O diálogo intertextual que caracteriza a linguagem do espaço e sua representação em múltiplos textos, como normas, instrumentos urbanísticos, planos e projetos urbanos, evidencia concepções e princípios consagrados em intervenções urbanas. Transformações estão registradas nesses meios diversos, do texto legal ao projeto urbano, e revelam mudanças socioespaciais e um tenso diálogo intertextual, que define complexos signos, que mediam o espaço urbano.
O marco pioneiro do Plano do Ensanche de Barcelona (1859), a expansão do centro histórico realizada por Ildefonso Cerdà, resgata o diálogo conflitivo de instrumentos e mediações projetuais para criar uma cidade dinâmica e funcional, suplantando uma versão renascentista, insalubre e confinada em muralhas.
Partindo desse Plano originário, descrevem-se diferentes momentos dos principais marcos regulatórios urbanísticos espanhóis até os dias atuais, à luz do diálogo das linguagens. Esse caminho evidencia estruturas textuais lógicas (normativas) e outras, de natureza infralógica, uma inteligência do espaço e do tempo, fundamentada em relações topológicas e métricas, presentes no projeto (1).
Proposições infralógicas se distinguem de operações lógicas formais de classe e encaixe, e do discurso verbal. Uma classe é um conjunto de objetos fragmentados, reunidos por um atributo em comum. O mundo infralógico trabalha o todo, o espaço delimitado — o contínuo —, suas bordas, limites, características totais e das partes. Operações infralógicas produzem conhecimento e expressam relações espaço-temporais, encontrando-se na produção do espaço urbano e em sua representação, em seus contornos, em reforma e expansão, transformação e conservação.
Este artigo sustenta que a representação do que é propriamente espacial também “discursa”, valendo-se de operações infralógicas, não inferiores às lógicas. O Plano do Ensanche se revela inovador, e percorrem-se as principais normativas e transformações urbanas a partir de sua implementação, ao redefinir o que é urbano a partir das visões de cidade presentes no discurso e na prática do Urbanismo.
Cidade, representações e projeto do espaço urbano — uma natureza infralógica
O conceito atribuível a Piaget (2) de função simbólica é base da representação espacial, e de operações no contínuo. Espaço discernível, o contínuo se caracteriza topológica, algébrica, geométrica e figurativamente (3). Representável por um esquema total é o espaço ininterrupto que se pode limitar, fluido e conectado — conferindo unidade às partes. Agenciamento espacial, difere da unidade proposta por classes lógico-matemáticas, em que elementos “discretos” permanecem descontínuos, reunidos por atributos.
Piaget enunciou operações cognitivas infralógicas — tempo-espaciais, admitindo paralelismo com a lógica, sem com ela se confundir:
“Decompor o objeto e o recompor constitui assim o trabalho próprio de um segundo conjunto de agrupamentos, cujas operações fundamentais podem, portanto, ser chamadas de infralógicas [...], tão grandes quanto as operações lógicas, porque são constituídas da noção de espaço e tempo; contudo, ainda bem distante das operações lógicas, elas lhes são exatamente paralelas, às questões das relações de desenvolvimento entre esses dois conjuntos operatórios, constituem assim um dos mais interessantes problemas relativos ao desenvolvimento da inteligência” (4).
O espaço historicamente produzido é tempo-espaço; inclui múltiplas determinações, processos sociais, normativos, econômicos e políticos. Qual o tamanho do contínuo? A sociedade e a cultura o definem: a nação, o estado, a cidade, ou até o universo, impondo-se um limite (uma topologia), e definição do que está fora e dentro dele.
Operações que criam, representam e delimitam diferem de encaixes de classes e categorias. Implicam relações entre parte e todo; são infralógicas, priorizando vizinhança e localização, ordem, posição e deslocamento. Substituem a noção abstrata de número por medida, e semelhança e dessemelhança, pela representação do sistema, acompanhada de imagens e figurações simbólicas (5).
Ao reunir elementos discretos em classes identificadas por atributos, a lógica define a compreensão e a extensão dos conceitos. A compreensão é a qualidade, ou atributos, e a extensão, a quantidade de elementos. O pensamento lógico busca generalidades: cada vez menos atributos, maior a extensão, e quanto mais atributos, menor a extensão.
Nas relações infralógicas (6), o fundamento é o contínuo, composto e decomposto a partir da vizinhança e localização, com métricas e escalas. Adição e subtração é a primeira e a mais elementar de oito operações infralógicas apontadas por Piaget (7), esclarecendo que estas correspondem a oito operações lógicas:
“Adição e subtração dos elementos, ao emparelhamento das classes, corresponde o das partes reunidas [...] em totalidades hierárquicas, cujo termo final e o objeto inteiro (seja em que escala for), inclusive o próprio universo espaço-tempo” (8).
Localização e posição (ordem espaço-temporal) definem uma segunda operação, acompanhada das quantidades intensiva (relações parte e todo) e extensiva (relações parte a parte). O sujeito (9) domina evolutivamente essas operações, atingindo o estágio formal do pensamento, fonte de hipóteses (hipotético-dedutivo), um “sistema de operações sobre signos, um sistema que pressupõe a combinatória [...] as operações de segunda potência o sujeito o faz através de hipóteses compatíveis com o sistema total” (10).
Princípios análogos às operações de ordenamento e desenho da cidade são legíveis: o espaço urbano é o contínuo; admite limites, métricas, escalas; o sistema lógico é sua expressão normativa, com índices e parâmetros (matemáticos) de edificabilidade e aproveitamento do solo. Esses dois sistemas, normativo e espacial embora dialoguem, seguem independentes e específicos (11).
As experiências de ordenamento urbano na Espanha, com especial interesse na cidade de Barcelona são exemplares para compreender como se dá o diálogo e a expressão de relações lógicas e infralógicas.
O plano seminal de Cerdà para o Ensanche (Expansão), de 1859, resgata uma genealogia de concepções e instrumentos urbanísticos, tradição em processo para a cidade que se transformava, e que se esperava que crescesse ordenada e indefinidamente. Sua concepção guarda princípios que perduraram na Lei de Solos (1956) (12) e em suas remodelações (1975,1976, 1992, 1998, 2007) (13), transformados por novos paradigmas — da cidade compacta ao meio-ambiente, presentes nas normativas recentes.
A contribuição cerdaniana consiste em experiência integradora do edifício à cidade. Transformando as concepções de solo urbano e urbanizável, definiu limites ao contínuo, o território inexplorado que se tornou a Barcelona urbanizada, espaço singular que definiu novos limites para a cidade que se expandia. Modificavam-se concepções de “dentro e fora”, urbano e rural, espaço consolidado e não consolidado, opondo contínuo e descontínuo; nascia o debate da função social da propriedade, entendendo plano e projeto urbano como articuladores normativo e espacial, mediando complexo rol de interesses conflitivos em uma área urbana.
A concepção de Cerdà aborda a cidade como domínio infralógico, valorizando plano e projeto urbano como dispositivos que representam interesses múltiplos e concretos. A estes se articulam instrumentos urbanísticos de compensação de direitos e deveres de populações afetadas por intervenções urbanas, prevendo gestão de índices de edificabilidade e contrapartidas aos empreendedores (14).
Instrumentos, parâmetros e índices diferem no contexto urbanístico de quantidades abstratas, revelando a ênfase ou desvalorização da função social da propriedade, a prioridade a determinados agentes em detrimento de outros, e conflitos da intertextualidade da norma, do plano e projeto, e de seus contextos, valores e políticas públicas.
Em um projeto de cidade, conflitos excedem a representação, alterando propósitos originais e rumos do que foi planejado. Essa dança dos signos, reunindo representação e produção da cidade não é linear, sequer evolucionista, expondo avanços e retrocessos. Distintas visões do urbano modificam direitos e deveres individuais e coletivos, cujas concepções deixam rastros nos meios de representação.
Seus rastros se apresentam em variadas escalas, nas formas urbanas e modos como edifício e cidade se integram, e na valorização de espaços livres e edificados. O conjunto de estímulos e respostas das linguagens que articulam projetos, planos e normas não é absoluto, ou dedutivo, sequer genérico e apoiado somente no texto escrito das normas, — mas numa intertextualidade, na qual espaço e projeto, tempo, palavra e álgebra — topologia e medida — dialogam.
O diálogo das linguagens envolve o que é abstrato e geral, e também específico e particular, dialogismo pragmático (15) conforme a ciência dos signos (16), um conhecimento produzido com a semiose — processo de produção de princípios gerais, e de um desenho informado, uma expressão singular.
Um projeto urbano é um signo e dispositivo complexos, diferente da topologia pura, da álgebra isolada, e de elementos desconectados. Respondendo a parâmetros e atributos, é meio para enunciados infralógicos (17) no espaço piagetiano de “intuições geométricas”, relações lógico-matemáticas e figurações imagéticas (18). Uma norma é uma generalidade que prescreve condutas, e um projeto urbano, um diálogo com situações espaço-temporais, traduzindo direitos e deveres de moradores, usuários, empreendedores imobiliários, proprietários e cidadãos em contextos específicos, configurando uma lógica responsável (19) e espacial a um conjunto de estímulos.
Piaget (20) definiu o espaço infralógico como contínuo que integra razão e intuição, e uma superfície a transformar, com limites definidos em um projeto urbano, é um recorte do contínuo. Operações infralógicas mediam relações espaço-temporais, informação lógica e algébrica, e diferentes expressões em uma única linguagem.
Operações no contínuo incluem limite, escala e medida, relacionam partes no interior de um perímetro (o “todo”) — espaço construído, público e sistema viário. Se a norma opera com semelhança, silogismo e inclusão de classes, ao infralógico importam diferença, posição e localização, topologia e medida, pois, pontos, linhas e superfícies, que definem o todo e as partes têm tamanho, diferindo da abstrata noção de “número” (21).
O projeto como linguagem é primeiridade (22) — signo de qualidade próximo do sensível, representação arquitetônica e urbanística — singular e concreto, particular e discernível, representa “o que é”, com limite e distâncias, incorporando classificações de solo (23), parâmetros e índices urbanísticos.
Um Projeto Urbano pode ser interpretado como semiose, representação ativa que inclui ou exclui finalidade social, mediada por indicadores qualitativos e quantitativos: que tipos e quantidades de habitação, espaço público e áreas livres, e equipamentos diversos são possíveis ou desejáveis — secundidade, conforme o texto peirceano, indicando um “poder ser ideal”, nem sempre alcançável (24).
O encontro da primeiridade — “o que é” —, e da secundidade, será mediado pela norma — terceiridade (25), “roda dos signos” em confronto com novas solicitações concretas. Normas não apenas prescrevem a ação, mas adquirem sentido prático para a cidade no Urbanismo, em planos e projetos urbanos. Como representações contingentes, jamais esgotam a realidade em transformação e sua imprevisibilidade, mas indicam objetivos, políticas e intencionalidades.
A evolução urbana na Espanha e o nascimento do Urbanismo: de Cerdà aos dias atuais
O pioneiro Ensanche de Barcelona, de Ildefonso Cerdà (1859) exigiu plano e projeto urbano para uma cidade funcional, salubre e eficiente, que articulou edifício e cidade, modificando a concepção de urbano, urbanizável, urbano e rural, espaço consolidado e não consolidado, contínuo e descontínuo.
O cadastro de terras urbanas na Catalunha (Catastro de Patiño, século 19) originou novas formas para delimitar o contínuo. Recurso tributário baseado no registro cadastral de bens imóveis, utilizou a descrição das terras, edifícios, animais e famílias gerando o cupo, tributo cujos rendimentos deveriam ser proporcionalmente distribuídos (26).
A população de Barcelona passou de 53.000 (1753) a 110. 000 (1787) (27), estimulando leis de ordenação, circulação e higiene, ornamentação de ruas e controle de fachadas. Em 1771, o Edicto Obrero de Barcelona, um código de edificações municipal foi o primeiro ordenamento urbanístico moderno (28), exigindo o alinhamento edilício.
Uma regulação do desenho de fachadas, especificamente catalã, evitava saliências para além desse alinhamento. Em 1797 foram aprovadas leis complementares para retificar ruas, alinhar e interligar antigas vias, criando espaços livres e abertos. Tais medidas não solucionaram problemas higiênicos e de circulação, e a cidade enfrentou o cólera e a febre amarela, mantendo-se amuralhada, carecendo de um plano geral de expansão e adensamento.
Em 1840, o governo central concedeu aos municípios planejar ruas e praças, e em 25 de junho de 1846, um Decreto-Real regulamentou o Plano de Expansão (Ensanche), acompanhado de plano topográfico. No mesmo ano, o Ministério da Fazenda, em cumprimento à reforma tributária de 1845, determinou o cadastro de todas as propriedades rurais e urbanas municipais. A Catalunha, emulando o cadastro parcelario francês, utilizou triangulações de cada um dos municípios, sem unifica-los. Essa base cadastral, eficiente e rápida, demarcou polígonos respeitando marcos naturais. No restante da Espanha, um mapa geográfico geral com levantamentos planimétricos e altimétricos complementava o cadastro municipal, mas logo foi abandonado por ser demorado e custoso.
Barcelona adotou por similaridade, em 1856, as Ordenanzas Municipais de Polícia Urbana e Rural de Madrid, de 1847, que continham a origem do zoneamento, reservando espaço às indústrias. Neste contexto legal Ildefonso Cerdà realiza os planos para Madrid e Barcelona, enfatizando a circulação e mobilidade como expressões da vida moderna.
Em 1855, Cerdà faz o Plano Cadastral de Barcelona, o plano topográfico (Plano Particulario), em escala 1: 500, antecedendo o Plano do Ensanche. A cobrança de tributos derivou daquele levantamento, fundamentada em uma expressão espacial. O cadastro parcelario, o fechamento de polígonos e sua subdivisão exemplificam operações infralógicas (29), de adição, subtração e localização, e operação multiplicativa biunívoca, ao se definir a área do polígono pela multiplicação de seus lados, reunindo as partes — os terrenos, e definindo valores.
A teoria cerdaniana nasceu da reforma urbana expansionista dos Ensanches, no contexto da transformação urbana e doutrinária precursora do Urbanismo moderno na Espanha. Seus princípios vão além desses ecos, e representam o debate entre reducionismo e holismo (30). O entendimento que o Urbanismo poderia transformar a cidade privilegiando a compreensão global do espaço urbano alia-se ao entendimento de que é uma mediação de conteúdos sociais, econômicos e políticos, em torno do direito à cidade e da função social da propriedade.
Com Cerdà se redefine a categoria do urbano, domínio sistêmico reunindo circulação, edificabilidade e aproveitamento do solo, e relações entre vias (intervias), quadras, terrenos urbanizados (solares), e espaços públicos e privados. Essa complexidade indicava que o espaço urbano urgia signos diversos para representa-lo — planos, projetos e regulações.
Essa síntese e modelo geral (31), dedutiva e racionalista, enraizava-se na cultura urbanística da época, atendendo às necessidades técnicas, higienistas, sociais e administrativas. A quadra e a malha reticular e ortogonal, imaginando-se seu crescimento infinito e isótropo, conformavam o modelo para o Ensanche de Barcelona.
Embora a Espanha tenha sido impactada pelas más condições de vida advindas da industrialização, incentivando normativas higienistas, seu Urbanismo enfatizou a expansão dos centros tradicionais, refletindo-se na regulação dos Ensanches, e reforma interior das áreas centrais. Ensanchar significa expandir, aumentar, estender a cidade, e Reforma Interior, união da cidade nova e antiga, aprimorando condições higiênicas e de circulação:
“La reforma interior es una técnica urbanística de transformación de la ciudad construída, que se definió en sus aspectos fundamentales a finales del siglo XIX, y cuya legislación reguladora la asoció desde su origen a la expropiación forzosa” (32).
Privilegiou-se a desapropriação, pois contrapartidas ao poder público, na forma de cedências adviriam nas Leis do Solo de 1956 e de 1976, em que a compensação em área aos proprietários em intervenções urbanas consistirá em um dos principais instrumentos regulamentando a função social da propriedade.
As intervenções no espaço consolidado e a expansão urbana partiam do solo urbano ao urbanizável, denominando-se Reforma Interior à transformação da cidade tradicional. Os Ensanches se transformariam, criando-se duas novas categorias, solo consolidado e não-consolidado, passível então de Reforma Interior. A transformação de antigos centros urbanos era uma resposta conectiva e topológica, usando a geometria euclidiana (quadras ortogonais) e o plano topográfico, regulamentava-se o domínio integrado e sincrônico gerido pelo Urbanismo, — uma elaboração hipotética, um “poder ser”.
Os Planos de Reforma Interior persistem na atual normativa urbanística metropolitana de Barcelona, nos artigos 16, 17 e 18 da Lei de Solos de 2009 (33). No artigo 60, sistemas urbanos geral e local admitem escalas de 1: 10.000 e 1: 5.000, respectivamente, e no artigo 78, Planos Especiais de Reforma Interior — Peri, define-se uma escala local (1: 10.000) e de projeto, de 1: 2.000 para limitar o contínuo conforme relações topológicas e geométricas várias, controladas por diversas métricas.
Alinharam-se às necessidades econômicas e sociais, enfrentando a precária situação habitacional da capital catalã (34), favorecendo a conectividade, configurando novas vistas para a cidade e oportunidades à higienização, com vias de adequada largura. A construção se adequava à malha urbana planejada, subordinando-se à ordem e ao sistema, para que a cidade heterogênea funcionasse sincronicamente.
Esse modelo superou o crescimento urbano exclusivo no recinto medieval, persistente até meados do século 19. Com a demolição das muralhas em 1854, postergada pela Coroa por motivos de segurança, foi então possível construir extramuros (35). O Ensanche ocupou um território praticamente não urbanizado, marcado por importantes vias estruturais, casas de campo e fábricas (37). Traçados prévios foram integrados por Cerdà ao Plano, como o Paseo de Gracia, que ligava o recinto medieval amuralhado ao bairro do mesmo nome.
Cerdà visava uma cidade não hierárquica e equânime reproduzindo a quadra e priorizando o transporte de massa ferroviário, com opção pedestre condicionada à abertura do interior de quadras verdes, ocupando no máximo três de seus quatro lados. A quadra em bloco de 113m x 113m, com edifícios perimetrais e pátio central permeável, impôs-se como unidade. Agrupamentos de quadras conteriam equipamentos públicos (hospitais, universidades, estação ferroviária), marcando a cidade conexa e espaços públicos integrados à arquitetura, em que o espaço urbano ganharia sentido como esfera pública.
No prólogo de Teoría de la Construcción de Ciudades (1859), Cerdá critica o enfrentamento conservador dos problemas urbanos, superando a tradição ao propor uma teoria geral (nomotética) (38). Reafirma o método analítico e indutivo contemplando a história e a “natureza” da disciplina, afastando-a do empirismo e da subjetividade do projetista. Valorizando a dependência entre Ensanche e reforma interior, e a conectividade urbana, o sistema viário se implantaria a 45º em relação à trama linear e homogênea das quadras, estruturada por três grandes artérias, as avenidas Parallel, Diagonal e Meridiana, com estas duas últimas se encontrando na Praça das Glórias.
Vias e o espaço entre elas (intervias) definiriam o sistema de espaços públicos, servindo à circulação e a uma estrutura que tornava interdependentes espaço construído e cidade. Esta integração da arquitetura, do espaço livre e circulação é um dos legados de Cerdà que acompanharia o desenvolvimento da legislação urbanística espanhola: “Propone así la unidad universal de la entidad casa-predio-vial, configurando con ella la díada inescindible de vías-intervías, constitutiva de la estructura profunda del todo” (39).
Três níveis hierarquizaram a implementação do Plano (40): parcelamento do solo, urbanização e edificação. Primeiro se reparcelou o solo originalmente agrário, redistribuindo cessões de propriedade privada; depois se implantou a quadra definindo a malha reticular, e em terceiro, definiu-se como unidade a habitação indissociável das quadras, que se tornariam base para a composição arquitetônica.
As superquadras propostas pelo Plano são adotadas pelo Urbanismo moderno como unidade de ordenação do tecido urbano, replicando-se nos anos trinta. Arquitetos catalães reunidos em torno do G.A.T.C.P.A.C (41), com a colaboração de Le Corbusier, utilizaram o conceito de supermanzana, trasladado à cidade en redents corbusieriana, com edificações recuadas e funções setorizadas, visando melhor insolação e ventilação (42).
Para além desses avanços morfológicos e topológicos, a doutrina de Cerdà aporta uma contribuição decisiva para o futuro Urbanismo da Espanha, sobretudo no modo de realizar reformas urbanas.
Assim,
“Cerdà [...] entendía el Ensanche no como un proyecto, se no como un proceso, De ahi su fórmula urbanística simple de cuadricula homogénea, capaz de reproducirse a medida em que iba fluyendo, el manantial financero de los propietarios beneficiados y de la tributación acrecida” (43).
O modelo cerdaniano foi posto à prova com a intensa ocupação imobiliária das quadras do Ensanche, tomadas por construções suprimindo áreas livres e permeáveis. O princípio da função social da propriedade, no entanto, foi enunciado, ressurgindo em futuros contextos no planejamento urbano moderno, e persistindo na atualidade em diversas legislações.
Outro avanço consistiu em entender o Urbanismo como mediação entre sociedade, economia e Direito, com “la integración metodológica en el Urbanismo (técnica aplicada de la Urbanística) del Derecho público y la Economía inseparablemente entrelazadas”(44), valorizando essas disciplinas como fundamentais aos planos e projetos urbanos.
Ao compreender intervenções urbanas como produtoras de bens públicos, visou-se uma cidade higienista e funcional, igualitária e gentil à mobilidade:
“La interacción disciplinar del diseño con lo jurídico y con lo económico (de la Geometría, la Economía y el Derecho) fue una poderosa constante en el análisis cerdiano, siendo aún más, a mi entender su más trascendental aportación a la Urbanística moderna, rompiendo expresa (o conscientemente) y de manera sistemática con seis mil años de urbanismo práctico” (45).
Cerdà definiu o Urbanismo como disciplina omnicompreensiva, visando uma rede urbana ilimitada desdobrando as quadras para controle do contínuo e integração de cidade e arquitetura, esboçando futuros conceitos como superfícies de uso público e particular (46).
O sistema ortogonal de quadras corresponde a algumas estruturas espaciais descritas por Piaget (47), pois as operações infralógicas residem na topologia, nas relações projetivas dos objetos entre si de diferentes pontos de vista no espaço euclidiano, conservando ângulos e distâncias, e em relação às paralelas. A malha concebida por Cerdà consiste nessa opção por um espaço euclidiano-cartesiano, desdobrável:
“As coordenadas do espaço euclidiano não são nada mais que um ponto de partida, do que uma vasta rede estendida a todos os objetos, e consiste em relações de ordem aplicada às 3 dimensões [...] cada objeto situado nessa rede, segundo três espécies de relações simultâneas, esquerda X direita, acima X abaixo, e frente X atrás. Ao longo das retas paralelas entre si, quanto a uma destas dimensões, e cruzando-se em ângulo reto, orientadas segundo as duas outras” (48).
O espaço euclidiano faculta a Piaget o conceito de deslocamento, relativo a um sistema espacial que contém elementos móveis. Em sua aplicação urbanística, a topologia não é um domínio isolado, indo além das relações dos objetos, ampliando as noções de mobilidade e deslocamento em sistema.
O Urbanismo supera a acepção de deslocamento piagetiana (49), pois a trama de conservação espacial de linhas, paralelas e ângulos na quadrícula de “Cerdà é [...] racional, es cartesiano, en su sistema de coordenadas” (50), confirmando a solidariedade de deslocamentos no espaço. Piaget identifica deslocamentos presentes em malhas euclidianas, mas Cerdà os materializa quando concebe a quadra vinculada à casa, espaços públicos e circulação, num sistema contínuo. Deslocamentos piagetianos são definidos pela ligação de um ponto a outro, mas na cidade, circula-se por múltiplos caminhos, podendo-se ir e vir, numa trama tempo-espacial.
Avanços nacionais e autonômicos da Lei de Solos de 1956 e normativas subsequentes — transformando a topologia de Barcelona
A primeira Lei do Solo nacional de 1956, concebida pelo Arquiteto Pedro Bidagor, sistematizou princípios esboçados nas teorias cerdaniana, estendidos à doutrina de Le Corbusier. Sua contribuição foi afirmar o papel central do planejamento, e regular o uso do solo para alcançar a função social da propriedade, delegando as intervenções urbanas ao Estado com base em um amplo cadastro da terra e categorias de solo.
A Lei do Solo de 1956 é um dos pilares do Direito Urbanístico espanhol, modernista e funcionalista, aderente ao seu momento. Apoiou-se em dois princípios, o Urbanismo como função pública e o Planejamento como principal propulsor do desenvolvimento urbano (51). O Urbanismo omnicompreensivo, de Cerdà alcança expressão legal em 1956, contribuindo para uma longa tradição urbanística mediada pelo texto jurídico:
“La concepción del planeamiento como el motor del desarrollo urbanístico, lo cual implica que el crecimiento de las ciudades se supedita a un modelo previamente establecido. La expansión urbanística responderá a un diseño racional, fijado según criterios e intereses generales y al margen de los fines u objetivos de los propietarios del suelo” (52).
A propriedade privada é preservada, mas o uso, a possibilidade de edificar e a área construída são determinados pelo plano urbanístico a partir da classificação de solo — urbano, urbanizável e rural, e de sua qualificação, dirimindo sobre o uso industrial, residencial, educacional, espaços livres e verdes, determinando índices de adensamento e área total construída.
Assim, refere-se à legislação:
“La ley configura las facultades dominicales sobre los terrenos, según su calificación urbanística, constituyendo un estatuto jurídico del suelo. Las limitaciones y deberes que implica definen el contenido normal de la propiedad según su naturaleza urbana y, por tanto, no dan lugar a indemnización” (53).
Todo parcelamento do solo requer a partir de então um plano parcial de ordenamento conduzindo o crescimento urbano. Nas áreas urbanizadas incidem Planos de Reforma Interior em polígonos ou quarteirões, onde proprietários terão que ceder parte dos terrenos para ruas, parques, escolas e arcar com os custos de urbanização, organizando-se para isso em juntas de atuação.
Com o parcelamento, o planejamento urbano regulamentou usos e aproveitamento do solo, classificando-o e qualificando-o, superando a “verdadeira loteria” (expressão usada por vários autores) para que instrumentos de equidistribuição de direitos e deveres e reparcelamento fossem aplicados. Alcançam-se meios para que custos, cedências e rendas da terra fossem distribuídos compensando cada posse na área de intervenção, o que alcançou plenitude em 1975-1976, com o índice de aproveitamento médio.
A tríade solo urbano, urbanizável e rural perdurou em normas posteriores, assumindo modificações e matizes. A categoria solo urbano se manteve desde 1956, refletindo estreita relação com a cidade consolidada e histórica. Estas três classes perduraram até a promulgação da Lei 6/1998, de 13 de abril, de Regime de Solo e Valorizações, que as modifica para urbano, urbanizável e não urbanizável (54), esta última atribuída a todo solo não classificado pelo Plano Geral de Ordenamento como urbano, definido como consolidado e não urbanizável, ou solo protegido (55).
A expansão das cidades deveria responder a um desenho, segundo critérios e interesses sociais amplos, evitando atender exclusivamente aos proprietários. Uma das chaves para esse crescimento controlado é a classificação do solo, ditando o regime urbanístico de cada parcela (56).
Um dos maiores ganhos da Lei de Solo de 1956 foi classificar integralmente o território nacional, e não apenas as grandes cidades, o que tornou possível operacionalizar outro princípio que Cerdà esboçou, a justa distribuição dos benefícios e encargos da urbanização, distribuindo equitativamente direitos e deveres entre proprietários afetados por intervenções urbanas (57).
A Lei de Solo de 1956 reconheceu a mais valia urbana, e a participação social nos benefícios e ônus gerados pelo Urbanismo. Ao reconhecer o solo como mercadoria, exigiu compensação dos ganhos privados aos empreendedores imobiliários, restituindo ao poder público despesas com infraestrutura. Esta lei reforça a integração das linguagens de planos e projetos, e sua capacidade de criar um todo coerente e sincrônico, estabelecendo a relação entre o particular (individual e discernível) e o texto jurídico (lógico e matemático) que classifica, quantifica e prescreve condutas.
Esse avanço incentivou o Supremo Tribunal Espanhol (58), a declarar: “las leyes establecen por sí mismas, o por remisión a los instrumentos normativos del planeamiento, los deberes y límites intrínsecos que configuran la función social de la propiedad del suelo, desde el punto de vista de la ordenación del territorio” (59). A passagem esclarece uma ação de intera legem: está de acordo com as leis, mas não diretamente ditada pelas leis.
As características infralógicas da linguagem e do contínuo, definindo a discernibilidade e individualidade das partes (60), criam uma complexa rede de posições, vizinhanças, conexões e tempos. A figura do proprietário (o “indivíduo”) se define no âmbito urbano, e se este contínuo se transforma, transformam-se a parte, e a noção de propriedade:
“La propiedad no debe considerarse como un don hedonista del individuo, sino que ha de ser entendida como propiedad activa, de hecho, dinámica, portadora de nuevas riquezas para la comunidad. No es sólo un derecho; es también un deber” (61).
A Lei de Reforma de 1975, e o Texto Refundido de 1976 que afetaram o solo urbano revelaram um aprimoramento de significado, com as categorias solo urbanizável programado, e solo urbanizável não programado, ampliando o leque das classificações anteriores. Essa depuração do sentido de urbano e urbanizável (62) aproximou a legislação da realidade, pois definiu esses atributos pelo grau de urbanização e edificação, ou grau de desenvolvimento físico e urbanístico.
O Texto Refundido da Lei de 1976 propôs o aproveitamento médio, ou transferência de índices de edificabilidade, para gerir o aproveitamento do solo e as dotações destinadas a áreas verdes e espaços livres (63). A classificação de competência nacional logo seria mitigada, pois a Constituição Espanhola de 1978 e os Estatutos das Autonomias destinaram o Urbanismo à responsabilidade dessas Comunidades. A Constituição assegurou princípios gerais à política urbana e à regulação do solo para controlar a especulação imobiliária, e reconheceu que a mais-valia urbana era o meio de recuperação de contrapartidas públicas a partir dos ganhos dos atores privados, legitimando o interesse público do Urbanismo (64).
Atribuições e competências se desdobraram em futuras normas urbanísticas, diversificando o solo urbanizável e a urbanizar, com o Real Decreto Legislativo 1/1992, de 26 de junho, no Texto Refundido da Lei sobre o Regime do Solo e Ordenação Urbana (Texto Refundido de 1992, nos artigos 97.2 e 96.3) (65). Este dispositivo, substituído pela Lei de Solos de 1998, estabeleceu que as Autonomias poderiam fixar outras classificações equivalentes à Lei Nacional.
A normativa de 1992 chegou ao ápice do controle estatal das ações urbanísticas e dos deveres dos proprietários, iniciado em 1956 pela classificação tripartite. Em abril de 1997, uma sentença do Tribunal Constitucional anulou praticamente toda a lei do solo de 1992, obrigando cada Comunidade Autônoma a criar suas próprias classificações, e facultando aos municípios seu ordenamento.
Esta última orientação se manteve na Lei de Solo de 1998, preservando os direitos básicos de propriedade e de sua valorização em caso de desapropriação em todo território espanhol, bem como flexibilizando o conceito do solo urbano:
“El suelo que, a los efectos de esta Ley, no tenga la condición de urbano o de no urbanizable, tendrá la consideración de suelo urbanizable, y podrá ser objeto de transformación en los términos establecidos en la legislación urbanística y el planeamento aplicable” (66).
A Lei de 1998 confronta avanços históricos do Urbanismo, como promover o crescimento urbano em áreas consolidadas. As cedências dos proprietários para áreas públicas diminuiram, e no tecido consolidado se verifica “el monopolio de los propietarios en la apropiación de los aprovechamientos urbanísticos que la comunidad ha creado, así como la prioridad de los mismos en el desarrollo de la actividad urbanizadora” (67).
A norma de 1998 representa uma involução do planejamento urbano democrático, eliminando instrumentos urbanísticos vinculados pela Lei de Reforma Urbana, vigente desde 1956. O esgarçamento das obrigações de cedência incentiva a elevação do preço da terra, novas centralidades junto às rodovias e ferrovias, e o surgimento de condomínios e loteamentos suburbanos e polígonos comerciais e de lazer, abrigando desde shopping-centers até parques temáticos, instalando-se nos mesmos eixos que antes demandaram altos investimentos, fortalecendo articulações dos agentes imobiliários e do capital financeiro.
Desde a década de sessenta, a política do governo central dirimiu que todas as cidades de médio e grande porte conteriam Zonas industriais (polígonos), regulados pelas leis do solo e planejamento. Com a desindustrialização e a expansão competitiva de mercados globais nos anos de 1980 (68), os polígonos que restaram se localizavam em eixos viários, e muitos se esvaziaram ou nunca se desenvolveram, mudando de uso com a legislação de 1998:
“Así, incluso las localizaciones que en su momento se pensó que podían ser destinadas a la reversión para devolverlas a sus usos inicialmente agrários se han vuelto a dinamizar [...]. Se trata de las pequeñas y medianas industrias o actividades del sector terciario que salen de las ciudades y desean instalarse en las áreas industriales¨. Polígonos industriales, hoy áreas de actividad económica” (69).
Incentiva-se o espraiamento urbano com a formação de coroas periféricas na região metropolitana, e a ocupação maciça das orlas marítimas, fenômeno iniciado nos anos setenta com a procura da casa de campo ou litorânea (a “segunda vivenda”) (70), agravado exponencialmente com o relaxamento das leis do solo e de aproveitamento construtivo, destruindo ou comprometendo ecossistemas no interior e no litoral.
A reforma legal de 1998 consagrou o modelo neoliberal que em tese encontraria seu equilíbrio na lei da oferta e procura, consagrado na retração do papel regulador do Estado. Tornando o Estado agenciador e promotor do capital imobiliário, de acordo com a política expansionista de mercados do governo conservador de José María Aznar (Partido Popular, PP) (71), favorece-se a especulação da terra. Com o afrouxamento do crédito pessoal sem garantias concretas, concedido pelas inúmeras caixas econômicas (“cajas de haorros”) locais e grandes bancos, cria-se um ciclo de valorização dos imóveis levando à bolha imobiliária e à crise do subprime, de 2007 (72).
Em busca de um novo contínuo
Em 2007, a legislação do solo nacional é revista para se adequar ao discurso de desenvolvimento sustentável da União Europeia, e integração do mundo urbano ao meioambiente. O solo é entendido como recurso natural, escasso e não renovável, conflitando com a visão de 1998 de valorização do crescimento econômico. A Lei do Solo intensificou os deveres dos proprietários, elevando o percentual dos ganhos públicos com mais-valias geradas pelo sobrevalor da terra, ao determinar percentuais de reserva de solo para habitação protegida; regulamentou a expansão urbana, submetendo-a a estudos ambientais e de sustentabilidade econômica e ambiental. A norma manteve as classificações e qualificações para as Autonomias, estabelecendo duas grandes categorias, solo urbanizado e rural.
O conceito de solo rural se transforma, devendo ser preservado por seus valores históricos e culturais integrados à economia, paisagem e ecossistema. Essa visão holística elimina o caráter residual do solo rústico presente na Lei de 1998, na qual somente o solo de valor estratégico deveria ser preservado, e o “restante” classificado como urbanizável. Essa nova classificação permitiu aos planejadores valorizar a cidade compacta e conectada, e facilitou à legislação urbana e territorial das Autonomias preservar o solo rural.
O Plano Territorial Metropolitano de Barcelona, publicado em abril de 2010 com 3.236 km2, engloba 164 municípios ordenados por sete Planos Parciais Territoriais — PTPT, compondo o Plano Geral da Autonomia catalã. O Plano regula três sistemas, espaços abertos, assentamentos e infraestrutura de mobilidade, com escala de 1: 50.000. Esta escala, distante da local e urbana, permite trabalhar em detalhes a matriz biofísica e os assentamentos humanos, gerando uma nova cultura de ordenamento territorial em busca da melhor escala, e invertendo o clássico “ordenamento em cascata”, já que planos parciais constroem o plano geral a partir da leitura do território. A técnica gera policentralidade, pois não se departe de um plano maior e abstrato: “el Programa de Planejament Territorial no ha adoptat la via clàssica d’anar del general al parcial, si no al contrari” (73).
O sistema de espaços abertos ganha nova abordagem na década de 1990, com a evolução da Biogeografia, Biologia da Conservação e Ecologia da Paisagem, estudando a interação do homem com a natureza: “que proposen actuar sobre el territori entès com un sistema on s’identifiquen els elements i els fluxos que existeixen a la natura, i la interacció que sobre aquesta realitza l’home [...] cai a ideia preconcebida de ilha da natureza” (74).
O Plano Territorial Metropolitano de Barcelona — PTMB incorporou estratégias da Cúpula Rio/1992 para a Conservação da Biodiversidade, e da Carta das Cidades Europeias para a Sustentabilidade de Aalborg, 1994 (75), como as cidades compactas e em rede, economizando deslocamentos e preservando espaços abertos. Redes ecológicas de espaços naturais e agrícolas limitariam a expansão urbana, valorizando espaços heterogêneos conectados, a partir da diversidade territorial e critérios de preservação, e valores ambientais.
A escala do PTMB varia de 1: 50.000 a 1: 100.000, classificando e incorporando decisões do Plano Geral Metropolitano de Barcelona — PGMB, de abrangência comarcal (76), unificando os sistemas de espaços abertos, assentamentos e mobilidade. A escala do PGMB é de 1: 10.000, incluindo Barcelona e sua comarca, que desde 1976 são planejadas sincronicamente, favorecendo integrar distintas esferas administrativas.
Essa integração permite tratar a matriz biofísica em todas as escalas, superando divisões administrativas, contribuindo para gerir recursos como água potável, renovação de ar, tratamento de resíduos e provisão de alimentos. A expansão da malha urbana municipal pode ser controlada sistemicamente, analisada como renovação de áreas degradadas nos limites do município, mobilidade e transportes mais eficazes, contribuindo nas decisões de manter populações no lugar de residência ou adensar a cidade consolidada. Diversas escalas incluem o meio biofísico como principal variável para articular ambiente e assentamentos, tornando-se instrumento para decidir sobre o urbano e sua expansão.
A rigorosa classificação do sistema de espaços abertos se apoiou na Ecologia da Paisagem, apresentada em Mosaico territorial para a região metropolitana de Barcelona (77), estudo do ecossistema catalão adaptado durante alguns anos à escala de 1: 50.000 do PTMG.
O recorte do contínuo no PTMB, com base em mapas e estudos ecológicos, e refinada leitura das características geográficas e econômicas, demonstra a evolução das prioridades e decisões de ordenamento urbano e regional, do “pode ser ideal”. Transitou-se dos mapas topográficos dos séculos 18 e 19 com intuito arrecadatório e indutor do crescimento ininterrupto das cidades, às atuais cartografias que incluem a sociedade e seus objetos (cidade, fábricas, etc.) num ecossistema local, o PTMB, e em seus estudos climáticos e ecológicos de escala global.
Demonstra-se o papel da linguagem do plano e do projeto, ao representar e compreender uma complexa realidade transformada, contribuindo para a criação do contínuo multidirecional e sincrônico.
Considerações finais
O artigo apresentou a transformação de princípios expressos em planos, normas e projetos urbanos, frente a circunstâncias e concepções do contínuo. Evidenciou o diálogo das linguagens que representam esse processo, e múltiplas conexões intertextuais, esclarecendo transformações, conflitos, tensões, e urgências sociais.
O diálogo intertextual revela operações e instrumentos propriamente espaciais, — infralógicos — e sua representação. Operações infralógicas expressam relações espaço- temporais, e fundamentam a produção do espaço urbano, sujeita à contingente definição do contínuo e de seus limites. Estes limites definem o que é singular e discernível, transformando escalas e meios para representa-las. Múltiplos recortes, do município à região metropolitana, transitam de territórios definidos por fronteiras administrativas a uma visão ecológica, sustentável e multifatorial.
A evolução urbana na Espanha e o debate do Plano Cerdà para o Ensanche de Barcelona apresentam a concepção de cidade cara ao Urbanismo moderno e expansivo, e o diálogo de múltiplos atores sociais. O plano, centrado na mobilidade urbana moderna, adotou a quadra ortogonal para uma indefinida expansão urbana, em busca de resposta holística incluindo circulação, controle de edificação e aproveitamento do solo, baseando-se nas noções de intervias, terrenos urbanizados (solares), e relações entre público e privado.
Importantes marcos normativos evidenciaram transformações de visões sobre o urbano e o rural, tecido consolidado e não consolidado, enfatizando que textos respondem a processos, atores e interesses distintos. Princípios da Lei de Solo de 1956, da Lei de Reforma de 1975, acolhida pelo Texto Refundido de 1976, da normativa de 1992 (apogeu do controle estatal das intervenções urbanísticas e deveres dos proprietários) foram analisados, assim como a Lei 6/1998, de 13 de abril — Regime de Solo e Valorizações, e a legislação de 2007, com afinidade à União Europeia, introduzindo o desenvolvimento sustentável na pauta do ordenamento territorial.
A Lei do Solo de 1956 revela as visões modernista e funcionalista, e dois princípios inovadores, o Urbanismo como função pública, e o planejamento como principal instrumento de ordenamento urbano. Embora reconhecendo a importância da participação social nos benefícios e ônus da transformação induzida, esse avanço se consolidou com a legislação de 1975-6, em plena democratização do Estado espanhol. A visão centralista de controle urbanístico atinge o ápice em 1992, cedendo passo integralmente à prática oposta em 1998, quando o mercado se torna o principal agente de decisão na transformação urbana.
Com a legislação de 2007, o solo é abordado como recurso natural, escasso e não renovável, em conflito com as práticas urbanísticas de 1998, que priorizaram o crescimento econômico do espaço urbano. Ao se adotar escalas diversas, o meio biofísico se tornou o epicentro do diálogo com os assentamentos humanos, tornando-se instrumento de decisão sobre o que é urbano.
O modelo de Cerdà, inovador ao emergir, não é suficiente para pensar e produzir o espaço urbano, e a matriz biofísica e o sistema holístico formado por novos limites do contínuo se interpõem como meio para decidir onde e como cidades e metrópoles podem (ou não) crescer. A linguagem do plano e do projeto urbano e a legislação discursaram visões que pulsavam o ímpeto moderno da cidade expansiva, que hoje urge técnicas, processos e meios para a sustentabilidade e o equilíbrio ambiental. Se o Ensanche podia se integrar ao centro consolidado para formar o contínuo que a modernidade alentou, um novo recorte se impõe como esperança de um território capaz não só de se expandir, mas criar e preservar a vida.
notas
1
PIAGET, Jean; INHELDER, Barbel. A representação do espaço na criança. Porto Alegre, Artes Medicas, 1993.
2
ABASCAL, Eunice Sguizzardi; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 204.06, Vitruvius, mai. 2017 <https://bit.ly/2ZN5siB>.
3
PIAGET, Jean. Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro, Zahar,1976, p. 54-5.
4
Idem, ibidem.
5
Idem, ibidem.
6
PIAGET, Jean. Op. cit., p. 55.
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
9
FERRAZ, Alexandre Augusto; TASSINARI, Ricardo Pereira. Como o sujeito compreende as estruturas lógico-matemáticas abstratas? In Como é possível o conhecimento matemático? As estruturas lógico-matemática a partir da Epistemologia Genética [online]. São Paulo, Editora Unesp/Cultura Acadêmica, 2015, p. 118.
10
Como exemplo, podemos melhor compreender essa independência de linguagens que dialogam por meio da análise da composição do IPTU, Imposto Predial Territorial Urbano. O valor deste é calculado por meio da localização, da área construída e idade do imóvel, o que é determinado por signos infralógicos, propriamente espaciais. Essas condições determinam a individualidade e a discernibilidade do imóvel, só existindo um único naquela posição no mundo. O proprietário inclui-se na classe lógica dos contribuintes, mortais e humanos, gerando herança. Mas esse indivíduo não se define e sequer pode ser decomposto em linhas, ângulos, superfícies etc, os elementos sígnicos e semânticos que o definem são diferentes daqueles das classes infralógicas.
11
JEFATURA DEL ESTADO. Ley de 12 de mayo de 1956 sobre régimen del suelo y ordenación urbana. BOE n. 135 <https://bit.ly/3171nWQ>.
12
Ver: GOVERNO DA ESPANHA. Real Decreto 1346/1976, de 9 de abril, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley sobre Régimen del Suelo y Ordenación Urbana. BOE n. 144, de 16 jun. 1976 <https://bit.ly/3muwBzv>; REAL DECRETO LEGISLATIVO 1/1992, de 26 de junio, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley sobre el Régimen del Suelo y Ordenación Urbana. BOE n. 156, de 30 jun. 1992 <https://bit.ly/3CwY7SD>; LEY 6/1998, DE 13 DE ABRIL, SOBRE RÉGIMEN DEL SUELO Y VALORACIONES. BOE n. 89, de 14 abr. 1998 <https://bit.ly/3pRkJJP>; Ley 8/2007, de 28 mai., de suelo. BOE n. 128, de 29 de mai. de 2007 <https://bit.ly/3vYClVp>.
13
PIAGET, Jean; INHELDER, Barbel. Op. cit.
14
GOULART, Jefferson de Oliveira. O marco institucional da política urbana e a Espanha e apontamentos comparativos com o Brasil. Lua Nova, n. 103, São Paulo, 2018, p. 233-259 <https://bit.ly/3jRarFV>.
15
BARROS; Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 2ª Edição. São Paulo Edusp, 2009.
16
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 4ª. Edição. Coleção Estudos/E.046. São Paulo, Perspectiva, 2010.
17
PIAGET, Jean; INHELDER, Barbel. Op. cit.
18
ABASCAL, Eunice Sguizzardi; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação (op. cit.).
19
Idem, ibidem.
20
PIAGET, Jean. Op. cit.
21
ABASCAL, Eunice Sguizzardi; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação (op. cit.).
22
PEIRCE, Charles Sanders. Op. cit.
23
“Solo” parece conter um significado simples, mas na historia da legislação urbanística espanhola, objeto deste artigo, admite uma complexa trama de sentido: «superfície de terra» , física e concreta, não coincide com o uso do termo exclusivamente em sua acepção jurídica, mas deve ser compreendido em sua relação com o construído, passando então a se identificado com «Sitio ou solar de um edifício», entendido então como superfície artificial para que o edifício se encontre solido.
24
POSCHER, Ralph. Teoria de um fantasma — A malsucedida busca da Teoria dos Princípios pelo seu objeto. In CAMPOS, Ricardo. Critica da ponderação. Método constitucional entre a dogmática jurídica e a teoria social. São Paulo, Saraiva, 2015.
25
PEIRCE, Charles Sanders. Op. cit.
26
URTEAGA, Luis; NADAL, Francesc. Historia de la cartografia urbana en Espana. Governo da Espanha, Modelos Y Realizaciones, 2017. CT: Catastro, n. 63, 2008 <https://bit.ly/3pRHPQP>.
27
Idem, ibidem.
28
Esse Edicto, suas complementações e alterações vigeram ate a aprovação do Plano de Cerdà para o Ensanche.
29
PIAGET, Jean: INHELDER, Barbel. Op. cit.
30
GARCIA DE DIEGO, Javier-García-Bellido. Ildefonso Cerdà y el Nacimiento de la Urbanística: La Primera Propuesta Disciplinar de su estructura profunda. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, n. 61, Universidad de Barcelona, 1 abr. 2000 <https://bit.ly/3EuOT9V>.
31
Idem, ibidem.
32
PASCUAL, Guillen Cervera et al. La renovación urbana y su régimen jurídico: Con especial referencia a la Ley de economía sostenible, Ley 2/2011, de 4 de marzo, y el Real Decreto-Ley julio. Urbanismo, Medio Ambiente y Derecho. Madrid, Editorial Reus S.A., 2013, p. 74.
33
MANCOMUNITAT DE MUNICIPIS DE L'ÀREA METROPOLITANA DE BARCELONA. Normativa Urbanística Metropolitana. Barcelona, La Capell, 2009 <https://bit.ly/2XZAoeG>.
34
LEOTE, Isabel Navas. A adaptabilidade das malhas urbanas — função do traçado, uso e serviço à mobilidade: Estudo do tipo “supermanzana” — casos em Barcelona e Lisboa. Dissertação de mestrado. Lisboa, IST Instituto Superior Técnico de Lisboa, 2015.
35
MUXI, Zaida. Episódios da transformação urbana de Barcelona. Revista Arqtexto, v. 17, Porto Alegre, 2010, p. 104-123.
36
idem, ibidem.
37
idem, ibidem.
38
GARCIA DE DIEGO, Javier-García-Bellido. Op. cit.
39
Idem, ibidem.
40
LEOTE, Isabel Navas. Op. cit.
41
Movimento catalão dos anos 1930, consonante com a vanguarda europeia, em especial com o racionalismo.
42
LEOTE, Isabel Navas. Op. cit.
43
Idem, ibidem, p. 65.
44
GARCIA DE DIEGO, Javier-García-Bellido. Op. cit.
45
Idem, ibidem, p. 10
46
Idem, ibidem.
47
PIAGET, Jean: INHELDER, Barbel. Op. cit.
48
Idem, ibidem, p. 394.
49
Sobre o tema, ver ABASCAL, Eunice Sguizzardi; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação (op. cit.).
50
CIRICI POLLICER, A. Significacion del Plan Cerdà, In Quaderns d'arquitectura i urbanisme, n. 35, 1959, p. 47 <https://bit.ly/3Cx3iBQ>.
51
MANSO, María del Carmen. La Clasificación del Suelo Urbano en el Contexto Urbanístico Actual de Regeneración de la Ciudad. Revista Aragonesa de Administración Pública, n. 37, 2010 <https://bit.ly/3w3p3qK>.
52
GIFREU I FONT, Judith; COMA, Martín Bassols; REXACH, Angel Menéndez; BALLBÉ PRUNÉS, Manuel (org.). El derecho de la ciudad y el territorio estudios en homenaje a Manuel Ballbé Prunés. Madrid, Instituto Nacional de Administración Pública, 2016 <https://bit.ly/3pT3jNe>.
53
Lei de 12 de maio de 1956 sobre Regime do Solo e Ordenação Urbana. Exposição de Motivos. Boletim do Estado, n. 135, Madrid <https://bit.ly/3pQ0IDs>.
54
GOULART, Jefferson de Oliveira. Op. cit.
55
Idem, ibidem.
56
MANSO, María del Carmen. Op. cit.
57
Idem, ibidem.
58
REXACH, Ángel Menendez. Derecho Privado y Constitución, n. 3, mai./ ago. 1994, p. 75 <https://bit.ly/3Cz9gCu>.
59
Idem, ibidem.
60
ABASCAL, Eunice Sguizzardi; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação (op. cit.).
61
REXACH, Ángel Menendez. Op. cit.
62
MANSO, María del Carmen. Op. cit.
63
Para entender mais sobre a compensação e índice médio, ver Lei do solo de 1976, art. 83 e 84 <https://bit.ly/3GN2OdF>.
64
GOULART, Jefferson de Oliveira. Op. cit.
65
Real Decreto Legislativo 1/1992, de 26 de junho, aprovando o Texto Refundido da Lei sobre o Regime do Solo e Ordenação Urbana (Texto Refundido de 1992) <https://bit.ly/3nLBq6L>.
66
Lei de Solo 1998, artigo 10, p. 4 <https://bit.ly/3CxZMXQ>.
67
ROCA, Josep; BURNS, Malcolm. La liberalización del mercado de suelo en España Reforma de la legislación urbanística de 1998. Cadernos do IPPUR, ano XII, n. 2, Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Ippur, 1998, p. 13.
68
HARVEY, David. Cidades rebeldes. Do direito às cidades e à revolução urbana. São Paulo Martins Fontes, 2014.
69
NAVARRO, Gonzalo. Polígonos industriales, hoy áreas de actividad económica. Urbanismo COAM — Revista oficial del Colegio de Arquitectos de Madrid, n. 11, 1990, p. 40 <https://bit.ly/3ExNbEG>.
70
ABASCAL, Eunice; BILBAO, Carlos. Das intervenções setoriais à cidade-região: o Plano Bilbao Biscaia Next — processos, avanços e desafios. GOT, n. 14, Porto, set. 2018, p. 5-46 <https://bit.ly/3Gzmrpf>.
71
GOULART, Jefferson de Oliveira. Op. cit.
72
HARVEY, David. Op. cit.
73
plano territorial metropolitano de Barcelona — memorial. Barcelona, Comissão de Ordenação Territorial Metropolitana de Barcelona, 2020, p. 36 <https://bit.ly/3nHIG3M>.
74
Idem, ibidem, p. 38.
75
Carta das Cidades Europeias para a Sustentabilidade. Conferência Europeia sobre Cidades Sustentáveis, 1994 <https://bit.ly/3jOpS1K>.
76
Plano Geral Metropolitano de Barcelona (PMGB). Barcelona, 2020 <https://bit.ly/2ZEiCOr>.
77
FORMAN, Richard T. T. Mosaico territorial para la región metropolitana de Barcelona. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2011.
sobre os autores
Eunice Helena S. Abascal é arquiteta e urbanista, professora da área de História e Teoria da Arquitetura, docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Carlos Abascal Bilbao é arquiteto e urbanista e mestre em Ciências Sociais pela Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais FESP da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.