“Nós percebemos, entendemos e descrevemos nosso mundo experiencial considerando a nós mesmos como o ponto de referência e centro” (1).
A arquitetura possibilita a comunicação entre pessoas e ambiente por meio de fenômenos, viabilizando atividades nos espaços. Os acontecimentos, ou experiências que ali ocorrem, condicionam as emoções e sentimentos dos indivíduos, que sensorialmente buscam referências que os conectem com sua essência – seu centro.
A arquitetura conecta as pessoas aos espaços através de características sensíveis, revelando atmosferas. Essas, são percebidas através de sensações presentes no lugar, de forma material e imaterial, tangível e intangível, possíveis de serem sentidas e observadas pela vivência, pois geram significados e sentimentos às pessoas, que se concentram na experiência do lugar.
As características se consideram imateriais quando se observam as qualidades intangíveis do espaço, como a luz, o vento, a temperatura, e o silêncio, por exemplo. E materiais quando as qualidades tangíveis são consideradas, como as cores, texturas e objetos que conformam o ambiente. A associação entre as duas delimitações – material e imaterial – faz com que o foco se torne a experiência da pessoa no ambiente, com atenção aos fenômenos que possibilitam as vivências no lugar.
Questiona-se então, qual a contribuição da arquitetura na relação entre as pessoas e o ambiente, considerando que cada lugar possui qualidades particulares que geram significados e emoções às pessoas, relacionando às suas vivências de mundo. Desde modo, este artigo se define como um ensaio teórico, e se compromete a interpretar a arquitetura como experiência, a partir das atmosferas do lugar.
Arquitetura como experiência: abordagem fenomenológica
“O ato de habitar é o modo básico de alguém se relacionar com o mundo” (2).
O ser humano se reconhece a partir do lugar que habita, a partir de sua cultura, costumes e paisagens. Ele habita, na medida em que conduz sua própria essência (3).A natureza do ser sustenta suas crenças a partir de atividades realizadas no espaço e quando esse adquire significado, se torna um lugar (4). Isso indica que a arquitetura media os fenômenos entre as pessoas e o espaço, compreendendo as experiências no ambiente construído.
Um dos caminhos teóricos para discutir a mediação da arquitetura de forma sensível, é a abordagem fenomenológica, que observa os fenômenos do lugar ou a experiência que a pessoa tem ao se relacionar com a arquitetura, pois o espaço vivido é o espaço das experiências de mundo (5), que se difere de pessoa para pessoa.
A fenomenologia defende a percepção do lugar de maneira realista e consciente, através de um relato do espaço, do tempo, do mundo vivido a partir do corpo como referência. É a tentativa de uma descrição direta da experiência tal como ela é (6). A fenomenologia estuda intenções (7), que são ações conscientes do indivíduo ao se relacionar com o ambiente e com seus objetos (8).
Assim, a arquitetura pode ser observada, descrita e interpretada a partir de fenômenos, que permitem a comunicação entre pessoas e ambiente. A partir do momento em que a pessoa se relaciona com o ambiente, está se relacionando com a arquitetura, que pode ser compreendida como experiência, reforçando a realidade e identidade pessoal do indivíduo (9).
O artigo aborda uma discussão teórica através desse contexto, permeando a fala de arquitetos fenomenólogos, que consideram o corpo como referência para sentir o espaço. Arquitetos fenomenólogos defendem que a vivência do espaço é fundamental para que se perceba o mundo, pois as atmosferas do lugar, através de uma leitura sensível, potencializam as conexões entre o ser e seu habitat.
A experiência da pessoa é o meio mais importante e mais apropriado de avaliar a arquitetura (10). Deste modo, a pesquisa neste campo investiga os arquitetos fenomenólogos que trabalham criando atmosferas arquitetônicas. Estudando-as tanto teoricamente, quanto aplicada no processo de projeto, pesquisando de que forma esses entendem a arquitetura como experiência.
Três autores se destacam: Juhani Pallasmaa (11), Peter Zumthor (12) e Steven Holl (13), que expressam a arquitetura de forma sensível, como experiência. Eles fazem a conexão entre filosofia e arquitetura, pois falam da fenomenologia como um modo de descrever o espaço a partir da pessoa como centro.
Ao contrário da filosofia ou da arte, a arquitetura tem potencial para se comunicar com todos (14) e é fundamental que o profissional entenda que seu trabalho se destina a perdurar até um futuro distante (15) e, portanto, deve pensar em uma arquitetura sensível que possibilite a vivência durante o tempo permitindo que as pessoas sintam empatia pelo lugar (16). A empatia pelo lugar pode ser demonstrada através de qualidades sensíveis, percebendo as sensações por meio das atmosferas que o ambiente propicia.
A arquitetura, nesse sentido, tem o papel de comunicação entre pessoas e ambiente, mediando essa relação através dos fenômenos que ocorrem. Essa conexão se dá e se intensifica com as qualidades sensíveis do lugar – materiais e imateriais – que propiciam as atividades e revelam as atmosferas no espaço.
Mais do que apenas direcionar as pessoas de um espaço a outro para cumprir tarefas do cotidiano, a arquitetura é intrinsecamente sensível e se refere à experiência do indivíduo em relação aos espaços, de modo que características e qualidades sensíveis do lugar revelam sentimentos. E essas experiências devem ser multi-sensoriais (17), ou seja, devem considerar o corpo como referência para sentir os espaços.
Nessa linha, a arquitetura se torna atemporal e considera as experiências além da forma e da função. Cria, a partir de metáforas, lugares para a existência do ser no mundo (18). Essa arquitetura prioriza automaticamente a experiência direta, sensorial do espaço, dos materiais e da luz (19) através do corpo que não deve ser inerte, mas ativo às sensações do ambiente (20).
Qualidades sensíveis: revelando as atmosferas do lugar
A atenção às experiências do corpo são estimuladas através dos sentidos, por características do ambiente – como as cores, texturas, luzes, cheiros, temperatura, vento etc. – que por meio de atmosferas propiciam as sensações e sentimentos no ser humano.
A arquitetura, a partir dessa vertente, orgânica e humanista, deve se constituir de atributos sensíveis que emocionam pela experiência de vivenciar um espaço, através de atmosferas. No trabalho dos arquitetos citados, se percebe essa preocupação com a necessidade de criar atmosferas provendo as sensações nos edifícios, promovendo a arquitetura como experiência.
A vivência do lugar, para Zumthor (21), depende das sensações do espaço, que se dão através de características sensíveis e sua relação com os sentidos humanos, pois a percepção da arquitetura se dá pela capacidade de captar esses detalhes, que são experienciados diferentemente por cada pessoa, averiguando os fenômenos através das atmosferas do lugar (22).
Aqui se verifica a importância da experiência e vivência do lugar, reconhecendo os detalhes no local determinados por condicionantes únicas e características particulares. Além disso, o estímulo dos sentidos aperfeiçoa a percepção do ambiente, que pode ser entendido de diversas maneiras a partir do olhar, do toque, dos aromas, sabores, sons ou diferenças de temperatura. Robert McCarter e Juhani Pallasmaa (23) acreditam que,
“A arquitetura [...] envolve uma experiência incorporada, determinada pelo alcance e pela compreensão de nossa mão, o toque de nossos dedos, a sensação de calor e frio em nossa pele, os sons de nossos passos, a postura que tomamos e a posição de nossos olhos” (24).
Uma das formas de investigar essa concepção é observar – não só através dos olhos – o que o ambiente expressa por mensagens, que podem ser recebidas pelos sentidos de acordo com a experiência pessoal do observador (25). Além dos sentidos já conhecidos, há ainda o julgamento das sensações ocultas, como a orientação, gravidade, equilíbrio, estabilidade, movimento, duração, continuidade, escala e iluminação (26), características imateriais que complementam o corpo físico.
Quando as pessoas interagem com os ambientes para produzir significados – geram-se sensações e emoções em um determinado lugar. Neles, mesmo que em um vazio, existem características, que podem ser chamadas de qualidades sensíveis – materiais ou imateriais – que conformam espaços, delimitam, diferenciam e transformam (27). São essas qualidades ocultas no espaço, que revelam as sensações sentidas pelas pessoas, as atmosferas.
Por isso, o corpo é a referência para se considerar um espaço. Por meio dos sentidos humanos, considerados em conjunto, interpretam-se características que expressam as atmosferas do lugar. Essas atmosferas não são percebidas apenas pela observação do espaço, mas principalmente pelas sensações vivenciadas nele.
Se observam, assim, as características que são invisíveis ou ocultas no espaço depois de se vivenciar o lugar, através das sensações do ambiente. A partir de detalhes, a arquitetura é desafiada a formar um todo de inúmeras peças singulares que se diferenciam em forma e função, no material e no tamanho (28), tendo um papel essencialmente mediador (29).
Observando as sensações do lugar
Uma das formas de estudar a experiência no lugar é frequentá-lo e vivenciá-lo em diferentes dias e horários, para identificar o comportamento das pessoas e atividades ali realizadas.
Em um primeiro contato, a observação dos materiais e sua relação com as pessoas é considerada, mas se percebe que além deles, são as sensações e qualidades intangíveis que propiciam as atmosferas do espaço. O som, por exemplo, uma qualidade intangível, faz parte da atmosfera do lugar porque é repercutido no vazio do edifício, uma qualidade material. A luz, difusa no interior do edifício, tem um efeito pela grande ou pequena quantidade de aberturas existentes no lugar. A sensação de acolhimento ou afastamento, acontece pela diferença de alturas na transição do interior e exterior do edifício.
O mesmo acontece com o comportamento das pessoas. Os passos e respiração só se tornam audíveis pelo silêncio, ou se dissipam pela quantidade de som amplificado pelo vazio e seus materiais, por exemplo. Estes entendimentos revelam a arquitetura como mediadora de atividades e sensações.
Outra característica importante é a luz, que não se separa da arquitetura e é considerada desde a concepção do edifício até a construção e finalização da obra. Os elementos escolhidos para a composição do local, de maneira imaterial, são responsáveis pela atmosfera da luz no espaço, pois a incidência dela expressa as características de cada elemento, como a tonalidade das cores, a reflexão, a opacidade, as sombras, os volumes, criando as formas do espaço e suas características sensíveis, para estimular os sentidos do corpo e sensações reveladas pelas atmosferas do lugar.
Essas características se mostram como um conjunto de atributos e qualidades que necessitam de um arranjo tangível para acontecer, dando sentido às atividades que ali acontecem. Mas ainda, são as sensações que geram emoção em um lugar. Desta forma, a arquitetura como experiência – através de qualidades sensíveis – revela as atmosferas do lugar.
A arquitetura condiciona fenômenos quando há pessoas realizando atividades no espaço e essas relações possibilitam a interpretação das características do ambiente a partir dos aspectos materiais e imateriais, que formam as atmosferas do espaço. Em essência, procura-se o entendimento dos aspectos que envolvem a relação das pessoas com o ambiente para formar significados.
Os significados dão sentido às necessidades humanas, através das suas origens, culturas e compreensão de ser no mundo. O posicionamento, forma, e demais qualidades sensíveis em um conjunto, criam as atmosferas do lugar, que proporcionam sensações por meio dos sentidos do corpo emocionando as pessoas.
Considerações
“Está surgindo um interesse pelos fenômenos das atmosferas, ambiências, sentimentos, humores e sintonias, bem como pelo entendimento da real natureza multissensorial e simultânea da percepção. Esse novo interesse na experiência está redirecionando a pesquisa da forma e das estruturas formais para experiências dinâmicas e processos mentais” (30).
A arquitetura condiciona atividades através da concepção dos ambientes. A fenomenologia e a sua relação com a arquitetura foi entendida como a experiência que uma pessoa possui em um lugar por meio das qualidades sensíveis, sentindo as atmosferas a partir da vivência adquirida como um ser no mundo.
A parte sensível da experiência depende da relação das pessoas com o ambiente em si, a partir da apropriação que as pessoas têm ao tocar um objeto, ao realizar um gesto, ao visualizar uma imagem, pois se comunicam de alguma forma, mesmo que silenciosa, com o lugar para expressar as sensações que experienciam. A partir desse tema, se entendem as características materiais e imateriais do lugar, suas particularidades e maneiras de serem encontradas, através das experienciação das atmosferas.
Esse artigo se interessou pela experiência de se vivenciar o lugar, tomando o corpo como referência na interpretação dos ambientes. Como principal consideração, há relação entre pessoas e ambiente, que se dá através das atmosferas do lugar, reveladas por características materiais e imateriais do lugar, que mediam a comunicação entre pessoas e ambiente, gerando significados.
A fenomenologia auxiliou a percepção da arquitetura como experiência, observando o lugar e suas características através dos fenômenos. O tema desse trabalho é um caminho de interpretação relevante a ser seguido, mas é preciso lembrar que uma experiência não é igual a outra, e a percepção de uma pessoa é individual nesse campo.
Diversos questionamentos persistem ao realizar esse trabalho, pois ao organizar as ideias e materiais em textos e imagens, outras concepções de abordagem do estudo de caso surgem. A arquitetura como experiência, através das atmosferas, é uma contínua leitura sensível do lugar, que através das percepções, media a comunicação entre pessoas e ambiente.
notas
1
MCCARTER, Robert; PALLASMAA, Juhani. Understanding Architecture. New York, Phaidon, 2012, p. 11. Tradução das autoras.
2
PALLASMAA, Juhani. Habitar. São Paulo, Gustavo Gili, 2017, p. 7.
3
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 125-141.
4
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva de experiência. São Paulo, Difel, 1983.
5
MALARD, Maria Lucia. As aparências em arquitetura. 1ª edição. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996.
6
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 3.
7
CERBONE, David R. Introdução: exercícios de abertura. In CERBONE, David R. Fenomenologia. 3ª edição. Petrópolis, Vozes, 2014, p. 11-24.
8
SOKOLOWSKI, Robert. O que é intencionalidade, e por que é importante? In SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. São Paulo, Edições Loyola, 2000, p. 17-24.
9
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre, Bookman, 2011.
10
MCCARTER, Robert; PALLASMAA, Juhani. Op. cit. Tradução das autoras.
11
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (op. cit.).
12
ZUMTHOR, Peter. Atmosferas: entornos arquitetônicos – as coisas ao meu redor. Barcelona, Gustavo Gili, 2006.
13
HOLL, Steven. El Croquis: Steven Holl, 1986-1996, n.78, Madrid 1996. In ZAERA-POLO, Alejandro (org.). Arquitetura em Diálogo. São Paulo, Ubu, 2016, p. 238-275.
14
Idem, ibidem.
15
RASMUSSEN, Steen Eiler. Arquitetura vivenciada. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
16
IBELINGS, Hans. Supermodernismo: arquitetura na era da globalização. Barcelona, Gustavo Gili, 1998.
17
PALLASMAA, Juhani. Espaço, Lugar e Atmosfera: emoção e percepção periférica na experiência da arquitetura. Lebenswelt:Aesthetics and philosophy of experience, v. 1, n. 1, Milão, 2014, p. 230-245 <https://bit.ly/3n7UDj4>.
18
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (op. cit.).
19
IBELINGS, Hans. Op. cit.
20
BOUTINET, Jean-Pierre. Antropologia do projeto. 5ª edição. Porto Alegre, Artmed Editora S.A., 2002.
21
ZUMTHOR, Peter. Atmosferas: entornos arquitetônicos – as coisas ao meu redor (op. cit.).
22
Idem, ibidem.
23
MCCARTER, Robert; PALLASMAA, Juhani. Op. cit. Tradução das autoras.
24
Idem, ibidem, p. 5. Tradução das autoras.
25
BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura. In NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica 1965-1995. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 142-161.
26
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (op. cit.).
27
BULA, Natália Nakadomari. Arquitetura e fenomenologia: qualidades sensíveis e o processo de projeto. Dissertação de mestrado. Florianópolis, UFSC, 2015.
28
ZUMTHOR, Peter. Pensar a arquitectura. 2ª edição. Barcelona, Gustavo Gili, 2009.
29
PALLASMAA, Juhani. Essências. São Paulo, Gustavo Gili, 2018, p. 105.
30
Idem, ibidem, p. 117.
sobre as autoras
Carolina Bini é arquiteta e urbanista graduada na Universidade do Vale do Itajaí (2017), mestre (2019) em Arquitetura e Urbanismo pelo PósARQ UFSC. Docente no curso de Arquitetura e Urbanismo da Famesul Uniasselvi, na área de Projeto Arquitetônico.
Maristela Moraes de Almeida é arquiteta e urbanista graduada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1984), mestre (1995) e doutora (2001) na área de Ergonomia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente e pesquisadora no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, na área de Projeto Arquitetônico.