A igreja mãe da Companhia: Gesù de Roma
Entre as obras emblemáticas que foram utilizadas como referência na formulação inicial da arquitetura jesuítica, o principal marco é a igreja de Gesù em Roma — a igreja mãe da Companhia.
Quando o padre Francisco de Borja chegou à Roma em 1550, os jesuítas pregavam em uma pequena capela que não comportava o crescente número de fiéis. A construção de sua igreja levou quase quarenta anos, com três cerimônias de pedra-fundamental, e envolveu seis arquitetos até sua consagração: Giovanni Di Bartolomeo Lippi, Michelangelo Buonarotti, Jacopo Barozzi da Vignola, Giacomo Della Porta e os conselheiros jesuítas Giovanni Tristano e Giovanni De Rosis. A obra foi executada com o patrocínio de sucessivos mecenas que, também, interferiram nos projetos.
O projeto inicial é atribuído a Giovanni Di Bartolomeo Lippi, dito Nanni di Baccio Bigio (1550) e tinha como patrocinador Alfonso de Villalobos. Nanni projetou uma igreja de nave única com seis capelas laterais não comunicantes, provavelmente com forro plano, transepto inscrito e abside.
Com a morte de Alfonso, o patronato da obra passou ao cardeal Bartolomeo della Cueva que escolheu Miguel Ângelo Buonarotti como arquiteto (1554). Uma planta existente na Galeria Degli Uffizi, em Florença, é atribuída a Bartolomeo de Rocchi, com prováveis correções de Miguel Ângelo. As obras continuaram com dificuldades, por questões imobiliárias referentes ao alinhamento do terreno e por falta de recursos.
Em 1561 o cardeal Alessandro Farnese, acometido de grave doença, se compromete com o Superior Geral, padre Diego Laínez, a ser o patrocinador da igreja, em troca de sua recuperação. Foi nomeado, então, como projetista, Jacopo Barozzi da Vignola, representando o mecenas, de quem recebeu instruções para fazer uma igreja bem proporcionada, segundo as regras da boa arquitetura, com uma nave, capelas laterais e abóbada na nave, em 1568 (1).
Vignola, no entanto, contestando e tentando superar os aspectos funcionais solicitados pela Companhia, que eram controlados pelo conselheiro de edificações Giovanni Tristano, propõe uma cobertura com forro plano no grande salão (2).
Baseado nas orientações de Farnese, Vignola define a planta definitiva em 1568 e passa a fazer estudos para a fachada. Mas considerando o alto custo da obra proposta por Vignola, Farnese resolveu consultar outros arquitetos (3).
Em 1570 foi realizado um concurso para definição da fachada, buscando menor custo, o máximo rendimento e perfeição. Basicamente, participaram dois projetos, o de Vignola e o de Giacomo Della Porta. Os dois com semelhanças arquitetônicas e estruturais, mas o fator determinante para a escolha do projeto de Della Porta foi o menor custo (4).
Concluídas as obras estruturais, a igreja foi consagrada em 1584 pelo papa Sisto V ao Santíssimo Nome de Jesus, sendo logo denominada il Gesù e colocada sobre a entrada um escudo com o anagrama da Companhia — IHS (5).
A Igreja de São Miguel Arcanjo
No que se refere à igreja da redução de São Miguel Arcanjo, é preciso referir que este povoado teve três assentamentos. O primeiro em 1632, na região do Tape, hoje Rio Grande do Sul. Devido aos ataques de bandeirantes, sua população abandonou o povoado, atravessou o Rio Uruguai e criou um segundo assentamento em terras hoje argentinas. Passadas algumas décadas, os missioneiros começaram a retornar, fundando sete povoados no lado Oriental do rio Uruguai, entre os quais São Miguel Arcanjo, em 1697.
E em cada um destes três assentamentos foi construída, no mínimo, uma igreja. Dos dois primeiros não se conhecem vestígios, provavelmente pela precariedade das construções. Do terceiro, onde a redução prosperou e se consolidou, temos significativos remanescentes preservados do povoado e de sua igreja (6).
A reconstituição da história e arquitetura desta igreja envolveu vários profissionais ao longo do tempo, entre os quais estão os argentinos Guillermo Furlong, os arquitetos Mario Buschiazzo, Hernán Busaniche, Ramón Gutierrez e Norberto Levinton e o historiador de arte Darko Sustersick. E no Brasil, desde 1937, os técnicos do Instituto do Patrimônio e Histórico e Artístico Nacional — Iphan ou a seu serviço, Lucio Costa, Lucas Mayerhofer, Julio Curtis, Fernando Leal, Odair Almeida, Luiz Custódio e Vladimir Stello. As hipóteses e interpretações de cada momento vêm sendo precisadas e complementadas na medida em que se revelam novas fontes documentais ou são realizadas obras e pesquisas arquitetônicas ou arqueológicas in situ.
Quanto às descrições históricas, os principais registros que apresentam com riqueza de detalhes a situação de São Miguel Arcanjo em seu apogeu são os diários do capitão Jacinto Rodrigues da Cunha, português, e D. Francisco Grael, espanhol, que acompanharam a comitiva vitoriosa de Gomes Freire de Andrade após a Guerra Guaranítica e ocuparam São Miguel em 17 de maio de 1756.
Sobre a igreja, Cunha observou:
“Do dito alpendre, pelo qual se entra subindo dois degraus de pedra, e andando cinqüenta e quatro palmos para a porta da igreja; tem outra para cada lado, com altura tal, que não corresponde à altura, feitas com algumas talhas antigas pelas quais se entra para o corpo da dita igreja [...] cujo corpo é de pedra de cantaria com o interior caiado, e o teto forrado de madeira em forma de abóbadas [...]. Altura da torre até o primeiro sobrado, trinta e quatro palmos. Altura deste até o das sineiras (onde tem seis sinos), vinte e sete. Altura de toda a torre sessenta e um palmos; sua largura trinta e seis palmos [...] onde se vê cinco altares, quatro no cruzeiro, e o maior que é de talha nova ordinária no cruzeiro, da parte do Evangelho tem seis altares, um de Santo Inácio, e outro de Nossa Senhora da Conceição, de muito boa grandeza de talha dourada, e com pinturas modernas, sendo os outros dois antigos e mal acabados, e já acabados por velhos” (7).
D. Francisco Grael, registrou:
“A igreja é muito capaz, toda de pedra de cantaria, com três naves e meia-laranja, muito bem pintada e dourada, com um pórtico magnífico, e de belíssima arquitetura; abóbadas e meia-laranja são de madeira [...] o altar-mor de talha sem dourar, e lhe falta o ultimo corpo: no cruzeiro há três altares de talha, os dois à italiana, recém dourados (8).
Entre as representações gráficas mais precisas da igreja estão as iconografias Vista e elevação da Igreja do Povo de São Miguel (1784) de Joseph Maria Cabrer, que a desenhou em seu apogeu durante o processo de demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, após a saída dos jesuítas, e a Vista da Igreja de São Miguel em Ruínas (1846), do pesquisador francês Alfred Demersay, contratado pelo governo do Paraguai para escrever a história daquele país.
Construção & personagens
Geralmente se atribui o projeto da igreja de São Miguel Arcanjo apenas ao irmão arquiteto Giovanni Battista Primoli. Vários autores que estudaram esta obra concordam que sua construção envolveu três personagens: o padre Francisco de Rivera, espanhol, de Toledo e os irmãos Primoli, arquiteto italiano, de Milão; e José Grimau, arquiteto e pintor espanhol, de Barcelona. As diferentes etapas e as transformações por que passou esta obra, durante e após a presença jesuítica, foram descritas por Vladimir Stello (9).
A observação dos remanescentes, as diferentes fábricas, acabamentos e ocorrências permitem verificar a radical diferença de conceito de projeto dos dois personagens principais que a construíram, o padre Rivera e o irmão arquiteto, Primoli. Um dilema entre continuidade e ruptura.
A primeira etapa de construção corresponde ao padre Rivera que foi responsável por São Miguel entre 1714 e 1735. Ele queria uma igreja com as características tradicionais dos templos missioneiros: um grande galpão com pórtico frontal, coberto. Tinha justificativas funcionais para tanto.
Na tradição européia, a lógica das construções dos templos católicos era iniciar pela “cabeceira” (capela-mór) e concluir pelos “pés” (a frontaria). Rivera provavelmente iniciou as obras em 1731 pelo nivelamento do terreno, com a construção de um muro de contenção, junto à quinta. As obras do templo começaram pelas sacristias, presbitério e estruturas do transepto com muros de cantaria feitos por blocos regulares de arenito aparelhado, assentados sobre argamassa de barro (10).
A elegante portada da sacristia, provavelmente baseada nos tratados da arquitetura do Renascimento, e o criativo capitel na pilastra do ângulo externo, com espirais e florão em baixo-relevo, desenhado por Lucio Costa em 1938, indicam o extremo cuidado do projeto de Rivera.
Os muros de cantaria são montados com blocos aparelhados de arenito ou grês, assentados sobre argamassa de barro. Externamente, são marcados por uma sucessão de grandes quadros rebaixados, detalhe que se repete internamente, nas naves laterais.
O arquiteto Primoli veio da Europa junto com personagens importantes da história jesuítica americana como Giovanni Andrea Bianchi, arquiteto e Domenico Zípoli, músico. Chegou a Buenos Aires em 1717 e de lá foi para Córdoba, sede da Companhia, onde terminou o noviciado e acompanhou algumas obras (11). Em Buenos Aires participou com o arquiteto Bianchi das principais construções que se realizavam na cidade. Sua missão, entretanto, era trabalhar nas reduções onde, a partir de 1730, executou diferentes obras em Candelária, La Cruz, São Miguel, Trinidad e Concepción, onde teve oportunidade de desenvolver suas ideias (12).
Rivera não tinha condições de assumir, sozinho, os aspectos espirituais e os temporais da crescente redução. Em 1732, Primoli, com quase 60 anos, foi chamado para auxiliá-lo na obra da nova igreja. Um irmão incomparável e infatigável (13).
Quando ele chegou, a obra da igreja estava com paredes laterais executadas até quase metade da nave. Analisando os remanescentes se verifica a marca da interrupção da primeira etapa, evidenciada por uma linha inclinada entre fiadas das faces leste e oeste da edificação.
Com larga experiência construtiva, Primoli idealizou um templo com características técnicas e estilísticas inovadoras em relação ao padrão tradicional missioneiro. Propôs uma edificação de três naves, sendo a central mais alta, com paredes, pilares e arcos portantes, forros em abóbadas de pedra ou ladrilhos e, no transepto, uma cúpula. E, uma frontaria sem pórtico.
Rivera argumentava que não havia cal na região para construir as pesadas e complexas estruturas em pedra, previstas por Primoli. E insistia no pórtico. Com isto se iniciou uma longa disputa, entre o padre e o arquiteto.
As obras da segunda etapa, que provavelmente correspondem a Primoli, dão continuidade aos alinhamentos iniciados por Rivera, sem as marcações em quadros ou elementos decorativos. A nova fábrica é visivelmente diferente da anterior, tanto na dimensão das pedras, como na qualidade das fiadas e acabamentos.
As espessas paredes laterais eram duplas, executadas com pedras de cantaria, aparelhadas nas faces externas e o interior preenchido com barro e pedras irregulares (14). No interior das naves eram reforçadas por maciços salientes alinhados aos suportes das arcadas, que funcionavam como contrafortes, preparados para receber as estruturas em arcos e as abóbadas de pedra e ladrilhos, previstas por Primoli. As pedras da construção eram trazidas de duas jazidas de arenito localizadas nas proximidades do arroio Santa Bárbara, a cerca de 20km do povoado.
As paredes eram “branqueadas” com argila clara (tabatinga), acabamento que ainda pode ser observado em trechos remanescentes, principalmente na frontaria (15). As peças que integravam elementos decorativos como cimalhas e capitéis eram talhados com maior precisão e esmero. As vergas da porta central e da janela da frontaria eram enormes monoblocos de pedra. As vergas das portas das naves laterais, em madeira. É provável que nesta etapa também tenha sido construído o batistério, na parte frontal opsta à torre, no lado da epístola, com acesso pela nave. E, possivelmente, também tenha tido uma cripta para os padres, sob o transepto, junto à capela mor, como em Trinidad, também obra de Primoli.
A frontaria provavelmente foi concluída até 1735, antes do retorno de Primoli a Buenos Aires (16). No mesmo ano, Rivera foi designado para a redução de Santo Tomé. E entre 1735 e 1736 nenhum dos dois esteve em São Miguel.
Primoli voltou no início de 1737 para construir a torre (terceira etapa) que, evidentemente, foi executada junto à frontaria, após sua conclusão. Isto é evidente nos arremates decorativos da cimalha que envolve as laterais da frontaria que, com a construção da torre, ficaram encobertos (17). Os campanários eram peças fundamentais na dinâmica cotidiana das reduções onde os toques dos sinos coordenavam todas as atividades da população. Geralmente eram estruturas independentes, muitas vezes de madeira, localizadas no pátio dos padres, afastadas da residência.
Uma inscrição existente em um dos capitéis da torre apresenta a data ‘1739 AÑOS’, o que pode coincidir com a conclusão das obras de Primoli em São Miguel. Em 1740 ele foi transferido para Trinidad e dali passou para Candelária, onde faleceu em 1747 (18).
Rivera voltou para São Miguel em 1740, aos 72 anos, como arquiteto. Veio concluir as obras da igreja, colocar as coberturas e construir o seu desejado pórtico. Nesta etapa foram executados os forros em abóbadas nas naves, a meia-laranja e o zimbório, todos com estruturas de madeira cobertas por telhados cerâmicos. As estruturas das abóbadas das naves laterais foram encaixadas em sulcos que foram abertos sobre os arranques em pedra, deixados por Primoli.
Em 1744 chegou a São Miguel o irmão José Grimau, com 26 anos. Provavelmente foi ali que adquiriu experiência em construções, como auxiliar de Rivera (19).
O pórtico era uma enorme estrutura em estilo maneirista, elevada em relação à praça, com nove arcos, cinco dos quais frontais, com pilastras de fustes cilíndricos e ordem compósita, apoiadas em plintos. Seu frontão tinha uma balaustrada com a imagem do arcanjo São Miguel, ao centro, com três apóstolos de cada lado. Sobreposto à frontaria de Primoli, encobriu nichos, pilastras, capitéis e metade da imponente janela central.
Foi primorosamente desenhado e construído com blocos de arenito mais regulares que os da frontaria, como para ser exibido sem revestimento. Seus ornamentos, minuciosamente esculpidos, provavelmente foram a contribuição artística de Grimau, que ficou responsável pela conclusão da obra após a morte de Rivera em 1747.
A disputa entre os dois idosos arquitetos fica visível na maneira grosseira como foram abertos buracos sobre a cornija da frontaria para engastar a estrutura do pórtico.
Depois do período jesuítico, a igreja passou por significativas intervenções, com redução da nave, em função de incêndio (1789), da diminuição por vírus e do êxodo de sua população. As estruturas comprometidas pelo sinistro, principalmente na arcada lado evangelho, foram refeitas com blocos regulares de arenito com argamassa onde se observa a presença de cal. As partes superiores de ambas as arcadas e a cornija mestra foram refeitas em tijolos. Estas obras podem ser consideradas como uma quinta etapa (20).
São Miguel Arcanjo & Il Gesù: breve relação
A igreja de São Miguel é um templo em cruz latina, com três naves, com transepto, presbitério e sacristias nas duas laterais. Tem como dimensões externas cerca de 82 metros de comprimento e 30 de largura.
Sua planta não seguia a tradição da ordem jesuítica proposta pelo conselheiro Tristano e pelas Instructiones de Carlo Borromeo, que incentivavam igrejas de nave única, como a de Gesù. Da mesma maneira que em Gesù, São Miguel tem seu transepto inscrito, mas com a cabeceira reta. As duas amplas sacristias ficavam ao fundo, uma delas se comunicava diretamente com a residência, como sugeria De Rosis (21).
Sua frontaria repete basicamente os principais elementos de composição da igreja de Gesù, onde o exterior anuncia a estrutura do interior: uma estrutura em dois corpos, com o coroamento por frontão triangular.
O primeiro nível abrangendo as três naves, com três portadas, sendo a principal ao centro, mais alta, emoldurada com frisos, pilastras e capitéis. Entre a porta central e as laterais, dois nichos em torre, provavelmente também com as imagens de Santo Inácio e São Francisco Xavier, como em Gesù. Pressupõe-se que a obra em arenito, disposta no alpendre do Museu das Missões, seja uma delas.
Conectando os dois corpos, uma solução semelhante à adotada por Della Porta em Gesù, volutas laterais duplas.
No segundo nível, sobre a nave central, uma ampla janela vertical, emoldurada por frisos e pilastras que sustentam a cimalha, com mísulas. Sob o parapeito, o guarda-corpo com baixo-relevo plano reproduz uma balaustrada, como em Gesù, que, pelos vestígios, era pintada em verde.
O frontão, em nível bem mais alto que o da cumeeira, com nicho oval ao centro e, sobre o ápice, a cruz sobre o globo, com raios fulgurantes, ladeada, nas duas extremidades, por pináculos em chamas.
A composição vertical da frontaria está marcada por linhas de pilastras planas, simples ou duplas (em par, pareadas) e em partes com contrapilastras, todas coroadas por capitéis de ordem compósita, sobrepostas por entablamentos com cornijas e frisos denticulados, todos executados por múltiplas peças encaixadas.
A diferença se estabelece na medida em que em Gesù, maneirista, se intercalam e sobrepõem planos verticais, enquanto que em São Miguel, barroca, se introduz a parede curva, por meio de duas ondulações côncavas verticais “que trespassam as cornijas e o frontão, com conjuntos de curvas sobrepostas, que dão movimento e volume ao edifício” (22).
Além dos elementos que contribuem ao dramatismo barroco da composição, o frontispício de São Miguel apresenta uma leve inclinação para frente, principalmente na área central, em parte por utilização de requintado artifício de projeto destinado a dar mais grandiosidade ao monumento. O efeito de êntase era utilizado na arquitetura clássica para corrigir ilusão ótica. Esta peculiaridade foi observada pela presença de blocos com juntas niveladas e faces inclinadas em pilastras. Também foi verificado ligeiro desaprumo estrutural na frontaria, comprovado, internamente, por rachaduras no primeiro arco, nas duas arcadas da nave (23). O mesmo efeito também deve ter sido utilizado na frontaria da igreja de Trinidad, observando os remanescentes.
Assim como em Gesù, o projeto de São Miguel também propôs a construção de uma cúpula sobre o transepto. A falta de cal na região, na época em que se executou a obra de alvenaria, com semelhante complexidade, determinou que a construção fosse de madeira. Logo, em lugar de cúpula em pedra — a cúpula celeste —, o que se construiu foi um zimbório em tambor, de base octogonal, provavelmente com aberturas, coberto por telhados triangulares, e internamente com abóbada em meia-laranja.
No interior, as naves estão separadas por duas grandes arcadas formadas por sete arcos de meio ponto, com aduelas de pedra, sustentados por grandes maciços de alvenaria, com pilastras duplas na nave — como as de Gesù — e capitéis como os da fachada, sustentando a cornija mestra (24).
O forro, uma abóbada de berço, de madeira, com lunetas conectando as janelas localizadas sobre a arcada. As naves laterais também eram cobertas por abóbadas de aresta de madeira e, na parte superior de suas paredes, janelas com arcos abatidos.
Ao lado do Evangelho, alinhada à fachada, a torre, construída com três corpos, marcada verticalmente por pilastras duplas com capitéis de ordem compósita até o segundo nível, acompanhando a estrutura formal da fachada da igreja. O terceiro corpo era marcado por linhas que davam continuidade às pilastras dos corpos anteriores. Na face norte, no centro do segundo corpo, uma janela retangular e, no terceiro, outra, em arco de meio ponto, na altura dos sinos.
A cobertura da torre era feita com telhado em quatro águas com galbo com gárgulas em forma de cabeça animal nas quatro arestas. Sobre o ápice, uma cruz com catavento em forma de galo, dourado, sobreposto a uma esfera, o globo (25).
Epílogo
Certamente Primoli conhecia a Igreja de Gesù porque trabalhou em Roma, assim como as Instruções de Borromeo, cardeal de sua cidade, Milão. Os padres espanhóis provavelmente conheciam os livros com gravuras de Vignola, as plantas comunes de De Rosis e os projetos de Juan de Herrera, consultor dos jesuítas na Espanha.
Sem dúvida, o ponto alto do trabalho de Primoli nesta obra é sua monumental frontaria barroca. E, pela qualidade do pórtico é indispensável recuperar o papel de Rivera, sem desmerecer a importância de Primoli. Uma obra que provavelmente foi escola para Grimau.
A igreja de Primoli definitivamente não se constitui em exemplar de arquitetura missioneira, mas pura tipologia jesuítica. Talvez o pórtico tenha sido o gesto de Rivera na tentativa de vincular São Miguel aos peculiares templos da Paraquária.
No que se refere a Il Gesù, sua imagem se espalhou, em múltiplas versões, de oriente a ocidente, demarcando territórios. Como São Miguel Arcanjo, hoje no Brasil.
Uma em branco, travertino. Outra em arenito, branqueada. Sempre com alguma relação. Mesmo que seja breve...
notas
NE — O artigo foi originalmente baseado em capítulo da tese de doutorado Ordenamientos Urbanos y Arquitectónicos en el Sistema Reduccional Jesuítico Guaraní de la Paracuaria: entre su normativa y su realización, que teve como referência o texto preliminar apresentado nas 12 Jornadas Internacionales sobre las Misiones Jesuíticas (Buenos Aires, 2008), sendo revisto e complementado. CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Ordenamientos Urbanos y Arquitectónicos en el Sistema Reduccional Jesuítico Guaraní de la Paracuaria: entre su normativa y su realización. Tese de doutorado. Sevilha, Universidade Pablo de Olavide, 2010, p. 274.
1
PECCHIAI, Pio. Il Gesù di Roma descritto ed illustrato. Roma, Societá Grafica Romana, 1952, p. 46.
2
BENEDETTI, Sandro. Tipologia, ragione volezza e pauperismo nel “modo nostro” della’architettura Gesuitica. In BENEDETTI, Sandro. Fuori dal classicismo. Roma, Multigrafica Editrice, 1984, p. 87.
3
PECCHIAI, Il Gesù di Roma descrito e ilustrato. Roma, Societá Grafica Romana, 1952, p. 64.
4
Idem, ibidem, p. XV-72.
5
PATETTA, Luciano. Storia e Tipologia. Cinque saggi sull’architettura del passato. Milano, CLUP, 1993, p. 171.
6
GUTIERREZ, Ramón. La misión jesuítica de San Miguel. Revista Dana, n. 14, Resistencia, Cedodal, 1982, p. 64.
7
CUNHA, Jacinto Rodrigues da. Diário da Expedição de Gomes Freire de Andrada às Missões do Uruguai (1a e 2ª Partes). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 16, Rio de Janeiro, 1853, p. 298.
8
GRAELL, Francisco. O passado missioneiro no diário de um oficial espanhol. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 1998, p. 88.
9
STELLO, Vladimir Fernando, Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo: avaliação conceitual das intervenções 1925-1927 e 1938-1940. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PPGEC, UFRGS, 2005, p. 62.
10
SUSTERSIK, Bosidar Darko. Templos Jesuítico-Guaraní. Buenos Aires, Filo UBA, 1999, p. 61.
11
FURLONG CARDIFF, Guillermo. Arquitectos argentinos durante la dominación hispánica. Buenos Aires, Huarpes, 1946, p. 195.
12
GIURIA, Juan. La Arquitectura en el Paraguay. Buenos Aires, Instituto de Arte Americano, 1950, p. 49; HERNÁNDEZ, Pablo. Organización social de las doctrinas Guaraní de la Compañía de Jesús. Barcelona, Gustavo Gili, 1913. 2 v., p. 359.
13
LEAL, Fernando Machado. São Miguel das Missões — estudo de estabilização e conservação das ruínas da igreja. Revista do Iphan, n.19, Rio de Janeiro, 1984, p. 74.
14
Idem, ibidem, p. 84.
15
FURLONG-CARDIFF, Guillermo. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes. Buenos Aires, Imprenta Balmes, 1969, p. 552.
16
GUTIERREZ, Ramón. Op. cit., p. 64; BUSQUIAZZO, Mario J. La Arquitectura de las Misiones del Paraguay, Moxos y Chiquitos. In ANGULO IÑINGUEZ, Diego. Historia del Arte Hispano Americano. Barcelona, Salvat Editores S.A., 1956, p. 708.
17
SUSTERSIK, Bosidar Darko. Op. cit. p. 61; GIURIA. op. cit. p. 97.
18
CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. São Miguel Arcanjo, uma trajetória. In Remanescentes da Igreja da Redução de São Miguel Arcanjo: Levantamento Cadastral. Porto Alegre, MinC/IPHAN/12ªCR, 1995, p. 5.
19
SUSTERSIK, Bosidar Darko. Op. cit. p. 67.
20
Idem, p. 76-77.
21
PAIVA, Francisco. 2001 Il Gesù. UBI, p. 14. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/f Consultado em 29.06.2008.
22
Custódio, 1995, op. cit. p. 4.
23
CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Ordenamientos Urbanos y Arquitectónicos en el Sistema Reduccional Jesuítico Guaraní de la Paracuaria: entre su normativa y su realización. Tese de doutorado. Sevilha, Universidade Pablo de Olavide, 2010, p. 274.
24
CUNHA, Jacinto Rodrigues da. Op. cit., p. 298.
25
GALLEGOS, Matthew E. Charles Borromeo and catholic tradition regarding the design of catholic churches. SAJ. v. 9, 2004, p. 6 <https://bit.ly/3GB6KOw>.
sobre o autor
Luiz Antônio Bolcato Custódio é arquiteto; foi técnico e diretor do Iphan e professor do PPGAU Uniritter Mackenzie. Especialista em Preservação do Patrimônio Cultural (CECTI, Florença, 1986), mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS, 2003), doutor em História da Arte e Gestão Cultural (UPO, Sevilha, 2011).