Inspirado nas teorias termodinâmicas de Nicolas Léonard Sadi Carnot (1), Mauro Almeida afirma que o movimento centro-periferia do mundo ocidental é um movimento entrópico porque “transforma energia rica em diversidade em energia com baixa diversidade” (2). Isso porque, segundo Almeida, “o centro formado pelo modo de produção capitalista se alimenta necessariamente de uma periferia constituída por inúmeros regimes não-capitalistas – relação essa de incorporação predatória porque destrói aquilo de que se alimenta como condição de sua vitalidade” (3). A rigor, isso significa que, sob o modelo de expansão capitalista, existe uma estreita relação entre destruição da diversidade social (diferentes modos de o humano viver) e da biodiversidade (diferentes modos de vida biológica), bem como, entre devastação da diversidade e centralidade. Como sintetizou Marco Antonio Valentim, a neguentropia (4) do ecossistema terrestre é devorada pelos agentes do Antropoceno (5): “‘Plantas, animais e escravos humanos’ são literalmente consumidos ‘para aumentar a energia disponível para classes dominantes e sustentar cidades e impérios’” (6).
Contrariamente ao sistema cêntrico ocidental, Almeida (7) propõe o termo “sociodiversidade” para se referir aos “exemplos de modos alternativos de vida social oferecidos pela diversidade de povos indígenas, de povos afrodescendentes, de povos mestiços-camponeses”. Esses exemplos apontam para sistemas de “reservas de diferença” por meio do uso localizado da floresta em pé, ao invés do movimento de matéria morta da periferia para o centro. Em outros termos, enquanto a organização das sociedades ocidentais proporciona a devastação da diferença, outras organizações não-ocidentais mantêm inalterada a sócio-biodiversidade.
Com o objetivo de entender no que consistem essas outras organizações, analiso o conceito yanomami de urihi. “Mundo todo” ou “terra-floresta” são as traduções presentes para urihi na edição brasileira de A queda do céu. Essas traduções, ao meu ver, aproximam urihi às nossas categorias de mundo e território. Contudo, ao longo deste ensaio apresento a hipótese de que esse termo abrange uma grande quantidade de outros significados, capazes de abrir novos caminhos face à crise ambiental em curso.
A presente argumentação está organizada em duas partes. Em um primeiro momento, examino os termos e as expressões empregadas por Bruce Albert na tradução de urihi. Essa análise é elaborada a partir de dois trabalhos etnográficos de Bruce Albert, nomeadamente: Ethnogeography and Resource Use among the Yanomami (8), de 2007 e A world named forest (9), de 2019. Em segundo lugar, a partir da espectrologia de Marco Antonio Valentim (10) aponto limitações às traduções do termo urihi propostas por Albert (11). A partir do conceito de espectro abre-se uma reflexão sobre urihi que leva à proposição de uma arquitetônica espectral, para se referir a uma organização centrífuga formada pela soma das múltiplas percepções do espaço das perspectivas de cada ser da floresta yanomami.
Urihi como rede territorial
De acordo com Bruce Albert e François-Michel Le Tourneau (12), os estudos antropológicos sobre o uso do território yanomami nunca levaram realmente em consideração os padrões espaciais do uso dos recursos feitos por esses grupos indígenas. Com o objetivo de superar essa visão que “projeta nas atividades produtivas yanomami uma concepção etnocêntrica de ‘anéis’ sucessivos” (13), os antropólogos franceses propuseram uma metodologia de análise que leva em consideração as áreas florestais além das redondezas imediatas da aldeia singular de cada grupo indígena. Nos termos dos autores, “sob essa nova perspectiva, a organização etno-geográfica do espaço yanomami parece ser reticular – estruturada por uma rede cruzada de locais (pontos) e rotas (linhas) – em vez de zonal” (14). Em outras palavras, segundo os autores, é impossível delimitar o uso do espaço yanomami à mera aldeia ou à clareira em volta da aldeia. É preciso considerar também a “estrutura reticular de teias cruzadas de caminhos nomeados e locais espalhados pela casa coletiva e sua área de jardim” (15). Esses caminhos abrangem, além das áreas de coleta mais distantes da aldeia, também os espaços florestais necessários para se conectar com outras aldeias de grupos aliados. O conjunto desses caminhos formam o que os autores definem como um “espaço reticular”, e que os yanomami chamam de “a nossa floresta”: kami yamaki urihipë (16).
Um dos fatores-chave que confirma que o espaço em questão seja reticular é, para Albert e Le Tourneau (17), a existência na cultura yanomami de uma área “negativa” da rede, isto é, porções de espaço que se formam entre as trilhas, e que os yanomami chamam de “floresta fechada” (em yanomami, urihi komi). Essa é considerada espectral e, portanto, perigosa para os yanomami. Nas palavras dos autores,
“Como ‘zonas vazias’ [...] de floresta não explorada deixadas dentro ou fora das redes de rotas de caça, coleta e viagem, elas provavelmente desempenham um papel ecológico significativo como áreas de refúgio de caça. Assim, parece que a conceituação yanomami do espaço é de fato organizada por referência a um conjunto de pontos e linhas, correspondendo ao seu uso prático da floresta orientado por uma teia de sítios e rotas, ao invés de um conjunto de áreas aproximadamente delimitadas (concêntricas ou parecidas) caracterizadas como zonas de exploração de recursos naturais. O fato de essa organização espacial incluir zonas vazias culturalmente reconhecidas como ‘floresta fechada’ confirma ainda mais que estamos testemunhando um sistema reticular, uma vez que essa estrutura de pontos e linhas em rede nunca preenche completamente o espaço pelo qual se espalha” (18).
Em seu texto mais recente, Albert afirma que “em seu sentido mais amplo, o termo urihi é usado para se referir à floresta, mas também ao espaço de terra em que ela se encontra” (19). Todavia, segundo o autor, urihi não possui apenas o sentido material de “chão” ou de “área florestal”. Em seu sentido imaterial, urihi indica a totalidade da rede de caminhos que faz parte da rota migratória da coletividade yanomami. Por essas razões, segundo o antropólogo francês, o conceito de urihi se difere do conceito universalista ociental de território, concebido como um lugar fixo e imutável, ao contrário, se aproximaria da geografia pós-moderna das “redes territoriais” (20). Nos termos do autor,
“A arquitetura móvel e versátil que está por trás da territorialidade yanomami colide em particular com nossa ‘terra natal’, uma noção sustentada por fortes ‘raízes’ e metáforas ‘terrenas’. Na verdade, o conceito de urihi não se refere a uma pátria original e eterna, preservando alguma identidade definidora, mas, pelo contrário, a uma geometria mutável, multifacetada, ‘rizomática’. De certa forma, tal organização do espaço social lembra as configurações flutuantes estudadas dentro da geografia das ‘redes territoriais’ pós-modernas, muito mais do que da territorialidade topográfica fixa, ‘zonal’ dos espaços rurais ‘tradicionais’ ocidentais” (21).
Em outros termos, segundo o autor, urihi seria um espaço sem áreas definidas e nem superfícies preenchidas, mas sim com um formato linear composto pela trajetória dos corpos yanomami. A compreensão das “redes territoriais pós-modernas” se apoia também na noção de “multiterritorialidade” de Rogério Haesbaert (22). Segundo Haesbaert (23), “geograficamente falando, pensar multiterritorialmente significa pensar [em] múltiplas identidades [...] em prol da perspectiva maior de construção de uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas”. Em síntese, para Haesbaert (24) “o ser humano é capaz de ‘produzir e habitar mais de um território’, o que envolve ‘um fenômeno de multipertencimento e superposição territorial’’’.
Todavia, como afirma Kopenawa,
“Watoriki, a Montanha do Vento, perto da qual vivemos, é [...] uma casa de espíritos. Os xapiri (25) que nela vivem são os verdadeiros donos da floresta à sua volta. É o espaço externo de sua casa. Por ela andam, folgueiam e descansam de suas brincadeiras. [...] Lá estavam bem antes de nossa chegada. Por isso, no momento de construir nossa casa, nossos antigos xamãs tiveram de afastá-los com cuidado e gentileza, informando os espíritos de sua intenção. O sítio de Watoriki também é cercado de muitos caminhos, pertencentes a todos os espíritos dos animais, das árvores e das águas. Cobrem a floresta em toda a sua extensão, e nós, humanos, vivemos no meio deles. [...] Os espíritos que vivem nela são muito mais numerosos do que os humanos e todos os demais habitantes da floresta os conhecem!” (26).
Chamo a atenção para o fato que, enquanto Albert (27) descreve o ambiente de Watoriki – e, mais em geral, a espacialidade envolvida no conceito de urihi – a partir da perspectiva dos yanomami, isto é, a partir de uma perspectiva humana, Kopenawa (28) descreve o espaço ao redor de sua aldeia a partir de uma perspectiva não-humana, a saber, a perspectiva dos espectros xapiri. Com isso, me questiono: será que para Kopenawa a floresta fechada (urihi komi) é realmente uma “zona vazia” não explorada pelos yanomami?
Enfim, não só com o objetivo de complexificar as traduções do termo urihi propostas por Albert (29), mas principalmente de aprofundar os vários significados do termo em questão, incremento as traduções e interpretações propostas por Albert (30) a partir da espectrologia de Valentim (31).
Urihi e a morada dos espectros
Segundo Valentim (32), na cultura yanomami existe uma continuidade ontológica entre todos os seres da floresta (humanos, animais, plantas, e, eventualmente, outros). A partir do conceito de perspectivismo (33) proposto por Viveiros de Castro, Valentim (34) afirma que, o denominador em comum entre esses seres não é uma humanidade difusa, mas a forma espectral (xapiri) de sua própria imagem (utupë). Nesse sentido, o espectro formado pela dupla utupë-xapiri é o conceito yanomami de sujeito. Nos termos do autor, “utupë, principal componente da pessoa, confunde-se com a espectralidade enquanto ‘potencial de alteração’ pelo qual sujeitos (humanos, por exemplo) se formam sob a perspectiva de outros sujeitos, radicalmente diferentes (extra-humanos)” (35). Para melhor compreender o conceito de sujeito espectral yanomami, partimos de uma crítica de Viveiros de Castro ao conceito de sujeito ocidental.
Segundo Viveiros de Castro, em seu texto Metafísicas Canibais de 2018, para compreender a fundo o conceito de sujeito ameríndio é preciso recorrer à distinção entre dois tipos de imagem do “outro”. Nas palavras do autor,
“Uma expressão prototípica de Outrem da tradição ocidental é a figura do Amigo. O Amigo é outrem, mas outrem como ‘momento’ do Eu. Se me determinam como amigo do amigo, é apenas porque o amigo, na conhecida definição de Aristóteles, é um outro Eu mesmo. O Eu está lá desde o início: o amigo é a condição-Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do sujeito. [...] O amigo é, em suma, [...] uma personagem conceitual, o esquematismo de Outrem do próprio conceito. A filosofia exige o Amigo, a philia é o elemento do saber” (36).
Com isso, o autor conclui que, se o sujeito do pensamento ocidental é o “idêntico ao Eu”, na cultura ocidental, toda e qualquer representação de um outro sujeito pensante é aprisionada na ideia de “Outro” como “Mesmo” (37). Essa constatação leva o autor a associar o conceito de sujeito ocidental com a personagem mítica do Narciso, um homem capaz de amar apenas a si mesmo (38). Em contraposição à imagem do Outro ocidental, o antropólogo brasileiro propõe que o sujeito ameríndio seria, então, o anti-Narciso:
“O problema liminar colocado por qualquer tentativa de identificar o equivalente ameríndio para “nossa” filosofia é de pensar o mundo constituído pelo Inimigo enquanto determinação transcendental. Não o amigo-rival da filosofia grega mas a imanência do inimigo da cosmopráxis ameríndia, onde a inimizade não é um mero complemento privativo da amizade, [...] mas uma estrutura de direito do pensamento, que define uma outra relação com o saber e um outro regime de verdade” (39).
Se o conceito de Outro ameríndio não tem nada a ver com o Mesmo, o anti-Narciso seria então um sujeito pensante, da mesma ordem ontológica do Eu, mas cujo pensamento é diferente do meu. Sob essa perspectiva, o conceito de subjetividade ameríndia proposto por Viveiros de Castro (40) corresponde a um Eu-como-outro e não um outro-como-Eu. Isso implica uma conclusão paradoxal aos olhos ocidentais: a de que outros seres, diferentes do Eu, pensam e existem, e não porque eles sejam como Eu, mas pelo contrário, porque são diferentes de mim.
Voltemos ao conceito de espectro yanomami. Diversamente do conceito de imagem ocidental, segundo Valentim a imagem espectral utupë é uma “imagem não-icônica porque [...] não se assemelha àquilo que representa [...]. É imagem invisível não só porque inacessível aos ‘olhos de fantasma’ da gente comum, mas também, e sobretudo, porque se trata de imagens que veem, em lugar de serem vistas” (41). Nesse sentido, segundo o autor (42), as imagens espectrais dos xapiri são de “sujeitos/pessoas” na forma de “outros-outros” e não de “outros-mesmos”.
Com base no conceito de multinaturalismo perspectivista (43) proposto por Viveiros de Castro, Valentim (44) constata que o conceito de mundo dos povos indígenas da América Latina não pode ser o mesmo que o nosso: enquanto para os ocidentais o mundo é um espaço único habitado pelo amigo, para os ameríndios é um pluriverso formado pela soma das perspectivas de cada espectro. Nos termos do autor (45) “enquanto a filosofia transcendental procura estabelecer limites e fronteiras, circunscrevendo uma esfera de sentido exclusivamente humana – a cidade cosmopolita —, o pensamento xamânico realiza uma “comunicação transversal entre incomunicáveis”, abrindo uma “zona transespecífica” [...] de contágio entre humanos e extra-humanos – a “terra-floresta” (urihi a)”. Em outras palavras, o sujeito ocidental com seus amigos, não enxergando outro ser pensante fora de si próprio, não vê outro mundo a não ser o que o seu ponto de vista oferece: “o homem” torna-se “único ‘cidadão do mundo’” (46). Por oposição conceitual, poderia-se dizer que o espectro de cada ser (humano, animal, planta etc.) possui seu próprio pensamento radicalmente diferente e enxerga o próprio mundo como apenas um dos mundos que existem no planeta Terra.
Frente às questões até aqui expostas, arrisco a dizer que as traduções de “mundo todo” e “terra-floresta” propostas por Albert (47) talvez apresentem outros sentidos. Embora o antropólogo francês tenha afastado o conceito de urihi da concepção universalista clássica ocidental de território, as suas aproximações com os conceitos pós-modernos de “redes territoriais” não esgotam todos os sentidos do termo. Por exemplo, a definição de multiterritorialidade de Haesbaert (48), que propõe “múltiplas identidades” frente a “uma sociedade universalmente igualitária”, evoca o conceito ocidental de multiculturalismo, assim como definido por Viveiros de Castro: “O relativismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só ‘cultura’, múltiplas ‘naturezas’” (49). Nesse sentido, segundo o antropólogo brasileiro (50), “a concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” dispõe-se “de modo exatamente ortogonal à oposição entre relativismo e universalismo”.
Enfim, se os xapiri são os “verdadeiros donos” da floresta urihi (51), talvez urihi não seja apenas a floresta dos yanomami, mas também a morada dos espectros. Em contraposição à organização cêntrica ocidental, ou seja, à convicção de que apenas o Humano possua as noções de mundo e território, a arquitetura envolvida no conceito de urihi yanomami parece ser formada pela soma das múltiplas percepções do espaço, criadas a partir das perspectivas de cada ser-espectro da floresta yanomami.
Considerações finais
“Os xapiri nunca se deslocam na floresta como nós. Descem até nós por caminhos resplandecentes de luz, cobertos de penugem branca, tão fina quanto os fios das teias de aranha warea koxiki que flutuam no ar. Esses caminhos se ramificam para todos os lados, como os que saem de nossas casas. Sua rede cobre toda a nossa floresta” (52).
O presente trabalho buscou “levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa” (53), nesse caso, a partir de uma revisão das traduções do conceito yanomami de urihi. Em suma, a hipótese trabalhada ao longo deste ensaio é de que urihi não pode ser compreendido apenas como o “mundo” do sujeito yanomami ou a “terra-floresta” ocupada pelos sujeitos yanomami. Urihi se refere a uma totalidade indissociável: o espaço vivido pelos sujeitos yanomami somado aos espaços vividos pelos outros seres da floresta. Em poucas palavras, refere-se à espectralidade da floresta. Todavia, a soma dessas perspectivas não deve ser confundida com uma realidade única e total, a modo do multiculturalismo ocidental. Na floresta yanomami, cada um dos dois lados sabe da existência do outro, mas de modo algum pode conhecê-lo, a não ser como forma espectral (54).
Nesse sentido, a escolha da obra do coletivo #CóleraAlegria que faz referência aos xapiri na capa deste trabalho não é casual. Na minha forma de interpretar a referida ilustração, vejo uma representação de urihi constituída por pelo menos duas dimensões. Uma delas é um arquipélago de ilhas de reserva de sócio-biodiversidade expresso na morada dos xapiri e representado na imagem pelas manchas em branco. A outra porção, os traços em preto, seria o espaço vivido pelos yanomami: uma teia de aranha que ocupa todo o território, sem todavia esgotá-lo. Nesse sentido, a teia de aranha yanomami não pode ser considerada separadamente das outras teias-de-aranha espectrais dos outros moradores da floresta yanomami.
A recusa da centralidade espacial yanomami reverbera na recusa da centralidade ontológica, a saber: se o mundo é povoado de espectros, o espaço não pode ser centralizado em apenas uma visão de mundo. Acredito que essa seja a razão pela qual o espaço espectral da “floresta fechada” desenvolve um papel ecológico de preservação da sócio-biodiversidade da floresta yanomami, descrito por Kopenawa (55) como a capacidade dos xapiri de sustentar o céu. Como afirma Krenak (56), líder indígena do vale do Rio Doce (Minas Gerais), a ideia dos povos tradicionais de que não existe apenas um mundo, abre novos caminhos face ao problema ocidental do fim do mundo. Nas palavras de Krenak, “[os brancos] pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (57). Desse modo, o fim do mundo torna-se ocasião para sonhar com outros mundos.
Como tema a ser desenvolvido em trabalhos futuros, a partir do conceito de desenho ontológico pluriversal proposto por Escobar (58), aponto para a possibilidade de uma arquitetura ocidental que tome como exemplo o conceito de urihi yanomami. “Exemplo” tem aqui o sentido que Viveiros de Castro (59) deu a esse termo. Em oposição aos “modelos”, isto é “simplificações da realidade [...] para fazer com que a realidade, por assim dizer, seja obedecida”, segundo o autor, “os exemplos [...] são idéias (técnicas, instituições etc.) que funcionam como estímulos para fazer algo ‘diferente’ do exemplo inspirador, que é sempre uma versão ou transformação de outro exemplo, assim como os mitos são versões umas das outras sem modelo ou modelo original” (60). O modelo arquitetônico ocidental, tanto moderno quanto pós-moderno, baseado em um único espaço, entendido como percepção exclusiva do Humano, não parece ser suficiente para dar conta de salvar o mundo da “queda do céu”. Como diz Kopenawa: “Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca” (61). Nesse sentido, emprego o termo arquitetura espectral, para me referir a uma disposição espacial capaz de abrir novos caminhos face à crise ambiental em curso.
notas
1
“Carnot descobriu que é preciso uma diferença de calor – diferença entre quente e frio – para realizar trabalho no sentido físico, isto é, para que um peso seja levantado, para que uma roda gire erguendo um peso. Ele demonstrou também que nenhuma máquina pode reduzir essa diferença, mas apenas, e na melhor das hipóteses, mantê-la”. ALMEIDA, Mauro William Barbosa. Desenvolvimento entrópico e a alternativa da diversidade. Revista Ruris, vol. 10, n. 1, mar. 2016, p. 28.
2
Idem, ibidem, p. 28.
3
ALMEIDA, Mauro William Barbosa. Sociodiversidade e desenvolvimento. Considerações entre centro e margem. Anais da 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, São Paulo, PUC SP, 02 a 05 jul. 2012, p. 5 <https://bit.ly/3cIpz5g>.
4
A entropia (do grego antigo èn+tropé, “em direção à agitação” ou “em direção à mudança”) é um conceito da termofísica que indica a mudança de um estado inicial ordenado para um estado final de desordem. Essa mudança acarreta, devido à agitação das partículas, o aumento de temperatura. A negentropia (ou entropia negativa) é um termo cunhado por Erwin Schrödinger para se referir à vida no planeta Terra como um sistema que operou em direção oposta à tendência universal entrópica. Resumidamente, é como se a fauna e a flora terrestres fossem capazes de manter um determinado ecossistema por um tempo maior do que aconteceria se a Terra fosse privada delas.
5
De acordo com Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, no Ocidente, a partir dos anos 1990 do século passado, a expressão “fim do mundo” passou a se referir às “transformações em curso do regime termodinâmico do planeta”. Trata-se do novo regime climático que convenceu os geólogos em definir a nossa época como “Antropoceno”, isto é, a época que coloca a humanidade como “um evento súbito e devastador na história do planeta”. Para uma discussão mais ampla sobre as problemáticas relacionadas ao termo Antropoceno, sugere-se a leitura do texto The Capitalocene, obra mais recente de Jason Moore. DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2015, p. 11, 27; MOORE, Jason W. The Capitalocene, part I: on the nature and origin of our ecological crisis. The Journal of Peasant Studies, vol. 44, n. 3, 2017, p. 594-630.
6
VALENTIM, Marco Antonio. Fascismo, a política oficial do Antropoceno. IHU On-line. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 531, ano XVIII, 17 dez. 2018, p. 72.
7
ALMEIDA, Mauro, William Barbosa. Sociodiversidade e desenvolvimento. Considerações
entre centro e margem (op. cit.), p. 6-7.
8
ALBERT, Bruce; LE TOURNEAU, François-Michel. Ethnogeography and Resource Use among the Yanomami: Toward a Model of “Reticular Space”. Current Anthropology, vol. 48, n. 4, Chicago, University of Chicago Press, 2007, p. 584-592.
9
ALBERT, Bruce. A world named forest. Homage to Napëyoma. Catalogue Exposition Fondation Cartier. Claudia Andujar. La lutte Yanomami. Paris, Fundação Cartier, 2019.
10
VALENTIM, Marco Antonio. Fascismo, a política oficial do Antropoceno (op. cit.).
11
ALBERT, Bruce; LE TOURNEAU, François-Michel. Op. cit.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, ibidem, p. 583. Tradução do autor.
14
Idem, ibidem, p. 584. Tradução do autor.
15
Idem, ibidem, p. 585. Tradução do autor.
16
Idem, ibidem, p. 586. Tradução do autor.
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem, p. 589.
19
ALBERT, Bruce. Op. cit., p. 104.
20
O conceito de “rede territorial” tem origem na ideia pós-moderna do espaço, visto como “movimento” ou “fluxo”, em contraposição à concepção espacial moderna, que via o espaço como “área” ou “zona”. Como afirma Rogério Haesbaert, “numa concepção reticular de território ou, de maneira mais estrita, de um território-rede, estamos pensando a rede não apenas enquanto mais uma forma (abstrata) de composição do espaço, no sentido de um ‘conjunto de pontos e linhas’, numa perspectiva euclidiana, mas como componente territorial indispensável que enfatiza a dimensão temporal-móvel do território e que, conjugada com a ‘superfície’ territorial, ressalta seu dinamismo, seu movimento, suas perspectivas de conexão [...], relativizando a condição estática e dicotômica (em relação ao tempo) que muitos concedem ao território enquanto território-zona no sentido mais tradicional”. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004, p. 286-287.
21
ALBERT, Bruce. A world named forest. Homage to Napëyoma (op. cit.), p. 110.
22
Idem, ibidem, p. 110.
23
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. Geographia, ano 9, n. 17, Niterói, UFF, 2007, p. 43.
24
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade (op. cit.), p. 334.
25
Os xapiri são os espectros yanomami. Eles são os habitantes mais numerosos da floresta urihi e, como veremos na segunda seção, são sujeitos/pessoas, da mesma forma que os yanomami.
26
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo, Companhia das letras, 2015, p. 120-121. Grifo do autor.
27
ALBERT, Bruce. A world named forest. Homage to Napëyoma (op. cit.); ALBERT, Bruce; LE TOURNEAU, François-Michel. Ethnogeography and Resource Use among the Yanomami: Toward a Model of “Reticular Space” (op. cit.).
28
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit.
29
ALBERT, Bruce. A world named forest. Homage to Napëyoma (op. cit.).
30
Idem, ibidem; ALBERT, Bruce; LE TOURNEAU, François-Michel (op. cit.).
31
VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e sobrenatureza: Ensaios de ontologia infundamental. Florianópolis/São Paulo, Cultura e Barbárie, 2018.
32
Idem, ibidem.
33
Trata-se da proposta de uma nova ontologia que tem como ponto de partida “a afirmação do descentramento radical da humanidade e a recusa prévia de fundamentalidade perante outras formas de pensamento”. Idem, ibidem, p. 165.
34
Idem, ibidem, p. 195.
35
Idem, ibidem, p. 220. Grifo do autor.
36
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu/N-1 Edições, 2018, p. 225-226.
37
Idem, ibidem, p. 21.
38
Como argumenta Juliana Fausto Coutinho, “Aristóteles diz que o amigo é um ‘outro mesmo’ (‘ἕτερος γὰρ αὐτὸς ὁ φίλος ἐστίν’, 1170b). [...] Héteros [...] é uma palavra que significa diferente em um contexto binário (por exemplo, quando se diz, em grego, ‘a outra mão’ para designar a mão esquerda), ao contrário de állos, que quer dizer qualquer outro. O amigo, então, como héteros autós é uma espécie de parte constitutiva ou ligada ao mesmo (eu), aquele a partir de quem o mesmo é. A filosofia, que traz o amigo em seu próprio nome [...] excluiria [...] assim todos os ‘quaisquer outros’ – tudo aquilo que, [...] para Aristóteles, constituem inimigos ou outros não binários. Não são só os animais que estariam fora da política, mas todos os outros fora de relações de par, todos os que não são meus amigos”. COUTINHO, Juliana Fausto de Souza. A cosmopolítica dos animais. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, PUC Rio, 2017
39
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural (op. cit.), p. 226.
40
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem: E outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac Naify. 2002; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma antropologia pós-estrutural (op. cit.).
41
VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e sobrenatureza: Ensaios de ontologia infundamental (op. cit.).
42
Idem, ibidem, p. 250.
43
Viveiros de Castro propõe o termo “multinaturalismo perspectivista” para criar uma oposição conceitual com o “multiculturalismo ocidental”. Se o multiculturalismo supõe uma “diversidade de representações subjetivas [...] incidentes sobre uma natureza externa, una e total”, o multinaturalismo pode ser interpretado como uma unidade subjetiva (por exemplo, o espectro como denominador comum entre todos os seres da floresta) incidente sobre uma diversidade natural, isto é, cada espectro tem o seu próprio mundo. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. (op. cit.), p. 379.
44
VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e sobrenatureza: Ensaios de ontologia infundamental (op. cit.).
45
Idem, ibidem, p. 236.
46
Idem, ibidem, p. 239.
47
ALBERT, Bruce; LE TOURNEAU, François-Michel. Ethnogeography and Resource Use among the Yanomami: Toward a Model of “Reticular Space” (op. cit.); ALBERT, Bruce. A world named forest. Homage to Napëyoma (op. cit.).
48
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate (op. cit.), p. 43.
49
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (op. cit.), p. 379.
50
Idem, ibidem, p. 346.
51
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit., p. 475. Grifo do autor.
52
Idem, ibidem, p. 115-121. Grifo do autor.
53
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins (op. cit.), p. 15.
54
Como se pergunta Viveiros de Castro, “os espelhos dos espíritos – que espécie de imagem refletiriam eles? [...] O que os exemplos sublinham é, antes, a propriedade que têm os espelhos de ofuscar, refulgir e resplandecer. Os espelhos sobrenaturais amazônicos não são dispositivos representacionais extensivos, espelhos refletores ou ‘reflexionantes’, mas cristais intensivos, instrumentos multiplicadores de uma experiência luminosa pura, fragmentos relampejantes”. Nesse sentido, o antropólogo brasileiro conclui que, “a floresta de cristal, portanto, não reflete ou reproduz imagens” – a modo da nossa interpretação ocidental de luz —, “mas ofusca, refulge e resplandece”, não permitindo uma visão clara dessa realidade espectral. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal. Notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, n. 14/15, São Paulo, 2006, p. 333, 318.
55
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit.
56
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das letras, 2019, p. 11, 57-58.
57
Idem, ibidem, p. 27.
58
Segundo Escobar “a globalização pode ser descrita como uma ocupação mono-ontológica do planeta exercida pelo ‘Mundo feito de um mundo só’”. Em contraposição a essa globalização, segundo o autor é necessária a projetação de um mundo feito de muitos mundos. Nos termos do autor: “o desenho ontológico pluriversal visa promover condições tecnológicas, sociais e ecológicas nas quais vários mundos e conhecimentos, incluindo humanos e não-humanos, possam florescer de maneiras mutuamente enriquecedoras”. ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la tierra: Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín, Ediciones Unaula, 2014, p. 139, 142. Tradução do autor.
59
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. On models and examples: Engineers and Bricoleurs in the Anthropocene. Current Anthropology, vol.60, supplement 20, ago. 2019.
60
Idem,ibidem, p. 6. Tradução do autor.
61
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Op. cit., p. 480. Grifo do autor
sobre o autor
Luca Provenzano é doutorando em Filosofia (UFRJ).