate da preservação, sob o viés da sustentabilidade.
Especificidades na preservação da arquitetura moderna
A preservação de edifícios modernos de valor cultural implica em certas particularidades relativamente a obras de outros tempos. Fernando Moreira (12), ao sintetizar Susan MacDonald e Theodore Prudon, aponta alguns desafios, dentre os quais: a funcionalidade, os materiais, os sistemas de infraestrutura, a manutenção, a pátina e o reconhecimento público.
A obsolescência da funcionalidade surge assim que muda o uso de um determinado espaço. Programas excessivamente especializados tornam-se vulneráveis neste aspecto; por outro lado, a planta livre e a fachada livre facilitam adaptações a novas demandas de utilização. Além disso, há a questão da constante evolução das normas construtivas e legislações, que podem exigir adaptação das edificações quanto à acessibilidade, segurança e eficiência energética.
No caso de prédios que ainda não passaram por alguma reabilitação, a questão da materialidade torna-se importante, pelos problemas de degradação em partes estruturais, de materiais de revestimento e em elementos da envoltória. Considera-se que além do ciclo de vida normal dos componentes, constatam-se falhas decorrentes da concepção ou execução do projeto, pois faziam “parte do risco de se propor algo novo” (13). Muitos produtos e materiais industrializados eram novos no mercado, bem como suas formas de emprego ainda não dominadas. A necessária reposição desses produtos, devido a desgaste pelo tempo, foi dificultada pela não continuidade da fabricação. O desempenho de materiais largamente utilizados na época – o concreto, por exemplo – foi superestimado quanto aos quesitos de resistência e durabilidade, o que implicou numa maior necessidade de manutenção.
A manutenção preventiva e regular, aliás, é uma prática pouco utilizada na maioria das administrações prediais. O comum é esperar que as deteriorações se tornem evidentes para então se proceder as inevitáveis intervenções, que então já serão mais complexas e custosas.
Um triste exemplo pode se verificar no célebre edifício Marquês do Herval (1955), da autoria dos irmãos Roberto. Uma engenhosa composição para a fachada Oeste consistia em parapeitos inclinados combinados com brises articulados. Estes, além de proteção e controle da insolação, permitiam na fachada um efeito de “movimento” responsável por uma qualidade identitária do projeto. Conforme relato, um “verdadeiro atentado” (14) apenas dez anos após a inauguração, os brises e a respectiva estrutura foram retirados por decisão dos proprietários, para evitar a manutenção.
Os sistemas de infraestruturas, por sua vez, tendem a se degradar mais rápido do que os demais materiais compositivos de um prédio, exigindo a sua completa substituição. Essas atualizações são imprescindíveis para o edifício se manter em uso, contudo, a introdução de novos sistemas pode ser incompatível com a configuração original do bem. Fernando Moreira (15) sugere que, sempre quando possível, as novas instalações sejam implementadas junto aos sistemas antigos, os quais devem ser mantidos como um registro histórico do edifício.
Macdonald (16) adverte que os problemas técnicos se constituem nos principais desafios à conservação dos edifícios e estruturas do século 20 e, consequentemente, de onde surgem os maiores gastos. Adequar a “agenda sustentável” para além dos padrões dos “edifícios verdes” e seus alvos mensuráveis (eficiência energética, economia de recursos etc.) é pertinente, pois, uma abordagem mais restritiva ameaça a permanência e conservação dos edifícios modernos. A autora assim indica que deve ser demonstrado o papel da conservação do patrimônio dentro de um contexto sustentável, e analisar o impacto desses edifícios a longo prazo no meio ambiente.
A pátina, que consiste no desgaste dos materiais frente a passagem do tempo, contribui para atribuição do valor de antiguidade à uma obra. A permanência deste valor requer uma postura de mínima intervenção, assegurando a sua longevidade sem permitir uma destruição bruta. A rejeição da pátina pode levar a substituição de elementos significativos e superfícies inteiras, levando à perda de características e valores patrimoniais. Trata-se de um conceito ainda difícil de ser assimilado pela sociedade, pois contrasta com a crença milenar e enraizada da superioridade do novo pelo velho, da eterna luta contra a dissolução e a morte (17).
“As evidências da idade não são compatíveis com a maioria dos edifícios da arquitetura moderna quando se considera sua intenção pela busca de inovação, pela integralidade e a luta contra as forças da natureza, devendo-se fazer a manutenção constante desses edifícios. Esses aspectos estão intimamente vinculados à intenção do projeto e não apenas à sua materialidade” (18).
Diante de todas as questões anteriores, talvez a mais crucial seja relativa à dificuldade do reconhecimento público do patrimônio moderno, que ainda não atingiu o mesmo nível de aceitação da arquitetura de períodos anteriores: o grande número de exemplares existentes dificulta a seleção do que deve ser preservado, a relativa proximidade temporal obstaculiza a atribuição de valor (19). Assim, prolonga-se a crença consolidada da “ideia de patrimônio como coisa do passado remoto e não daquilo que pode vir a ser, ou não, o passado” (20).
Essa proximidade histórica, segundo Claudia Carvalho (21), contribui para que as ações de preservação privilegiem mais os aspectos estéticos e formais da arquitetura moderna do que o valor histórico, ao negligenciar a manutenção da autenticidade material. Além disso, a autora destaca que, conforme as regras de mercado, essa obra será valorizada não como uma manifestação cultural, mas como um objeto de consumo pela sua funcionalidade.
Caminhos da preservação da arquitetura moderna e a questão da autenticidade
Muitos teóricos e estudiosos do campo da preservação do patrimônio defendem que a arquitetura moderna não precisa de um arcabouço teórico diferente do aplicado à arquitetura de outros tempos. Carvalho (22) relata que, a partir do final do século 20, as discussões começam a relacionar a preservação com o desenvolvimento sustentável, e buscam reconhecer as diversidades de valores culturais e as distintas realidades econômicas que condicionam as políticas de preservação. Entretanto, diante das especificidades da arquitetura moderna, tais como as expostas anteriormente, é reconhecido que muitos dos princípios correntes de preservação poderiam se tornar problemáticos na abordagem de alguns casos (23).
MacDonald (24) pontua a coexistência de duas correntes: a “tradicional”, que advoga a prática de abordagens já correntes, adaptadas a critérios específicos; e a postura adotada pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Docomomo (25), que defende o predomínio da autenticidade do design sobre a autenticidade material e sugere uma nova interpretação filosófica sempre onde se mostrar necessário. A referida organização multidisciplinar, criada em 1988, se propõe a salvaguardar o patrimônio moderno edificado, fomentar o debate e difundir a troca de informações em tecnologias da conservação, em história e em educação patrimonial.
“O foco na significância arquitetônica e a introdução da qualidade do projeto como critérios adicionais para avaliar a significância em relação aos princípios do modernismo e do estoque geral construído, ajuda a explicar a importância da intenção do projeto no debate sobre autenticidade e integridade” (26).
A compreensão do conceito de autenticidade, segundo Jaime Lima (27), “é a base da doutrina moderna do campo patrimonial, sendo palavra-chave dos documentos (convenções e cartas internacionais) relativos à salvaguarda”. Na Carta de Veneza (1964), documento essencial para o Restauro e a Conservação, o termo aparece no preâmbulo, embora sem maiores definições, e indica ser um dever humanitário preservar as obras monumentais de cada povo às gerações futuras, transmitindo-as na “plenitude de sua autenticidade” (28). No corpo do texto, relativamente a restauração, diz ser o seu objetivo “conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos” (29).
Trinta anos após a publicação da Carta de Veneza, é elaborado o Documento de Nara sobre a autenticidade, surgido pela necessidade do debate e aprofundamento sobre o conceito. Marinho (30) explica que o documento assinala uma intrínseca relação entre os valores do patrimônio e a noção de autenticidade, pois “a conservação do patrimônio histórico, sob todas as suas formas e todas as épocas, encontra sua justificativa nos valores que atribuímos a esse patrimônio”. Conforme cita o autor, em 1997 o Docomomo produziu um relatório ao Icomos (31) em que faz recomendações sobre o patrimônio do Movimento Moderno e a Lista do Patrimônio Mundial, aponta as suas particularidades (como o fato de estar em uso e “vivo”) e, baseado em debates anteriores, lista quatro aspectos relevantes sobre autenticidade relativos ao Movimento: “(i) autenticidade da ideia, o conceito do projeto (design concept) que nasce do programa; (ii) autenticidade da forma, organização espacial e aparência; (iii) autenticidade da construção e detalhes e (iv) a autenticidade dos materiais” (32).
Walter Benjamin (33) apresenta uma reflexão que pode contribuir para o debate, a qual versa sobre a influência das então recentes novas técnicas – fotografia, cinema, rádio etc. – nas artes, e revela como o aspecto reprodutível desses novos canais implicou em um abalo da tradição. A existência única de uma obra é substituída por uma existência massiva, permitindo à reprodução ir ao encontro do espectador.
“A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que nela é originalmente transmissível, desde a sua duração material até o seu testemunho histórico. Como esse testemunho está fundado sobre a duração material, no caso da reprodução, na qual esta última tornou-se inacessível ao homem, também o primeiro – o testemunho histórico da coisa – torna-se instável. E somente isso. Mas aquilo que desse modo se desestabiliza é a autoridade da coisa, seu peso tradicional” (34).
Diante desta “ideia de abalo do ‘testemunho histórico’”, Márcio Seligmann-Silva (35) compreende que não cabe mais falar em autenticidade diante da obra/reprodução, e acrescenta que a própria fotografia tem servido como um dos modelos de testemunho histórico nas últimas décadas.
No caso da arquitetura, à sua apreensão óptica, associa-se o contributo da fotografia arquitetônica profissional que, conforme denota Macdonald (36), desenvolve-se paralelamente ao fenômeno da globalização do modernismo. A autora destaca a importância da fotografia na ampla divulgação da arquitetura moderna e na sua consequente estetização.
Ao mesmo tempo em que a fotografia atua como importante documento para os historiadores do período, é também responsável pela divulgação de uma imagem arquitetônica “nova e imaculada”, dificultando a aceitação da passagem do tempo. Caberia então perguntar se a reprodutibilidade da fotografia estaria a contribuir para a substituição do valor histórico da arquitetura moderna e, assim, a minimizar o valor da autenticidade material do edifício.
Teoria dos valores de Alois Riegl
O uso de uma metodologia centrada nos valores para o reconhecimento do interesse patrimonial é especialmente relevante para o caso da arquitetura moderna, uma vez que esta arquitetura incorporava mudanças tecnológicas e sociais além das questões estéticas. Considerar outros valores além da dúplice polaridade estética e histórica permite o reconhecimento dessas características de inovação (37).
O valor atribuído a um monumento não se encontra diretamente nele, posto que o objeto é apenas o “receptor do juízo de valor que a sociedade ou indivíduos lhe atribuem em cada momento histórico” (38), sendo tais critérios de valoração transitórios e subjetivos.
A contribuição inovadora de Alois Riegl consiste na apreensão do passado como não estático, e sim como um processo evolutivo histórico. Considera ainda o direito à existência de qualquer corrente artística, mesmo as não clássicas. Procede à análise e ordenação de diferentes valores, relaciona-os entre si e aponta conflitos e confluências, rejeitando que haja um valor intrínseco e absoluto para qualquer monumento. Estabelece três categorias de valores da memória: o valor de antiguidade, que concerne à percepção do tempo transcorrido, ao seu aspecto vetusto (a pátina, por exemplo); o valor histórico, no qual é exaltado uma determinada época ou um dado cultural; e o valor volível de memória, referente aos monumentos intencionais de comemoração.
Igualmente aos valores de memória, reconhece os valores de atualidade:
“Desde logo a tendência de considerar o monumento não como tal, mas como uma estrutura moderna, exigindo que o monumento antigo tenha a aparência externa de toda a obra humana em estado de formação [...]. Porém, cedo ou tarde serão atingidos limites intransponíveis, além dos quais o valor da atualidade não poderá existir senão impondo-se contra o culto de antiguidade” (39).
O valor de atualidade compõem-se das categorias de valor de uso e valor de arte. Para o valor utilitário, é importante que o monumento atenda às necessidades materiais e práticas dos habitantes ou usuários. Sob uma visão exclusiva deste conceito de uso, Riegl constata que pouco importa a forma de conservação de um objeto, desde que não se comprometa a sua existência.
O valor de arte, por sua vez, abarca outros dois valores: o valor de novidade (ou de atualidade), que diz respeito à expectativa de que um monumento tenha a aparência nova, de uma construção recém-criada, qualidade facilmente apreciada pelas massas; e o valor de arte relativo, referindo-se à capacidade do monumento antigo de sensibilizar o indivíduo moderno em sua Kunstwollen, ou o “querer artístico”, mesmo que esses valores estejam relacionados à sua própria época e suas respectivas crenças, sendo distintas das atuais.
Os valores assinalados por Alois Riegl, especialmente os valores de atualidade, abriram caminho para o desenvolvimento de metodologias mais flexíveis e a inclusão de aspectos imateriais na preservação do patrimônio. No caso do Movimento Moderno, traduzem-se nos seus próprios ideais difundidos nas características da arquitetura representativa do século 20.
O valor bioclimático
O bioclimatismo consiste em uma abordagem integral da arquitetura e não considera apenas os aspectos ambientais, mas também se relaciona com a história e a cultura de um lugar. Procura aproveitar o máximo dos recursos naturais, como a orientação solar, a iluminação e a ventilação natural dos ambientes, a vegetação e os materiais construtivos locais.
Marta Romero (40) define a concepção bioclimática como uma “concepção sensorial, próxima de uma arquitetura objeto de prazer dos sentidos, onde a água, a luz, a cor, o som e os aromas são elementos que ordenam o espaço como estímulos dimensionais”. A arquitetura vernácula apresenta bons exemplos desta concepção, na qual os povos se adaptaram ao seu lugar de origem e utilizaram conhecimentos tradicionais da natureza.
A Modernidade no Brasil, antes de uma efetiva industrialização/globalização, se viu influenciada pelas questões locais: Lucio Costa assumiu a sua inspiração na arquitetura colonial brasileira, como forma “de aprender as boas lições que ela nos dá de simplicidade perfeita, adaptação ao meio e à função, e consequente beleza” (41). O ornamento não fazia parte do escopo projetual desta corrente, porém há um gesto de “compensação” através da expressão da materialidade e pela exploração de elementos vernaculares utilizados no objeto arquitetônico moderno.
Pilotis, extensos panos de vidro, brises, cobogós, treliças e marquises, entre outros, predominaram na expressão da arquitetura moderna brasileira e sedimentaram a sua identidade. Mas seu uso não foi gratuito: o mote racional era prover no espaço edificado a integração, o conforto e, consequentemente, a “beleza”. A lógica projetual de diversos edifícios modernos se aproxima dos ideais bioclimáticos mesmo antes deste conceito se difundir e compor a atual agenda da sustentabilidade.
Conforme as recomendações do relatório do Docomomo de 1997, a autenticidade de ideia ou, em outras palavras, a intenção de projeto, é um valor a ser considerado na preservação da arquitetura moderna. A espacialidade gerada requer a compreensão do seu interagir com a atividade humana, podendo influenciar em seu comportamento e no bem estar.
“Assim, no caso da arquitetura moderna, para se preservar a espacialidade como parte da intenção do projeto, deve ser considerada não apenas a autenticidade dos materiais, mas também a autenticidade da forma, da organização espacial e aparência, e em alguns casos também a autenticidade da construção e dos detalhes, quando estes reforçam a relação entre os materiais e as pessoas” (42).
O desempenho ambiental depende da materialidade e/ou espacialidade. Preservar a transparência, característica notável em muitos casos, é essencial para a captação de iluminação natural além da integração interior-exterior. A compartimentação excessiva gerada por modificações de leiautes pode prejudicar a ventilação natural nos ambientes. A substituição de esquadrias originais por modelos que diferem no seu modo de funcionamento, ou até mesmo a sua vedação, pode afetar da mesma maneira. Fechamento de varandas e cobogós com vidros, retirada de elementos de sombreamento ou substituição dos revestimentos originais por outros com diferentes propriedades termo acústicas influenciam no desempenho resultante, e assim gerar ofuscamento, aumento da temperatura interior, aumento de ruídos e menor renovação de ar nos espaços.
O valor bioclimático mostra-se coerente com a noção de autenticidade de ideia e de conceito de projeto. Representa mais do que a materialidade dos componentes que a manifestam, englobando os ideais de inovação técnica e estética – seja pela utilização de novos materiais ou pela releitura de elementos tradicionais – e a busca por melhorias sociais, inerentes ao Movimento Moderno.
Sob o ponto de vista da teoria dos valores de Riegl, o valor bioclimático na arquitetura moderna poderia se vincular ao significado histórico, em virtude de corresponder às características de inovação do período, quanto ao valor de atualidade, e especificamente ao valor utilitário. Estes valores estabelecidos a partir da capacidade dessa arquitetura em proporcionar condições de conforto aos usuários, por meio de sistemas passivos, contribui para a economia de energia e a sustentabilidade em geral, jamais perdendo a relevância.
Conclusões
Muitas obras da arquitetura moderna são admiradas por seu aspecto formal e materialidade, ou ainda por seu significado histórico, tendo apenas estas características reconhecidas. Mas é preciso ir além e vislumbrar os atributos projetuais que conferem qualidade ao ambiente construído, estimulam vivências sociais, bem-estar físico e psicológico e celebram a criatividade de seus autores, juntamente com a consciência ambiental.
Características bioclimáticas nos edifícios agregam qualidade de vida às atividades humanas, e não devem ser desperdiçadas. Não se propõe, contudo, abdicar das mais recentes tecnologias necessárias e desejáveis para o dia a dia. Deve-se buscar soluções de compromisso entre a permanência das características de condicionamento passivo e a implantação de sistemas mecânicos mais eficientes e, sobretudo, possibilitar ao usuário de optar pela solução de acordo com a sua conveniência diária.
Muitos paradigmas estão em mudança. É preciso dar um passo atrás e reconhecer a importância das estratégias passivas de conforto ambiental na concepção de espaços saudáveis, utilizando-se favoravelmente as forças da natureza. A situação de pandemia leva ao questionamento de uma crescente dependência das máquinas, e olhar o passado pode ser uma oportunidade para relembrar preciosas lições.
notas
1
ROMERO, Marta. Estratégias Bioclimáticas de Reabilitação Ambiental Adaptadas ao Projeto. In ROMERO, Marta; FERNANDES, Julia (Org.). Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística – Registro do Curso de Especialização Reabilita. 2ª edição. Brasília, FAU UNB, 2015, p. 7.
2
SCHMID, Aloísio Leoni. A ideia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído. Curitiba, Pacto Ambiental, 2005.
3
RIBEIRO, Antonio Giacomini. As escalas do clima. Boletim de Geografia Teorética, vol. 23, n. 45-46, 1993, p. 288-294.
4
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos – a sua essência e a sua origem. São Paulo, Perspectiva, 2014.
5
MARINHO, Silvino. Os valores do patrimômio cultural e a preservação da arquitetura moderna: o caso dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Proarq UFRJ, 2018.
6
LUCAS, Christine; SANTOS, Maria; BASTOS, Leopoldo. Estratégias Bioclimáticas e Eficiência Energética em Edifícios Comerciais Modernos do Rio de Janeiro. Anais da II Conferência Internacional de Arquitetura e Cidade e X Coletânea Arqurb, vol. I, Vila Velha, Sedes/UVV, 2019, p. 419-434.
7
BARBOSA, Eliane; PORTO, Maria. Arquitetura Moderna – permeabilidade visual através de soluções de fachada. Anais do VIII Encontro Nacional de Conforto no Ambiente Construído – ENCAC – IV Encontro Latino Americano de Conforto no Ambiente Construído – ELACAC, Maceió, 2005, p. 102-111.
8
CORBELLA, Oscar; YANNAS, Simon. Em busca de uma arquitetura sustentável para os trópicos: conforto ambiental. 2ª edição. Rio de Janeiro, Revan, 2009.
9
Planta livre, fachada livre, pilotis, janelas em fita e terraço-jardim.
10
LUCAS, Christine; SANTOS, Maria; BASTOS, Leopoldo. Op. cit.
11
CUNHA, Vitória; BASTOS, Leopoldo. Avaliação bioclimática de edifício moderno: o caso do edifício Nova Cintra, Parque Guinle, Rio de Janeiro. Anais do XIII Seminário DO.CO.MO.MO, Salvador, 2019.
12
MOREIRA, Fernando. Os desafios postos pela conservação da arquitetura moderna. Revista CPC, n. 11, 2011, p. 152-187.
13
Idem, ibidem, p. 170.
14
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 79.
15
MOREIRA, Fernando. Op. cit.
16
MACDONALD, Susan. Materiality, monumentality and modernism: continuing challenges in conserving twentieth-century places. From an address given at the Unloved Moderns – Conference, Sydney, 2009.
17
RIEGL, Alois. Op. cit.
18
MARINHO, Silvino. Op. cit., p. 84.
19
MOREIRA, Fernando. Op. cit.
20
LIMA, Jaime. Tem que tombar? Patrimônio moderno e forma alternativa de conservação. Tese de doutorado. Brasília, FAU UnB, 2017, p. 14.
21
CARVALHO, Claudia. Preservação da arquitetura moderna: edifícios de escritórios construídos no Rio de Janeiro entre 1930 e 1960. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2005.
22
Idem, ibidem.
23
ALLAN, John. The conservation in modern buildings. E MILLS (Org.). Building maintence and preservation: a guide to design and management. Oxford, Oxford University Press, 1994, p. 140-180. Apud CARVALHO, Claudia. Op. cit.
24
MACDONALD, Susan. Op. cit.
25
Comitê Internacional para a documentação e preservação de edifícios, sítios e unidades de vizinhança do Movimento Moderno – Docomomo.
26
MACDONALD, Susan. Op. cit., p. 7. Tradução dos autores.
27
LIMA, Jaime. Op. cit., p. 83.
28
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Cadernos de Documentos n. 3 – Cartas Patrimoniais. Brasília, Iphan, 1995, p. 109.
29
Idem, ibidem, p. 110.
30
MARINHO, Silvino. Op. cit., p. 20.
31
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos.
32
DOCOMOMO [1997]. Apud MARINHO, Silvino. Op. cit., p. 28.
33
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, L&M, 2013.
34
Idem, ibidem, p. 55.
35
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Prefácio. In BENJAMIN, Walter (Org.). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, L&M, 2013, p. 31.
36
MACDONALD, Susan. Op. cit.
37
MARINHO, Silvino. Op. cit.
38
LIMA, Jaime. Op. cit., p. 88.
39
RIEGL, Alois. Op. cit., p. 65.
40
ROMERO. op. cit. p. 402.
41
SANTOS, Paulo F. Quatro Séculos de Arquitetura. Valença : Valença, 1977. p. 116.
42
MARINHO, Silvino. Op. cit., p. 81.
sobre os autores
Christine Pinto Lucas é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (2017) e doutoranda pelo Proarq UFRJ desde 2018, com bolsa CNPq.
Leopoldo Eurico Gonçalves Bastos é engenheiro pela EE UFF (1967), mestre (1969) e doutor (1975) pela Coppe UFRJ. Pós-doutor pela LASS CNRS (1977) e professor titular aposentado pela UFRJ. Docente atual dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura Proarq FAU UFRJ e Arquitetura e Cidade da Universidade Vila Velha. Recebeu o Prêmio Antonio-Hauiss (2015) por orientação de tese em arquitetura.