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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Trata da formação das Assessorias Técnicas no cenário paulistano e da atuação de um desses grupos, a Fábrica Urbana, responsável por mais de 2600 unidades habitacionais projetadas no programa MCMV – Entidades, entre 2009 e 2016.

english
This paper presents a background of the Technical Advisories in São Paulo scenario and the works of one of these groups, ‘Fábrica Urbana’, responsible for more than 2600 housing units on My House My Life – Entities program, between 2009 and 2016.

español
El estudio presenta un historial sobre las Asesorías Técnicas en el escenario paulistano y la actuación de uno de esos grupos, la ‘Fábrica Urbana’,responsible por más de 2600 viviendas en el programa Mi Casa Mi Vida – Entidades, entre 2009 y 2017.


how to quote

NUNES, Antonio Couto; SUGAI, Maria Inês. Assessorias técnicas em habitação de interesse social em São Paulo. A prática da Fábrica Urbana. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 257.01, Vitruvius, out. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.257/8298>.

O acesso de todos à terra urbanizada, o direito à moradia e a participação no processo decisório são direitos fundamentais, consagrados pela Constituição Brasileira de 1988, e que deveriam ser promovidos pelo Estado como um direito social. A moradia, assim como a saúde, educação, alimentação, segurança etc., constituem necessidades básicas de subsistência da população e garantem a dignidade humana. A ausência de políticas habitacionais continuadas, a distribuição desigual dos investimentos e serviços públicos, o alto custo da terra urbana e o rentismo vinculado à produção habitacional, geraram cidades segregadas, com periferias distantes e extensas áreas de pobreza e de informalidade habitacional.

Conforme pesquisa da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional do país em 2015, foi estimado em 6,35 milhões de domicílios, o que correspondia a 9,3% dos domicílios brasileiros, sendo esse déficit composto pela soma do volume de habitações precárias, pelas famílias morando em co-habitação e em moradias de aluguel (aproximadamente 50% do total de déficit habitacional). Essas carências são determinadas não apenas pela pobreza e pelos salários insuficientes, mas também pela nossa histórica desigualdade social.

Apesar da demanda e de inúmeras ações na área da habitação, em comparação com outros campos de atuação da arquitetura e da engenharia, são poucos os coletivos ou escritórios que desenvolvem de forma profissional e contínua a atividade de assessoria técnica em arquitetura e urbanismo. Em São Paulo, a atividade ganhou corpo a partir dos programas habitacionais de mutirões autogeridos, durante o Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal – Funaps Comunitário, na gestão municipal de Luiza Erundina (1989-1992). No entanto, seja em função da ainda inexpressiva atuação em Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social – Athis, ou devido aos números restritos de obras contratadas e executadas nos programas habitacionais direcionados às famílias de baixa renda, como o programa Minha Casa Minha Vida Entidades (2009-2016), constata-se o desconhecimento e a pouca difusão da atividade de Assistência Técnica pública e gratuita direcionada às camadas mais pobres da população.

No intuito de conhecer, garantir a memória e revelar práticas concretas e exercícios profissionais consolidados, este artigo apresenta a atuação de um coletivo de arquitetos atuante em São Paulo, denominado Fábrica Urbana Centro de Estudos e Projetos da Cidade. Sua prática foca no atendimento às demandas habitacionais de populações de baixa renda, intermediada por Entidades organizadoras. Assim como a Fábrica Urbana, outros grupos também atuam neste campo desde os anos 1980 na cidade de São Paulo, e mesmo com inúmeras dificuldades, se mantém ativos junto aos movimentos de luta por moradia digna, tais como o Peabiru, a Usina, a Ambiente, a Integra Cooperativa, entre outras (1). Neste sentido, é importante que se conheçam as experiências exitosas, sobretudo para que possam ser consideradas na construção de futuros programas habitacionais.

Para contextualizar o trabalho da Fábrica Urbana, faz-se uma retrospectiva do surgimento do conceito de assessoria técnica e do cenário socioeconômico e político que permitiu a configuração e a consolidação deste campo profissional na capital paulista. Além deste relato histórico o artigo apresenta os procedimentos adotados pela assessoria técnica Fábrica Urbana e as atividades que desenvolveu junto ao programa MCMV Entidades entre 2009 e 2016, as contradições, os obstáculos, as soluções e os avanços.

Surgimento das assessorias técnicas para habitação social em São Paulo

A tomada de consciência em torno da autoconstrução e da necessária reforma urbana começam a ser levantadas na década de 1960, com arquitetos e urbanistas procurando intervir nos rumos da urbanização no país. Surgem as primeiras iniciativas de atuação profissional junto às populações de baixa renda (2), com uma abordagem distinta daquela promovida pelo governo, especialmente no que se refere à participação ativa das populações afetadas. Se a população de baixa renda iria construir suas habitações através da autoconstrução, com ou sem auxílio do governo, era necessário que condições mínimas de habitabilidade e segurança fossem incluídas nessas construções.

O final da década de 1970 viu surgir uma série de movimentos populares em luta por direitos, incluindo as populações mais pobres vivendo em assentamentos informais, das periferias e favelas das cidades, bem como outros setores da sociedade, profissionais da classe média urbana (arquitetos, engenheiros, advogados) que, a partir de suas articulações no campo sindical passaram também a apoiar e integrar esta coalizão.

Neste mesmo período, surgem as iniciativas em torno da Assistência Técnica para Moradia Econômica – ATME (3), prestada a famílias que não podiam pagar pelo serviço. Tendo início na cidade de Porto Alegre, com o slogan “Uma família, um projeto”. A proposta ia de encontro com a massificação dos conjuntos habitacionais construídos pelo governo militar. A ATME viria a ser o embrião do que posteriormente convencionou-se denominar por Athis, sobretudo após a aprovação da Lei Federal 11.888/08.

Já no final dos anos 1980, surgem, com a assessoria de arquitetos e urbanistas e organizados por movimentos sociais de luta por moradia, o que ficou conhecido em São Paulo como “mutirões autogeridos” (4). Essa prática foi influenciada pelo exemplo trazido do Uruguai, a partir das experiências de construção por ajuda mútua realizadas pela Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua – Fucvam (5) e marca a origem das assessorias técnicas em São Paulo, coletivos profissionais atuando em parceria com movimentos sociais de luta por moradia na promoção de habitação de interesse social construída em regime de autogestão, ou seja, com a participação da população nas decisões e, em alguns casos, com efetiva participação nas obras através de mutirão.

No início, os mutirões autogeridos foram uma espécie de crítica ao descaso do governo com o crescente problema habitacional. Em um segundo momento, passam a ser absorvidos pelo Estado, a partir do programa Funaps Comunitário, da prefeitura de São Paulo (1989 e 1992). Com a institucionalização e consolidação deste campo profissional a partir do Funaps as assessorias técnicas passaram a atuar continuamente junto aos movimentos de moradia. As alternâncias de poder ao longo dos anos foram as principais responsáveis pelo aumento ou redução de produção habitacional neste segmento.

Obras do Conjunto 26 de Julho [Acervo Usina Ctah, 2017]

Famílias no mutirão do Conjunto 26 de Julho [Acervo Usina Ctah, 2017]

Do lançamento do caderno ATME, 1976, passando pela consolidação da atuação das Assessorias Técnicas em São Paulo com o Funaps, até a aprovação de uma lei federal específica sobre Assistência Técnica pública e gratuita (6), em 2008, foram décadas de luta. Apesar da importância da lei como marco, boa parte dos profissionais que trabalham com arquitetura social já o faziam há bastante tempo, mesmo antes de sua sanção.

O programa Minha Casa Minha Vida Entidades como fomento ao trabalho das assessorias técnicas

O Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV foi lançado pelo Governo Federal em 2009, injetando milhões de reais na economia, algo que não se fazia desde o Banco Nacional da Habitação – BNH, no período de ditatura militar. Apesar do grande volume de recursos aplicados, e da inclusão das famílias que recebem até três salários mínimos pela primeira vez num programa habitacional federal, a proposta do PMCMV esteve fortemente vinculada aos interesses do capital imobiliário. Muitos dos erros de políticas habitacionais pregressas foram repetidos, como a baixa qualidade das arquiteturas e urbanizações (7) e a localização distante, o que contribuiu para acentuar a periferização nas cidades brasileiras.

Mas há, no entanto, uma modalidade do programa MCMV direcionada aos movimentos de luta por moradia caracterizada por práticas auto gestionárias de participação da população. Esta modalidade – MCMV Entidades, pode ser considerada como sucessora do Funaps Comunitário, agora sendo viabilizada em um programa habitacional federal.

O MCMV Entidades foi uma reivindicação dos movimentos de moradia, e representou uma pequena parcela das metas do programa (3% da meta oficial) destinada a projetos desenvolvidos por entidades não governamentais organizadas. Pelo formato do programa, os futuros moradores, organizados em entidades, podem autogerir empreendimentos habitacionais mediante o cumprimento de normativas determinadas, originadas no Ministério das Cidades e gerenciadas pela Caixa Econômica Federal – CEF. É uma forma (ainda que limitada) de retirar das ‘mãos do mercado’ o papel de decidir unilateralmente o destino destas famílias.

O MCMV Entidades difere do restante do MCMV em um ponto crucial: a desvinculação da habitação do conceito de mercadoria. A modalidade “é voltada exclusivamente para a faixa de renda 1 – ou seja, a parcela mais pobre da população – e que consome apenas 1% dos recursos totais destinados ao programa” (8). Além disso, garantiu a participação, a organização e o controle social dos futuros moradores em relação ao processo, assim como apresentou resultados mais satisfatórios dos pontos de vista arquitetônico e urbanístico, com redução dos custos tradicionais da construção civil, focando investimentos naquilo que possui maior interesse aos moradores e não às premissas financeiras das incorporadoras.

O trabalho de assessoria técnica prestado a movimentos de luta por moradia é único em relação ao campo profissional da construção civil, especialmente pelo fato de tratar com populações carentes, incapazes de pagar pelo serviço, permitindo a estas famílias definirem seus próprios interesses através da autogestão dos projetos. Em geral, estes coletivos possuem o estatuto de Organização não governamental – ONG, seus projetos possuem uma longa duração, tanto devido aos impasses vividos pelas entidades contratantes (organização interna, busca de terrenos, desenvolvimento participativo dos projetos, relação com os órgãos públicos) como pelas dificuldades em se obter verbas, mesmo com a existência de programas específicos para financiamento destas demandas.

A atuação da Fábrica Urbana no Programa MCMV Entidades

Criada em 1998, a assessoria técnica Fábrica Urbana Centro de Estudos e Projetos da Cidade não existia no período do Funaps Comunitário, no entanto, sua equipe possuía longa experiência com a temática da habitação, em especial o arquiteto Juan Luis Rodrigo González (9), coordenador da assessoria técnica.

Os estudos relacionados à Fábrica Urbana focaram em trabalhos desenvolvidos para o movimento Fórum de Cortiços e Sem-Teto de São Paulo, em parceria com a Prefeitura Municipal de São Paulo – PMSP, que foram as obras do Hotel São Paulo (2007), do Edifício Maria Paula (2003) e Olarias (2004) (10). Diferentemente destes trabalhos, este artigo aborda os projetos da Fábrica Urbana no PMCMV Entidades, entre 2009 e 2016.

Entre 1998 e 2008 a Assessoria Técnica Fábrica Urbana, projetou dois empreendimentos no programa Programa de Arrendamento Residencial – PAR, as renovações do Hotel São Paulo e do Edifício Maria Paula, ambos situados na área central e convertidos para habitação social, além do Projeto Olarias, construído para fazer parte do parque de locação social da PMSP. De 2009 em diante a Fábrica Urbana começa a trabalhar com o programa Minha Casa Minha Vida Entidades, tendo realizado uma série de trabalhos, entre projetos e estudos de massa, neste pograma.

Quanto à estrutura da equipe, além de Juan Gonzalez, em 2016 a Fábrica contava com outros três arquitetos, dois estagiários de arquitetura, e três engenheiros, todos jovens profissionais. Cada colaborador recebe uma remuneração mensal fixa, os estagiários, por sua vez, recebem por hora trabalhada.

Os projetos da Fábrica Urbana no PMCMV Entidades entre 2009-2016

O Quadro 1 e o Quadro 2 apresentam os projetos da Fábrica Urbana realizados no programa MCMV Entidades, entre o lançamento do programa, em 2009 e julho de 2016. Nem todos projetos possuem todos dados disponíveis, até porque poucos deles se tornaram obras.

Dados dos projetos da Fábrica Urbana no MCMV-Entidades Faixa 1 2009 – jul. 2016. Alguns projetos não foram incluídos, devido aos arranjos institucionais distintos e alterações recentes no programa Entidades
Elaboração Antonio Couto Nunes, 2017

Todos os seis projetos arquitetônicos da Fábrica no PMCMV Entidades são de grande porte, somando ao todo 2.625 unidades habitacionais e quase 100 mil metros quadrados de área projetada. O projeto Residencial dos Pêssegos está sendo desenvolvido em uma parceria entre quatro entidades, cada uma responsável por organizar a demanda de trezentas unidades. Se considerarmos desta forma, a média de unidades habitacionais (UHs) dos projetos da Fábrica Urbana é de 291,66 por empreendimento, pouco maior que a média paulista de 279,23 UHs/empreendimento no programa Entidades.

Maquete eletrônica do Residencial Jabuticabeiras [Acervo Fábrica Urbana, 2016]

Maquete eletrônica dos Residencial São Francisco [Acervo Fábrica Urbana, 2016]

Datas dos projetos da Fábrica Urbana no MCMV-Entidades Faixa 1 2009 – jul. 2016
Elaboração Antonio Couto Nunes, 2017

A Metodologia projetual da Fábrica Urbana e o funcionamento do PMCMV-Entidades para as Assessorias

Como forma de se compreender o método utilizado pela Fábrica Urbana em seus projetos arquitetônicos, elenca-se aqui as principais etapas para a construção de um projeto em conjunto com um movimento de moradia. Quanto à escolha do terreno, geralmente são sugeridos por corretores de imóveis. Alguns são descartados na primeira observação, seja por questões ambientais, localização ou de legislação urbana. Após esta primeira análise, os arquitetos da Fábrica produzem um estudo volumétrico básico, além de elaborar uma tabela de áreas relacionando os índices construtivos com a área do terreno. Se não existe um levantamento topográfico, utiliza-se uma imagem de satélite obtida em ferramentas de visualização online com possibilidade de medição aproximada de distâncias (Google Earth). Através da definição da poligonal do terreno, é conferida sua área com aquela indicada na escritura, verificam-se os limites da legislação, os coeficientes construtivos previstos no plano diretor e quantidades permitidas. A partir daí, é iniciada uma implantação e um estudo volumétrico no computador. Somente depois de realizar este estudo mais aprofundado é que a Fábrica passa a quantidade de unidades passíveis de construção, já com uma volumetria preliminar. Sobre os custos destes estudos iniciais, anteriores ao fechamento do grupo pela Entidade, a Fábrica tem como política manter uma provisão de recursos, pois até o fechamento do contrato com o órgão financiador, não haverá verba do financiamento para as atividades de projeto da edificação.

Nesta etapa, as discussões com a Entidade são principalmente em relação ao atingimento da quantidade mínima de unidades para viabilizar os custos de compra do terreno e de construção. Estas discussões são realizadas com a liderança do movimento. Em São Paulo, os preços dos terrenos são muito elevados, dificilmente atendem ao valor previsto pelo MCMV Entidades. Por isso os estudos de viabilidade precisam incluir o máximo de unidades possível. Em geral, quando o valor do terreno é superior ao previsto no programa, depois de montado o grupo, a entidade cobra das famílias um valor mensal para pagar uma parcela do valor do terreno, que é colocado nas planilhas da Caixa Econômica Federal – CEF como contrapartida das famílias.

Após o fechamento do projeto com a entidade, a Fábrica dá andamento ao processo, e procura a CEF para avaliação dos técnicos. Geralmente as tratativas são tensas, dificultando avançar com a proposta original; tanto a CEF como a prefeitura não costumam aceitar projetos arquitetônicos que fogem muito do padrão. No projeto do Residencial Jabuticabeiras, a forma encontrada para solucionar as complexidades da topografia e do programa de necessidades teve dificuldade de ser aceita por um analista CEF, que entendia que o padrão do projeto fugia ao comum para Habitação de Interesse Social – HIS.

Após a etapa de adequações, com a aprovação inicial CEF, a direção do movimento de moradia organiza o grupo de famílias para participar do projeto, e a Fábrica realiza a primeira apresentação deste estudo preliminar para os futuros moradores.

Maquete eletrônica do Conjunto Ypês, apresentada às famílias ao ser formado o grupo [Acervo Fábrica Urbana, mai. 2013]

Para garantir a compra antecipada do terreno, pelas normativas do programa seria necessário apenas um estudo básico, no entanto, as assessorias têm chegado ao nível de projeto de aprovação, uma vez que a CEF acaba exigindo várias informações que vão além de um estudo básico. Com a compra antecipada garantida, tem início a liberação das verbas para pagar os custos da entidade com a Assessoria Técnica e demais profissionais envolvidos. Daí em diante cada etapa concluída é devidamente paga pelo programa. Como este período inicial tende a ser bastante longo, a Fábrica não para de desenvolver o projeto quando dá entrada na Compra Antecipada, pois, quando a compra antecipada for garantida, já estarão com os produtos bem encaminhados quando ocorrerem as liberações de verbas subsequentes.

Além do projeto arquitetônico em si, a equipe da Fábrica também desenvolve alguns outros projetos, como o estrutural. Nesta etapa, o arquiteto Juan González participa ativamente, pois, em sua visão, a estrutura define muitas questões importantes do projeto de arquitetura. Como são necessárias todas as aprovações legais para viabilizar o financiamento da CEF, a Fábrica Urbana concentra as etapas de projeto previamente à aprovação para agilizar o processo, além de toda a compatibilização entre os demais projetos antes de serem liberados para a obra.

Independentemente de ter a compra antecipada garantida, ou não, o contrato terá as duas etapas, Fase 1 e Fase 2. A principal diferença de se obter a compra antecipada é a possibilidade de a entidade receber os valores referentes à Fase 1 antes da aprovação dos projetos na prefeitura, o que agiliza o processo. Sem a compra antecipada, os recursos serão liberados somente após a comprovação de todas as aprovações nos órgãos públicos. A Fase 2 é referente ao contrato da obra. Além do acompanhamento dos trabalhos da construtora, que a equipe da Fábrica Urbana realiza de quinze em quinze dias, qualquer alteração de projeto demandada por uma eventual alteração na obra exige uma revisão do projeto, caso do projeto São Francisco, onde foi preciso alterar os desenhos e passar novamente pela aprovação da prefeitura, sem nenhum aditivo contratual.

Arquiteta da Fábrica Urbana tirando dúvidas do projeto Jabuticabeiras [Acervo Fábrica Urbana, mai. 2013]

Após as primeiras apresentações de projeto arquitetônico, os futuros moradores, opinam sobre o que foi apresentado. A exposição dever ser bastante didática, no intuito de se aproximar da linguagem do grupo. A observação mais recorrente é de que os apartamentos são muito pequenos, exigindo um esforço dos arquitetos para justificar as definições de projeto e as limitações impostas pelas normativas. A Entidade participa ativamente, a CEF exige que ela esteja presente em todas as medições de obra juntos com a Assessoria Técnica e com os representantes das Famílias.

A Figura 7 apresenta um esquema de funcionamento das fases de contratação do projeto no MCMV Entidades. A Entidade traz o terreno e a demanda, além de realizar o cadastramento das famílias no Ministério das Cidades e na prefeitura e verificar se elas estão dentro dos padrões de renda do MCMV. Para tanto, as Entidades costumam manter uma equipe técnica interna de assistentes sociais.

Trata-se de um trabalho que exige consciência e militância política dos envolvidos, pois somente dessa forma é possível suportar as dificuldades encontradas no percurso, como o longo período que transcorre entre o início dos projetos e o recebimento dos recursos, o baixo valor de remuneração dos projetos, a dificuldade em se obter conhecimento e experiência na área, uma vez que nem mesmo o ensino superior em arquitetura e urbanismo consegue atender a esta expectativa.

Mesmo no contexto do MCMV Entidades, os procedimentos e métodos projetuais adotados pela Fábrica Urbana evidenciam a necessidade de astúcia e conhecimento do campo profissional para evitar as armadilhas, como prazos e normativas exigidas pelos órgãos reguladores e financiadores.

Etapas de projeto, a partir da descrição da Fábrica Urbana
Elaboração Antonio Couto Nunes, 2017

Apesar da possibilidade organizativa e autogestionária gerada pelo MCMV Entidades, esta modalidade atendeu a uma pequena parcela do déficit habitacional no período. E, com a atual crise econômica e político-jurídica e o avanço das forças conservadoras no país, que vêm determinando a contenção dos investimentos em políticas sociais e a suspensão dos programas habitacionais, ampliou-se ainda mais a demanda habitacional de famílias que vivem em situação de rua, em ocupações informais, em favelas, em moradias precárias, em áreas de risco, em moradias de aluguel e em coabitação. Essa condição irá exigir uma atenção especial daqueles comprometidos com a reconstrução democrática do país e de suas políticas urbanas e habitacionais, que visem a redução das desigualdades socioespaciais, como as experiências de Athis, as ações dos movimentos populares e as atuações dos grupos de assessorias técnicas, como o caso da Fábrica Urbana, que precisam ser conhecidos, analisados e debatidos, para contribuírem para esse futuro processo de reconstrução social.

Considerações finais

Se a demanda habitacional ainda era grave no Brasil, mesmo depois de anos de estabilidade econômica, de redução dos índices de pobreza, de investimentos públicos e de inclusão social, o que pensar da condição que virá a partir da atual crise econômica e política que assolam o país desde 2016? Certamente esse processo em curso, de acirramento das políticas neoliberais, de suspensão de investimentos públicos, de extinção das políticas sociais, de perdas de direitos trabalhistas consagrados, de desemprego, de empobrecimento, de abandono de investimentos em saúde e educação, entre tantas perdas, ampliará todas as carências, em especial as demandas por habitação, visto que 50% do déficit habitacional é determinado por famílias em moradia de aluguel (11). Basta lembrar as recentes notícias de que as taxas de mortalidade infantil, depois de mais de uma década de quedas consecutivas e que tornou o país uma referência internacional de serviço básico, subiu 11% em 2016, em comparação com 2015, determinado pelos drásticos cortes em dezenas de programas como o atendimento à saúde da família, do bebê, da gestante e alimentação (12).

Nessa perspectiva de ampliação significativa do déficit habitacional, poderia conjecturar-se que para superar essas demandas os futuros programas habitacionais deverão ser muito mais contundentes, exigindo tecnologias mais avançadas, maior rapidez de execução e uma produção habitacional em larga escala, mais condizente com a capacidade produtiva das grandes construtoras e empreiteiras. Essa hipótese seria plausível se o entendimento das atividades das assessorias técnicas estivesse focado unicamente na obtenção do espaço edificado. Entretanto, mais do que o espaço moradia e a garantia de permanência, os processos que envolvem os movimentos populares organizados, as lideranças, as assessorias técnicas e demais agentes, conforme relatado e dependendo do coletivo, estabelecem procedimentos de participação, de controle social, de convivência, de autogestão, em suas diferentes esferas, durante todo longo processo de projeto, administração e construção. Conforme a concepção política e a prática adotada pelas Assessorias Técnicas alteram-se os enfoques de organização, de formação, podendo garantir aos sujeitos sociais frutos mais consistentes, de pertencimento, de empoderamento e de emancipação e de defesa dos direitos. Desta maneira, as comparações focadas unicamente na rapidez e quantidade da produção, seriam inadequadas, primeiro porque a atual demora na conclusão das moradias são determinadas por razões alheias à vontade das assessorias e dos movimentos e, em segundo lugar, porque os objetivos dos coletivos abrangem também a perspectiva de mudança social. Por outro lado, é importante considerar que talvez seja desejável e necessária a coexistência dos diversos processos produtivos, das diferentes concepções de assessorias técnicas, dos distintos procedimentos e concepções políticas.

A experiência da Fábrica Urbana, apresentada e cotejada a outros coletivos, talvez seja a expressão dessa possibilidade e necessidade de coexistência. Se não adota procedimentos como os mutirões autogeridos ou a elaboração compartilhada do projeto arquitetônico, e justifica o uso da empreitada global favorecendo o direito ao descanso dos trabalhadores envolvidos, traz como modelos de referência para outras assessorias técnicas a larga experiência construtiva do coordenador, o domínio e compreensão minuciosa da obra, o elevado nível de detalhamento dos projetos, que acaba por otimizar o processo de execução, da efetiva redução de custos em relação aos empreendimentos tradicionais, de menos desacertos durante a obra, de melhor aproveitamento dos recursos e de melhor qualidade arquitetônica da moradia.

No entanto, é fundamental considerar que, paralelo a este debate, e certamente mais importante que os métodos e procedimentos, são as decisões locacionais que devem prevalecer. Diversos estudos vêm exaustivamente apontando que a localização urbana central dos empreendimentos é decisiva para garantir não apenas o direito à moradia, mas também o efetivo direito à cidade, principalmente se considerarmos as graves desigualdades socioespaciais das cidades brasileiras (13). No caso, os conjuntos São Francisco e Jabuticabeiras, não fogem à regra. Localizam-se na Zona Leste, periferia da cidade de São Paulo, área com preços de terreno mais baixos, local onde o recurso disponível no programa habitacional permitiu a aquisição dos imóveis. Ainda que com maior participação das famílias e melhor qualidade arquitetônica e espacial, a pressão do mercado imobiliário determina, para as famílias de baixa renda, as localizações com menor oferta de serviços públicos, emprego, transporte etc. perpetuando assim a segregação socioespacial nas cidades brasileiras.

A Assistência Técnica em arquitetura, urbanismo e engenharia e a sua regulamentação são conquistas sociais recentes e significativas, mesmo cientes de seus limites na solução da demanda habitacional nas áreas urbanas. No entanto, o necessário conhecimento das diferentes experiências e procedimentos dos coletivos de assessorias técnicas, e a efetiva apreensão e propagação dessas práticas serão fundamentais para possibilitar moradias dignas, uma menor vulnerabilidade social e um maior controle e organização social, contribuindo, potencialmente, para reduzir a reprodução da pobreza e das desigualdades socioespaciais, numa perspectiva de emancipação e de luta por cidades mais justas.

notas

NE – O presente artigo é uma versão resumida do trabalho “Assessorias técnicas em habitação de interesse social em São Paulo: a prática da fábrica urbana”. NUNES, Antonio Couto; SUGAI, Maria Inês. Assessorias técnicas em habitação de interesse social em São Paulo: a prática da fábrica urbana. Anais do V Enanparq: Arquitetura e Urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios, Salvador, FAU UFBA, 13 e 19 out. 2018.

1
Sobre o trabalho das assessorias técnicas de São Paulo, ver NUNES, Antonio Couto. Assessoria Técnica em Arquitetura e Urbanismo no Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades: O caso da Fábrica Urbana (São Paulo). Dissertação de mestrado. Florianópolis, PósArq UFSC, 2017, p.133.

2
Carlos Nelson F. Santos, na favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro (1964), e Acácio Gil Borsói, no Cajueiro Seco, Recife PE (1963-1964).

3
A Assistência Técnica para Moradia Econômica – ATME, lançado por Clóvis Ilgenfritz da Silva e outros profissionais em 1976 pelo Sindicato de Arquitetos e Engenheiros do Rio Grande do Sul – Saergs, em conjunto com o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio Grande do Sul – Crea RS (na época os profissionais de Arquitetura ainda eram vinculados ao Crea).

4
Ver RONCONI, Reginaldo L. N. Habitações construídas com gerenciamento pelos usuários com organização da força de trabalho em regime de mutirão: o programa Funaps Comunitário.. Dissertação de Mestrado. São Carlos, IAU-USP, 1995.

5
Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua, as cooperativas habitacionais atuavam desde a década de 1960.

6
Sobre as diferentes interpretações entre os conceitos de Assessoria Técnica e Assistência Técnica, ver: AMORE, Caio Santo. Assessoria e Assistência técnica: Arquitetura e Comunidade na política pública de habitação de interesse social. Anais do II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, Rio de Janeiro, UFRJ/ANPUR, 2016.

7
Sobre a qualidade das produções do MCMV, ver: FERREIRA, João Sette Whitaker. Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano. 1ª edição. São Paulo, Labhab/Fupam, 2012.

8
ROLNIK, Raquel. Em tempo: O que esperar do novo Ministério das Cidades 2. Blog da Raquel Rolnik, São Paulo, mai. 2016 <https://bit.ly/3p5NP89>.

9
Nascido na Espanha, ainda criança González emigrou com sua família para o Brasil, formando-se Arquiteto em 1977, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Iniciou sua atuação junto aos movimentos sociais no Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo – IPT da USP, quando o instituto prestava assessoria aos mutirões de São Paulo, nos anos 1980. No período do Funaps Comunitário (1989-1992) em São Paulo, Juan participou da gestão da Prefeitura de Santo André, região metropolitana de São Paulo – RMSP, onde foi superintendente da Empresa Municipal de Habitação de Santo André, e junto com colegas cedidos pelo IPT, formularam boa parte das políticas de habitação do município, até então, inexistentes. Fundando a Fábrica Urbana em 1998, coordena a assessoria técnica desde então.

10
Ver SANCHES, Débora. Gestão condominial de habitação de interesse social: estudo na área central de São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo, IPT USP, 2008.

11
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO: CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES. Déficit habitacional no Brasil 2013-2014. Belo Horizonte, 2016.

12
De acordo com dados disponibilizados pela Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos – Fundação Abrinq em seus relatórios anuais.

13
Sobre as desigualdades socioespaciais, ver: VILLAÇA, Flávio. O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp/Lincoln Institute, 2009; e SUGAI, Maria Inês. Segregação Silenciosa: Investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis (1970-2000). Florianópolis, Editora da UFSC, 2015.

sobre os autores

Antonio Couto Nunes é arquiteto e urbanista (UFSC, 2008) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ UFSC, 2017). Foi professor colaborador na Assevim – em Brusque, entre 2013 e 2014. Sócio diretor na empresa Arte Urbana Arquitetos, de 2008 a 2019 e assessor especial da Presidência do CAU SC na gestão 2018-2020.

Maria Inês Sugai é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP. Desde 1979 é docente da Universidade Federal de Santa Catarina, onde atualmente é professora associada e leciona no curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, e no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

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257.01 habitação de interesse social
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A arquitetura como experiência

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A nova Berlim de Hitler

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