Altas velocidades: forte coeficiente de financeirização
"O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade" (1), categorizava Milton Santos, articulando a velocidade enquanto campo filosófico e conceitual intimamente ligada às relações capitalistas, dando destaque não somente a aspectos espaciotemporais, sobretudo, às formas com que a predominância das altas velocidades incompatibiliza práticas daquele que não a experimentam. Em suas análises e reflexões, o autor orienta a velocidade é um braço de uma economia veloz, ou seja, um esquema do capital para engendrar relações que primem pela técnica, competitividade, instantaneidade e uma profusão de sons e imagens que cristalizam outras experiências que escapam dessa narrativa.
Nesse sentido, importa-nos refletir sobre esta chave de leitura sob duas escalas concomitantes e de igual importância: a nebulosa construção da estrutura veloz e a forma como ela se territorializa, mas mais especificamente, como ela desenha os corpos e as formas de apropriação territorial. Para isso, quando refletimos sobre o tema da velocidade, no contexto de autopistas, nos parece questionável a hegemonia de uma ambivalente relação: da predominância por uma narrativa da alta velocidade e do modo específico de sermos submetidos a ela.
Assim, consideramos que as altas velocidades são uma hegemonia que tendem a tornar os deslocamentos unicamente corredores, achatar e sedimentar superfícies de contato e pré-determinar formas específicas de comunicação, favorecendo desarticulações socioespaciais, tanto por meio de sua forma quanto sua narrativa, que ocorrem de maneira simultânea e conjunta. Sobre esse assunto, Virilio considerou que o "estreitamento das distâncias se transformou numa realidade estratégica com consequências econômicas e políticas incalculáveis" (2), pois a lógica que tinha como objetivo "ceder terreno para ganhar tempo" (3) cai por terra, já que este tempo foi conquistado somente por fluxos e não por quem efetivamente exerce o movimento. A prática desse movimento enquanto circulação, ou seja, o ato de circular, acaba por submergir numa dimensão qualitativa, quando não mais podemos apreendê-lo, mensurá-lo e compreendê-lo. Nesse sentido, é importante considerarmos o movimento como presente, ou seja, ato de percorrer como indivisível, enquanto o espaço percorrido é passado e divisível (4).
Dessa maneira, se o Estado, em parceria com a iniciativa privada, investe em rodovias, invariavelmente, vem fazendo isto em autoestradas de altas velocidades, causando uma impressão de desmanche do território. Milton Santos (5) indica não haver formação territorial que não seja também social, ou seja, o território não é formado unicamente por relações de poder, mas também por agentes que o usam e dele se apropriam. Por conta disso, não devemos analisar somente o território em si — o que Santos denomina "território-forma", o espaço geográfico do Estado –, mas, também, o "território usado", que é material e social, constituído por usos e apropriações do primeiro (6). Portanto, em um território onde se lhe imprimam altas velocidades, nele ocorrem, igualmente, reverberações sociais das mesmas.
Nesse sentido, é importante de se considerar que a metrópole contemporânea tem sido produzida em meio a processos neoliberais, no que tange à política econômica, mais especialmente, à forma como eles se instalaram em diferentes instâncias de nossas vidas. Na virada da globalização, observamos o fortalecimento do discurso e pensamento únicos (7) de que a metrópole seria um dos eixos do capital, transformando-se numa suposta mercadoria imaterial. Notamos isto pela predominância de discursos (8) e dispositivos (9) a determinar modos específicos de uso e apropriação dos territórios urbanos, mostrando não uma economia meramente política, mas produções de subjetividade (10), ou seja, uma economia subjetiva (11) engendrada na lógica neoliberal dessas economias.
Isto tem direcionado a circulação do território urbano contemporâneo, predominantemente, por meio de instrumentos que primam por uma velocidade única, privatizada e estritamente funcional, numa gestão monetizada da vida e dos corpos. Dessa forma, há uma banalização dos planejadores acerca da produção territorial pós-industrial, vinculada exclusivamente ao capital, que se desenvolveu ainda mais após 1970, na tríade de análise social e cultural formada por globalização, neoliberalismo e financeirização (12).
Globalização e neoliberalismo são termos mais utilizados na academia e apropriados por diferentes locais fora dela e fazem parte do nexo territorial desenvolvido por gestões que primaram pela diminuição do tamanho da máquina estatal, em operações privatizadoras e de cerceamento de espaços. Tais operações ocorrem numa contínua mercantilização da vida, na confirmação do que Foucault afirmou ser uma sociedade do porvir, que não se trataria de "uma sociedade submetida ao efeito-mercadoria", mas de "uma sociedade submetida à dinâmica concorrencial. Não uma sociedade de supermercado — uma sociedade empresarial" (13).
Observamos a concentração dessas intervenções atualizadas pelo processo de neoliberalização governado, por meio das chamadas Parcerias Público Privadas — PPPs (14). Estas são observadas sem o Estado se retirar da "governança", mas que, de outro modo, exerce "seu poder de forma mais indireta, orientando tanto quanto possível as atividades dos atores privados e incorporando ao mesmo tempo os códigos, as normas e os padrões definidos por agentes privados" (15). Dessa maneira, diferente de uma debandada do Estado, ocorre uma espécie de acoplamento dele ao mercado, confirmado através de discursos que visam o "'interesse nacional', a 'segurança do país', o 'bem do povo'" (16), produzindo mais concorrências e políticas que garantam vantagens às empresas.
De um modo distinto, Dardot e Laval consideram que, de outrora "árbitro" dos interesses, o Estado se tornou "parceiro" (17), em que são colocadas as cartas na mesa e definidas quais as conveniências para ambos, realizando a gestão da infraestrutura do território urbano. Já a noção de financeirização caminha para o mesmo sentido dos dois termos anteriores, mas tendo como ponto comum processos que implicam na terra como valor ativo, não cumprindo sua função social. Isto não é algo relativamente novo enquanto fenômeno, já que, conforme orienta David Harvey (18), logo na proposta de renovação da Paris de Georges-Eugène Haussmann no século 19 é possível de se observar um investimento no excedente da produção do espaço. Entretanto, o que vale ressaltar é a transformação dessa produção na lógica predominante. Nesse sentido, ao observarmos as grandes vias expressas que compõem o sistema rodoviário paulista — mais especialmente as concedidas pelo governo à iniciativa privada –, é inevitável não refletirmos sobre a especulação fundiária que acontece por conta delas.
Governo das estradas
"Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas” (19), afirmava o ex-presidente paulista Washington Luís em 1920, quando ainda era governador do estado de São Paulo. Proclamava, assim, a íntima e remota relação entre governar e fazer estradas presente no processo rodoviarista brasileiro, evidenciando o modo de circulação urbana e territorial a imperar até os dias atuais, em especial, quando observamos a lógica paulista de governar.
Ao longo de décadas do século passado, o desenvolvimento das rodovias foi sendo cada vez mais amplificado e incrementado, alijando tanto outras formas de deslocamento no território, quanto maneiras de exploração mais efetiva de outras matrizes energéticas renováveis e ecologicamente mais adequadas. No caso específico do estado de São Paulo, isso se acelerou devido à expansão e consolidação da lógica industrial da capital paulista; à necessidade de espraiamento para o interior; e à utilização da malha ferroviária já existente enquanto eixo estruturante para a substituição para a malha viária, entre a capital e várias cidades paulistas.
Neste contexto, podemos apontar diferentes vias que interligam a capital e o interior, como a mais conhecida delas, o Sistema Anhanguera-Bandeirantes (20), tendo como eixo a ligação entre as cidades de Limeira e São Paulo, que pode ser percorrido por ambas as vias. Primeira a se desenvolver no estado, forma o maior corredor financeiro do país, ao interligar duas regiões metropolitanas de bastante importância nacional: a Região Metropolitana de São Paulo — RMSP, e a Região Metropolitana de Campinas — RMC, que, em estimativas recentes do IBGE (21), ocupam, respectivamente, a primeira e a décima posição em tamanho populacional, alcançando juntas aproximadamente 25 milhões de pessoas.
Estando já consolidada como centro industrial e econômico do país, os governos da metrópole paulistana, entre meados do século passado, viram a necessidade de intensificar o processo de difusão econômica pelo interior do estado, utilizando a malha ferroviária para alcançar a futura metrópole campineira, que, desde o século 19, já apresentava expressiva economia cafeicultora. A partir dos anos 1950, com o declínio do sistema ferroviário e rápida atualização do desenho para a malha viária, pode se acelerar o processo de construção da rede urbana que viria a proporcionar as bases para o processo de industrialização no interior do estado de São Paulo, mais efetivamente entre as décadas de 1970 e 1990 (22).
Neste período, Campinas se consolidou como maior polo da rede urbana do interior paulista e, principalmente, em meados da década de 1990, com seu crescimento relacionado às vias que a atravessam, em eixos estruturais urbanos que se expandem até os dias atuais. Adquiriu, assim, uma forma territorial bastante específica, marcada por sua enorme descontinuidade e dispersão (23).
Ao nos deslocarmos pelas vias do território da RMC, observamos a complexa trama territorial que se caracteriza por acessos rápidos. De dentro de sua infraestrutura, um emaranhado de autopistas de fluxos intensos, administradas por concessionárias diversas e operadas por milhares de trabalhadores em praças de pedágio, postos de fiscalização e manutenção. De fora, às margens, variados comércios e serviços distribuídos em redes de postos, rodoshoppings e hotelarias; gigantescas áreas em contínuo e intensificado processo de especulação fundiária para zonas industriais, condomínios empresariais, espaços para propaganda, universidades, entrepostos, galpões de aluguel etc.
Além disso, não bastasse a lógica veloz marcante na forma urbana, há a importante presença de tecnologias nessa região, desde as ferramentas utilizadas pelas concessionárias para serviços e comércio (tags para passagem sem parar nos postos, radares eletrônicos, sistemas de vigilância etc.) à localização desse território como sede do maior polo de tecnologia da informação da América Latina (24), ou seja, um nó de conexões e distribuições de cargas e pessoas, por meio de rodovias, ferrovias, aeroporto e, porque não, infovias.
Dessa forma, podemos nos apropriar da ideia de Washington Luís, de que "governar é fazer estradas" — no caso da RMC, fazer vias de velocidades cada vez mais rápidas — e nos recordar de que, no estado de São Paulo, durante os últimos vinte anos, boa parte dos responsáveis por fazerem estradas e as administrarem foram concessionárias de interesse privado com foco em infraestrutura urbana e regional. No ano de 2013, antes de diversos casos de corrupção serem deflagrados pela polícia federal (25) e de uma série de oportunidades e benefícios terem sido criados pelo governo brasileiro (26), seis empresas dominavam 67% dos 17 mil quilômetros em concessão no país (27). Tais condições fazem com que o tráfego cada vez mais intenso nas rodovias paulistas requeira serviços bastante complexos, versáteis e desenvolvidos, e de processos que demandam mais agilidade nos trâmites de concessões.
Tornou-se corriqueiro, assim, o desinteresse em reivindicar o direito de ir e vir por esses locais, submetido à atual condição da circulação metropolitana, marcada por, pelo menos, quatro grandes fatores: sistema rodoviário como único a ser investido; poderio das iniciativas privadas no controle das vias; primazia pela alta velocidade; e recorrência de esquemas corruptos na manutenção de boa parte das concessões.
Corredor Dom Pedro e suas velocidades
Na última revisão do Plano Diretor de Campinas, em 2017, observamos o interesse da atual gestão municipal em investir no crescimento da cidade a partir da especulação imobiliária ainda mais exacerbada, alcançando também áreas rurais, com uma proposta de plano a estruturar o território urbano em quatro grandes áreas: Macrozona Macrometropolitana; Macrozona de Estruturação Urbana; Macrozona de Relevância Ambienta; e Macrozona de Desenvolvimento Ordenado.
Ao criar a última macrozona citada — que demarca integralmente a zona rural, destinando-a a usos rurais e urbanos — apresenta-se uma nova área aberta a especulação em detrimento de práticas rurais. Isto configura outro uso e ocupação do solo, propiciando a transformação de zonas rurais em áreas de potencial especulação, permitindo que o município se torne integralmente urbano, independente de as regiões serem ou não providas de infraestrutura urbana e habitação de interesse social.
Observamos uma inversão na lógica do investimento municipal, em que se angaria para a iniciativa privada os investimentos habitacionais e comerciais, numa suposta compensação de geração de oportunidades e incremento da infraestrutura. Com isso, tal política urbana acaba por criar obstáculos para a prática rural ainda existente no município, no que diz respeito ao aguçamento da urbanização sem infraestrutura, tendo em vista que há muitas pessoas que sobrevivem da prática do campo e que não possuem locais para moradia.
Em Campinas, tal política urbana voltada para a urbanização neoliberal em detrimento de condições adequadas para habitação pode ser observada por uma série de incentivos modernizantes em prol do desenvolvimento, em relação às demandas nacionais, mas também às do próprio município, em que se destacam investimentos específicos. A Rodovia Dom Pedro I (SP-65) surgiu para interligar a RMC ao Vale do Paraíba em um traçado estudado para realizar a ligação entre a Rodovia Anhanguera (SP-330) e a Rodovia Presidente Dutra (BR-116). Sem passar por municípios da RMSP, serve como rota alternativa ao Sistema Anhanguera-Bandeirantes, e é administrada, atualmente, pela concessionária Rota das Bandeiras, da empresa Odebrecht. Na última década, as áreas às margens da via sofreram um aumento significativo no mercado de construção e incorporação de empreendimentos comerciais e residenciais no trecho campineiro, sendo responsáveis, no ano de 2016, por uma receita de aproximadamente "40% do total de investimentos no período em Campinas destinados a implantação, ampliação ou modernização nos segmentos residencial, comercial, industrial e de serviços" (28), que, embora venha da iniciativa privada, utilizam-se da infraestrutura urbana pública.
Às margens da rodovia, emergem três dos seis maiores shoppings da cidade (Iguatemi, Galleria e Parque Dom Pedro); grandes mercados de polo atacadista e de distribuição, como a rede Makro, Ceasa e Tenda; comércios específicos para residências, como C&C — Casa e Construção e Telhanorte; uma variedade enorme de serviços e comércios relacionados a lojas de peças para veículos e mecânicas, de piscinas e equipamentos agrícolas, maquinários etc.; além de contar com o hipermercado Carrefour e cadeias varejistas da Dicico, Leroy Merlin e Decathlon.
Esses contínuos processos de modernização, neoliberalização e financeirização de seu território, com acessos rápidos a produtos nacionais e internacionais, acabam por se encaixar na crítica de Virilio de formas de "ceder terreno para ganhar Tempo" (29), ou, como a vulgarizada e remota expressão "tempo é dinheiro". Isto também se observa por meio de esquemas tecnológicos de fluidez de tráfego (de pessoas, cargas e dinheiro) presentes em boa parte do território paulista: fidelização dos clientes por cadastros de CPFs; realização de identificação de veículos por meio dos tags de empresas instalados; implementação do credenciamento da Nota Fiscal Paulista etc.; o que compõe, também, a lógica veloz desse contexto.
Tais empreendimentos, comércios ou serviços possuem narrativas que primam pelas altas velocidades e visam fluidez do tráfego, no caso de uma concessionária; limpeza visual, para uma proprietária de espaço de propagandas; proximidade às saídas para as estradas, quanto à venda de um condomínio residencial ou comercial; para citarmos alguns exemplos.
Com isso, chegamos à aposta central deste texto: a produção de eixos de altas velocidades é diretamente proporcional ao grau de financeirização do território. Dito em outras palavras, quanto maior a diversificação de eixos para vias rápidas, mais alto é o coeficiente de especulação de determinado território. Nesse sentido, as estradas não só esquadrinham a terra dos municípios por quais passam como também articulam as negociatas de valorização do mesmo, engendrando ainda mais o capital na lógica de produção do território. Em grandes latifúndios, onde não realizam a função social da propriedade, há uma miríade especulativa relacionada a seus acessos, que primam pelas facilidades de entradas e saídas.
Como dissemos anteriormente, Campinas é caracterizada por ter seu território descontínuo e disperso, com todo um conjunto de estradas que cortam o município e, consequentemente, selecionam grandes áreas para investimentos, segregando outras que não participam desses esquemas, favorecendo a dispersão e ocupações irregulares. A Rodovia Dom Pedro não é, portanto, um caso isolado de corredor especulativo, mas impressiona o alto grau de investimento ao qual é submetida.
De tal maneira que, se tomarmos o zoneamento de 2017, observamos a conduta de crescimento urbano às margens da via ser direcionada para aquilo que já se avista na sua própria forma urbana, voltada à lógica da valorização da terra como ativo, sendo observado como vetor utilizado pela administração do município a expandir ainda mais com a proposta do novo zoneamento. Notamos que às margens da Rodovia Dom Pedro, no círculo à esquerda do mapa, onde há o viaduto de acesso ao Aeroporto Campo dos Amarais, há uma série de ocupações que foram surgindo entre as décadas de 1970 e 1990.
Esta região é caracterizada por usos e ocupações do solo voltadas ao bairro, com trechos bastante precários em termos de infraestrutura urbana e população de renda mais baixa, que praticam outras formas de acesso a diferentes locais dessa área, relacionando-se de maneira muito distinta do que a suposta "eficiência". Notamos também que entre os círculos da esquerda e do centro, toda a zona (Z14) é articulada para os mais diversos tipos de usos, com restrições somente a indústrias de alto incômodo.
Já o círculo central, que marca o acesso da Rodovia Dom Pedro à Rodovia Zeferino Vaz, onde conecta-se a Barão Geraldo e Paulínia, apresenta-se como uma mancha transitória à margem da rodovia entre o uso predominante (azul), marcado pela Z14, para o vermelho (Z11) que se inicia na transição deste trecho até o próximo círculo. Observamos ainda nesse círculo outros usos e ocupações, voltados a fábricas e indústrias de baixo incômodo (Arcor, Mercedes Benz e Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo) e outras formas de ocupação comercial e de serviços (Makro, Pearson e Praça Capital), marcados, principalmente, pelo Loteamento Center Santa Genebra e Shopping Parque Dom Pedro, um pouco mais à frente.
Por fim, no terceiro círculo, à direita, observamos a mancha que margeia a Dom Pedro mudar para vermelho (Z11) e amarelo (Z03), que especificam uso específicos para habitações e serviços, marcados na paisagem por condomínios de médio e alto padrão, contemplando as antigas áreas rurais, em que se apresentam tráfegos intensos e saídas mais diretas. Nesse sentido, destacamos, sucintamente, que a via se apresenta como divisora de renda por meio de diferentes velocidades.
Em algumas experiências de apreensão desse território para nossa pesquisa de doutorado, tanto a pé quanto de automóvel privado, investigamos sujeitos que realizam o trajeto ao redor do Aeroporto do Campo dos Amarais até a região da Ceasa, sendo comum a experiência de margear as altas velocidades. Nesse sentido, podemos tomar a reflexão crítica de Michel de Certeau sobre a produção urbana e territorial que, para ele, vem tendo como objetivos a construção de "um espaço próprio", "um não tempo" e, principalmente, "um sujeito universal" (30) que tentariam aniquilar alteridades urbanas.
Por conta disso, o autor aposta em práticas transitórias, microbianas, cotidianas, observadas a partir do conceito de táticas que seriam linhas de fuga possíveis das membranas da estratégia, por dentro delas, nas suas possíveis decodificações. Nessa chave de leitura, Ana Clara Torres Ribeiro destaca a necessidade da compreensão dos gestos daqueles que experimentam o cotidiano de outras maneiras, sendo fundamental a observação e a escuta, por meio dos "elos (ir)relevantes entre cotidiano, lugar, indivíduo e pessoa", pelos quais "tudo acontece e adquire sentido, permitindo a individuação e o pertencimento” (31).
Dessa maneira, a observação e escuta desse cotidiano enquanto categoria de análise ocorre por meio da compreensão de um território permeado por diferentes narrativas, colocando em xeque sua produção como estritamente voltada para a circulação veloz, apresentando um cotidiano que a ele destoa na chave de leitura de altas velocidades, visando refletir criticamente sobre elas.
Tal qual propõe Milton Santos, é importante nos questionarmos para quem seria esta grande velocidade, tendo em vista a infinidade de práticas que ocorrem às margens desse território, sendo necessário estudar as diferentes territorialidades em um esquema que as mesmas possam coincidir e se tornarem visíveis os dissensos. Na realidade, o que se propõe é um meio de podermos assimilar outras velocidades que possam tornar visíveis "alteridades coexistentes que desestabilizam irreversivelmente a imagem fixada pelo planejamento técnico e científico" (32) do território urbano contemporâneo.
Tal qual propõe Jameson, é fundamental que reflitamos sobre a necessidade de uma "estética do mapeamento cognitivo" (33), pela qual se pretende tomar um posicionamento que, diferente de representar, dispute as narrativas e suas práticas. Com isso, podemos pensar sob a tornando visíveis dissensos antes invisibilizados, como desentendimentos entre mesmas falas, como propõe Rancière, ao desenvolver a proposta da "partilha do sensível" (34).
Para o autor, esta partilha se trata de um sistema de evidências sensíveis a revelar, simultaneamente, a existência de um comum (como, por exemplo, a circulação) e dos recortes que nele definem lugares e partes referentes (formas distintas de praticar velocidade), ou seja, um comum partilhado e partes exclusivas. Esta repartição de partes e lugares também se fundamenta numa partilha de espaços/territórios, tempos e tipos de atividades que determinam propriamente a maneira como um comum propõe à participação e como sujeitos podem e acabam por tomar parte nessa partilha. Há, portanto, no princípio da democracia, uma estética que determina as formas desses sujeitos, tal quando os gregos determinavam quem poderia tomar parte nesta partilha (homens, proprietários, livres etc.) e quem não (mulheres, crianças, escravos etc.), de acordo com a proposição do autor.
Assim, se a produção do território urbano contemporâneo é fundamentada pelos investimentos em docilização dos corpos e modos de apropriação, é fundamental que se tornem visíveis modos que narrem outros esquemas. Importa-nos, portanto, compreender as velocidades presentes no território a partir da visibilização de conflitos, que é a base da política, segundo Jacques Rancière (35), analisando esquematicamente as diferentes narrativas. Por conta disso, se as altas velocidades vêm sendo condicionadas à estratégia de financeirização do território — por sua vez, segmentado em lugares (condomínios, lojas, empresas etc.) — ao mesmo tempo, elas podem fragilizar relações socioespaciais e pulverizar o direito de circular, desmobilizando a cidade enquanto política.
Nesse sentido, a intermitente estratificação do território em lugares condicionados ao consumo ou uso privado pode desmantelar ainda mais as experiências de alteridade, demonstrando a "incapacidade da sociedade em lidar com a diferença" (36) e compreendê-la enquanto potente. Na escala macro da alta velocidade atrelada a estratégias de financeirização do território, é importante considerar que as práticas sociais se tornam invisíveis, tendo em vista que o principal articulador de visibilidade é a relação entre aquele que está fora da velocidade e o sujeito que a pratica, num exercício de alteridade.
A velocidade alta desmobiliza e fragiliza relações a tal ponto de se considerar descartável o que se observa na paisagem como diferente. Ou ainda, faz com que aquilo componha certa paisagem, ao objetificar os sujeitos que transitam nessas velocidades, do ponto de vista de quem está no carro. Isso não significa que quem esteja de fora também não faça o mesmo e identifique a associação motorista-automóvel como se fosse um só objeto.
notas
1
SANTOS, Milton. Elogio da lentidão. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2001 <https://bit.ly/3ccoqBO>.
2
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo, Estação da Liberdade, 1996, p. 123.
3
Idem, ibidem.
4
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento (Cinema 1). São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 9.
5
SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia; SILVEIRA, Maria Laura. Território: globalização e fragmentação. São Paulo, Hucitec, 1994.
6
Idem, ibidem.
7
ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal. In ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.
8
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes, 2008.
9
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra Travessia — Revista de Pós-Graduação em Literatura (A exceção e o excesso: Agamben e Bataille), Florianópolis, n. 5, 2005.
10
GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.
11
LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo/Helsinque, N-1 Edições/Edições Sesc São Paulo, 2014
12
CHRISTOPHER, Brett. The limits to financialization. Sage Journals: Dialogues in human geography, v. 5, n. 2, Thousand Oaks, 2015.
13
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes, 2008, p.201.
14
Tal instrumento é regido sob a Lei Federal n. 11.079/2004, quando ocorre uma convocação do Estado para contratação de empresas privadas a prestar serviços de interesse público, principalmente infraestruturais, por prazo determinado.
15
DARDOT, Pierre.; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016, p. 278.
16
Idem, ibidem, p. 282.
17
Idem, ibidem, p. 283.
18
HARVEY, David. The limits to capital. Nova York, Verso, 2006; HARVEY, David. Paris, capital da modernidade. São Paulo, Boitempo, 2015.
19
Trecho do discurso do ex-presidente Washington Luís, de 1920. Apud RIZZO, G. Os erros das políticas públicas no Brasil: a opção pelo rodoviarismo. Diário da Manhã, Goiânia, 20 mai. 2014.
20
Trata-se do conjunto das duas maiores rodovias de São Paulo: Anhanguera e Bandeirantes, administradas pela concessionária AutoBan.
21
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dados de 2016.
22
SOMEKH, Nádia; EIGENHEER, Daniela Maria. Metrópole Contemporânea, fragmentação e exclusão: o eixo Anhanguera/Bandeirantes. II Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo — Teorias e Práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas, Natal, 2012. CAIADO, Maria Célia Silva; PIRES, Maria Conceição Silvério. Campinas metropolitana: transformações na estrutura urbana atual e desafios futuros. In CUNHA, José Marcos Pinto da (org.). Novas metrópoles paulistas: população, vulnerabilidade e segregação. Campinas, Nepo/Unicamp, 2006.
23
De tal maneira que, para realizar diversos trajetos intramunicipais de curta distância via automóvel privado, na maioria das vezes, é mais eficiente tomar o acesso às grandes vias que a atravessam, já que a cidade é cruzada por diferentes estradas, das quais podemos citar: Rodovia Professor Zeferino Vaz (SP-332); Rodovia Dr. Ademar Pereira de Barros (SP-340); Rodovia Santos Dumont (SP-75); Anel Viário Magalhães Teixeira; Rodovia Anhanguera (SP-330); Rodovia Francisco Aguirre Proença (SP-101); Rodovia dos Bandeirantes (SP-348); e Rodovia Dom Pedro I (SP-65).
24
De acordo com a Revista britânica Focus, especializada neste setor, em matéria disponibilizada pelo jornal campineiro Correio Popular, em 2015, na América Latina, a cidade de Campinas foi a que mais faturou com esse tipo de economia. BRITO, Sarah. Vale do Silício brasileiro. Campinas é apontada como maior polo de tecnologia da AL. Correio Popular, 21 jun. 2015 <https://bit.ly/3DgtEZo>.
25
Tratam-se dos conhecidos casos de corrupção deflagrados pela Polícia Federal pela Operação Lava Jato em 2014, que tiveram envolvimento da empresa Odebrecht, com a prisão de seu presidente, em 2015, bem como a descoberta da participação da empresa Ecorodovias no mesmo esquema. AFFONSO, Julia. Planilhas da Lava Jato apontam R$ 3,2 mi de concessionárias de rodovias a ex-assessor do DER-SP. Estadão, São Paulo, 2 abr. 2018 <https://bit.ly/3kAiGX4>.
26
Como a Medida Provisória (MP 800/2017), proposta pelo governo federal e aprovada em comissão mista no senado, que teve como objetivo ampliar de cinco para catorze anos para conclusão de obras de duplicação. Além disso, novos leilões de rodovias se iniciam em breve, e devem alcançar a marca de 5.000km a mais a serem concedidos à iniciativa privada. Comissão aprova MP que aumenta prazo para investimentos em rodovias. Senado Notícias, Brasília, 14 dez. 2017 <https://bit.ly/3qC2hWe>; HIRATA, Taís. Leilões de rodovias avançam nos estados e devem somar R$ 14,5 bi. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 mar. 2018 <https://bit.ly/3qQ0JrR>.
27
Tratam-se das empresas: CCR, Ecorodovias, Arteris, Odebrecht, Triunfo e Invepar que ainda são as líderes, com atuais 9.679,88km somadas as vias concedidas pelo Estado, de acordo com os últimos dados disponibilizados por todas em seus sítios eletrônicos oficiais. BATISTA, Henrique Gomes; FARIELLO, Danilo. ‘Reis das estradas’: grupo de seis empresas domina quase 70% de rodovias privatizadas. O Globo, Rio de Janeiro, 7 dez. 2013 <https://glo.bo/3wNSRb1>.
28
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Sociabilidade, hoje: leitura da experiência urbana. Caderno CRH, v. 18, n. 45, Salvador, 2005, p. 94.
29
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo, Estação da Liberdade, 1996, p. 123.
30
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tomo 1: Artes do fazer. Petrópolis, Vozes, 2013, p.1 73
31
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Op. cit., p. 413.
32
COSTA, Thiago. Trilhando uma epistemologia da lentidão. Ferramentaria, Redobra 9, 2012, p. 180.
33
JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1996.
34
RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível. São Paulo, Editora 34, 2005.
35
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Política e Filosofia. São Paulo, Editora 34, 1996.
36
CAZES, Leonardo. Christian Dunker analisa mal-estar social provocado por condomínios. O Globo, Rio de Janeiro, 1 jun. 2016 <https://glo.bo/3qAyLjn>.
sobre o autor
Gabriel Ramos é arquiteto, pesquisador e experimentador gráfico. Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFBA) e doutorando em Arquitetura e Urbanismo (USP), onde é membro do Núcleo de Espacialidades Contemporâneas. Atualmente, é professor de faculdades privadas em cidades paulistas, tendo especialidade em Representação e Projeto da Cidade, além de desenvolver projetos diversos no Desalinho Ateliê.