Na virada do século 19 para o século 20 a cidade do Rio de Janeiro passou por um conjunto importante de modificações no que diz respeito às práticas urbanas e sociais de parte de seus moradores. Foi neste período, por exemplo, que se iniciou o desenvolvimento de uma cultura praieira e se consolidou uma urbanização direcionada pela proximidade com o mar.
Na passagem do século, assim, deu-se início a um processo de ocupação e valorização da orla, num momento em que o adensamento da população e de edificações em bairros como Copacabana, Leme e Ipanema era baixo ou médio, ainda que crescente. Esta fase inicial de expansão se estendeu até meados da década de 1920, quando então começou um tipo de ocupação da orla caracterizada pela verticalização.
Sobre esta verticalização é importante mencionar que ela simbolizou uma ruptura no padrão de moradia observado anteriormente na cidade. Em Copacabana, por exemplo, as casas de poucos pavimentos sucessivamente foram sendo substituídas por edifícios de apartamentos com inúmeros andares, representando um tipo de construção e de vida até então novo, moderno e que era destinado sobretudo as camadas de maior poder aquisitivo da população carioca.
Em suma, considera-se que os primeiros edifícios de apartamentos da cidade do Rio de Janeiro surgiram na primeira década do século 20, sobretudo a partir da década de 1920, com uma intensificação a partir da década de 1940 (1). Dentre os fatores que auxiliam a compreender a emergência do apartamento no cenário urbano carioca, menciona-se: o avanço nas técnicas construtivas, representado principalmente pela introdução do concreto armado; a necessidade do capital encontrar uma forma de resolver o problema da terra na cidade (se encararmos a terra como um bem escasso, não produzível); a diminuição da produção pequeno-burguesa e o respectivo aumento do número de empresas de construção civil; e as mudanças no plano jurídico-legal, que viabilizaram o maior aproveitamento do solo e a partilha da propriedade de um edifício entre diferentes indivíduos.
Sobre este último ponto, é importante destacar que em 1928, no âmbito nacional, o presidente Washington Luís (1926-1930) institui o decreto n. 5481, dispondo “sobre a alienação parcial dos edifícios de mais de cinco andares”. A partir deste decreto se autorizou a partilha da propriedade de um edifício entre diversos proprietários, desde que a edificação tivesse pelo menos cinco andares. Para o caso do Rio de Janeiro, esta norma viabilizou e promoveu a verticalização da cidade, sobretudo nas áreas mais nobres, como no Centro e Zona Sul (2).
Pode-se dizer que todos os fatores mencionados acima também estão associados ao surgimento do capital incorporador, “que não sendo o capital produtivo, exercerá um papel de comando da produção, uma vez que controlará uma das condições fundamentais da reprodução do capital” (3). O capital incorporador é aquele que articula uma série de serviços — “compra ou aquisição de direitos sobre os terrenos, [...] a contratação de consultoras e planejadoras, edificadoras, agentes financeiros para as diversas fases do projeto e agentes responsáveis pela comercialização final de imóveis” (4) — para que com esta operação se valorize o seu próprio capital e o dos demais.
Pode-se pensar ainda que o capital incorporador, assim como os outros fatores mencionados (tecnologia construtiva, empresas de construção e mudanças legais) também foram responsáveis por uma ruptura no padrão de moradia. Foi a partir deste conjunto de fatores, por exemplo, que “se difundiu o ‘arranha-céu’, novo tipo de habitação, do ponto de vista típico e simbólico. Trata-se da moradia que expressou a introdução do ‘estilo moderno de vida’, invenção que necessitou retirar do edifício de apartamentos conotações de habitação coletiva” (5).
Deste modo, além de representar um novo tipo de construção, de moradia e de propriedade, o apartamento também representou um novo modo de vida. No meio social criou-se uma diferenciação para aqueles que são proprietários e/ou habitantes de um apartamento, dado que este, por exemplo, era moderno, luxuoso e destinado “às camadas médias de alto poder aquisitivo” (6). Foi neste contexto que surgiu o apartamento “Copacabana-zona sul”, símbolo da distinção da classe média burguesa carioca a partir da segunda década do século 20.
Dado isso, criou-se uma demanda crescente da classe média/média-alta para a ocupação deste espaço costeiro do Rio de Janeiro; e, consequentemente, aumentou a disputa do capital por investir nesta região beira-mar, já que este investimento lhe garantia a geração de um sobrelucro de localização. No mesmo sentido, como cresceu a demanda e a disputa do capital pelo território, o preço da terra também subiu.
O conceito de mercadoria e seu caráter fetichista
De acordo com Marx, a mercadoria na sociedade capitalista pode ser encarada como um objeto historicamente determinado e que é criada tendo-se em vista a satisfação das necessidades dos indivíduos. Deste modo, “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa” (7).
Nesse sentido, a mercadoria aparece como portadora de uma utilidade e, consequentemente, de um valor de uso. Este último, em grande medida, é uma propriedade de todos os bens, presente em todas as sociedades. No entanto, a mercadoria, enquanto bem produzido na sociedade capitalista, além de ser possuidora de valor de uso que satisfaz as necessidades humanas, possui um valor de troca. Nos termos de Marx, o valor de troca é compreendido como “a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço (8).
Marx também assume que, no capitalismo, o valor de uso funciona como suporte para o valor de troca. Em uma sociedade mercantil, os produtores privados de mercadoria elaboram seus produtos tendo em vista os seus valores de uso, mas também o seu valor de troca: mesmo que, qualitativamente, um casaco tenha valor de uso diferente do observado em uma mesa (dado que suprem necessidades humanas distintas), estes bens se tornam equiparáveis quando colocados um em relação ao outro, considerando-se que ambos podem apresentar o mesmo valor de troca.
A mercadoria ainda representa a quantidade de valor do trabalho humano corporificado, na medida que o quantum de trabalho socialmente necessário despendido na sua produção irá estabelecer a grandeza precisa de seu valor. Deste modo, Marx afirma que o produto do trabalho carrega em si um valor determinado/objetivo/matemático que permite que ele possa ser trocado sob determinadas proporções, cujo fundamento é o trabalho.
Tendo-se em vista a conceituação geral do que é a mercadoria sob o sistema capitalista, Marx examina (sobretudo no capítulo 1, item 4, d’O Capital) as contradições presentes na forma mercadoria (9). Neste item, Marx chega à conclusão de que “as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre produtos do trabalho” (10).
Num aspecto geral, se afirma que as relações sociais na sociedade capitalista assumem a forma de uma relação entre os produtos do trabalho — ou seja, de uma relação entre mercadorias. A relação social, portanto, não ocorre nem mesmo com o produtor das mercadorias, por exemplo, mas sim pela própria mercadoria. Sendo assim, um dos aspectos que caracteriza este processo é a perda de controle do indivíduo sobre as relações estabelecidas socialmente; mesmo que ela advenha de algo produzido pelo homem.
Este tipo de relação social, cristalizada pela sociedade capitalista, “assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (11). Aqui, “fantasmagórica” é empregado no sentido destas “coisas” serem dotadas de vida própria. De forma mais detalhada, as coisas são as próprias mercadorias — dotadas de características físicas, mas que assumem uma dimensão metafísica na relação social, pois parecem dotadas de vida própria/atributos humanos.
As características desta relação social levaram Marx, por analogia, a nomear este fenômeno como fetichismo da mercadoria — analogia ao modo como as tribos “primitivas” atribuíam à natureza características humanas. Este fetichismo, dotado de um caráter místico/misterioso, também pode ser visto como uma reapresentação das noções de alienação, ideologia ou ilusão socialmente necessária que Marx desenvolve em outros momentos. O que as reúne é exatamente o fato de ser algo produzido pelo homem, mas que ao mesmo tempo foge ao seu controle (é externo/alheio).
Marx também aponta para o caráter “natural” que o fetichismo da mercadoria assume na sociedade capitalista, conferido exatamente pela sua característica mística. A própria definição de fetiche traz em seu conceito esta noção de um objeto a que se presta culto ou a que se atribuem poderes sobrenaturais. Nesse sentido, as relações sociais mediadas pela mercadoria assumem entre os homens a ilusão de que estas são formas naturais de convívio. Assim, Marx diz: “todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a magia e a fantasmagoria que enevoam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em outra forma de produção” (12).
“A invenção de Copacabana” (13)
A análise histórica da formação da orla carioca revela duas fases distintas de ocupação deste espaço urbano: o primeiro representou a orla em seu processo de urbanização, em que o adensamento da população e de edificações era baixo ou médio, ainda que crescente, levando os bairros desta zona a abandonarem a sua condição de subúrbio ou arrabalde para adquirir uma centralidade própria dentro do tecido urbano da cidade; o segundo, como decorrência do primeiro, representou a orla com sua urbanização consolidada, em que o adensamento populacional e construtivo foi elevado e o espaço era amplamente antropizado.
Fase 1: expansão
Em meados do século 19 bairros atualmente reconhecidos pela sua atividade praieira (como Copacabana, Leme Ipanema e Leblon, por exemplo) não existiam formalmente ou eram escassamente povoados e detinham pouca infraestrutura urbana. Foi a partir das décadas finais do século 19 que se iniciou o desenvolvimento de uma cultura praieira e se consolidou uma urbanização direcionada pela proximidade com o mar. “O mar como valor cênico e paisagístico e a praia como espaço para o lazer, são incorporados nessa época ao repertório urbano brasileiro” (14) e carioca, principalmente.
Neste período o interesse pelo mar no ambiente carioca refletiu, em grande medida, práticas urbanas e sociais que se desenvolviam na Europa desde a segunda metade do século 18. Corbin retratou o nascimento e evolução do “desejo de beira-mar”: progressivamente o medo e a repulsa ao mar — associados à representação bíblica do dilúvio — foram abandonados pela aristocracia e alta burguesia europeias e a praia passou a ser procurada enquanto lugar para combater a melancolia, “acalmar as novas ansiedades” da vida citadina e de sociabilidade; os efeitos terapêuticos do banho em águas termais ou oceânicas também começaram a ser valorizados por médicos e higienistas (15).
Na relação do crescente interesse pelos banhos de mar com a busca por se urbanizar bairros da orla carioca, Abreu tratou deste processo para o caso de Copacabana. A chegada dos primeiros bondes ao bairro, por exemplo, ocorreu em 1892, após a construção do Túnel Velho. A inauguração desta linha de transporte foi acompanhada de críticas pela Companhia Jardim Botânico, que considerava imprudente levar o bonde “àquele deserto arenoso, sem habitação e cujo progresso seria muito lento” (16). Entretanto, em 1894, os diretores da Companhia apresentaram um discurso diferente, destacando a proximidade do bairro com o mar e o processo de ocupação que se seguiria nos próximos anos.
Em síntese, esta fase inicial de realização de obras e ocupação da orla caracterizou-se pela expansão da fronteira urbana do Rio de Janeiro. A cidade se expandiu por meio de obras e negócios imobiliários em direção aos bairros da orla, como Copacabana, a ponto destes abandonarem a sua condição de subúrbio ou arrabalde para adquirir uma centralidade própria.
Fase 2: verticalização
A segunda fase apresentada neste processo faz referência à verticalização e adensamento da ocupação que se verificou não só em Copacabana, mas nos bairros vizinhos como Leme, Ipanema e Leblon. Este processo, de modo geral, teve início na década de 1920, com sua intensificação nos anos seguintes e perdurando até o início da década de 1970; pode-se também dizer que foi possibilitado pelo avanço tecnológico adquirido com a introdução do concreto armado nas construções (17).
No plano das obras o período guardou semelhanças com a fase anterior: a intervenção estatal apareceu para promover o embelezamento e melhoria da infraestrutura e das condições de acessibilidade da orla. Contudo, merece destaque o plano do ordenamento jurídico urbano em que o Estado atuou no período, permitindo elevados níveis de coeficiente de aproveitamento do solo. Em 1925, sob a administração do prefeito Alaor Prata, se institui o decreto n. 2.087. O ato normativo em questão tratou de regular as “construções, reconstruções, acréscimos e modificações de prédios no Distrito Federal”.
Em 1928 foi instituído o decreto n. 5481, que regulou a propriedade condominial no Brasil e teve reflexos diretos sobre a verticalização do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades do país. Já na década seguinte, se estabeleceu o decreto municipal n. 5.595 em 10 de julho de 1935 durante a gestão do prefeito Pedro Ernesto. Em suma, acabou-se por reforçar o padrão locacional que vinha se estabelecendo na cidade ao definir diferentes parâmetros de uso e ocupação do solo para áreas populares (periferia e subúrbio) e para áreas mais nobres e burguesas (Zona Sul).
Em 1937, o decreto n. 6.000 tratou de questões semelhantes ao documento legal de 1935, porém “criou novo zoneamento de forma ainda mais detalhada, principalmente nos bairros centrais da cidade" (18). Para Jardim este decreto, também denominado de Código de Obras do Distrito Federal, "respondeu à crescente demanda imobiliária de toda a cidade, particularmente aquela da Zona Sul. Sua vigência se estendeu até 1970, quando foi substituído por uma nova legislação, através do Dec. n° 3.800" (19).
Após o decreto de zoneamento de 1937 uma série de normas complementares são instituídas até 1970 e 1970, quando respectivamente foram instituídos os decretos n° 3.800 e n° 322. De modo ilustrativo, a figura I abaixo apresenta a evolução da verticalização em Copacabana entre as décadas de 1920 e 1970:
A análise de dados histórico-demográficos sobre a ocupação urbana do Rio de Janeiro corrobora a visão de adensamento e intensificação da ocupação da orla. Apesar do crescimento populacional geral em toda a cidade (salta, por exemplo, de 688.000 habitantes em 1900 para 3.300.000 habitantes em 1960), o aumento da concentração populacional nos bairros da orla foi evidente. Para o período 1920-1950, por exemplo, enquanto a população carioca duplicou (de 1.147.000 para 2.350.000), os habitantes de Copacabana se multiplicaram por seis (de 22.000 para 129.250). Em 1955, ainda, constatou-se a inauguração de 225 novos prédios no bairro (20).
Morar à beira-mar
O jornal de bairro escolhido para a análise foi O Beira-mar (Copacabana, Ipanema, Leme) (21). Este periódico foi inaugurado em 1922 e publicado até 1946, com um total de 785 edições. Neste trabalho foram analisadas cerca de 250 edições por meio da busca de palavras-chaves como “prédio”, “edifício”, “apartamento” e “arranha-céu”. Além disso foram consultadas 35 edições espontâneas, distribuídas ao longo do período 1922-1946, tendo em vista a busca de conteúdos que tratassem de Copacabana e dos aspectos que a distingue de outros bairros da cidade.
Em suma, o jornal se apresentou como o “orgam defensor dos interesses dos moradores do bairro de Copacabana, Ipanema e Leme”, além de também se definir enquanto “intermediário e o porta-voz de nossas praias”. O periódico também possui um caráter crítico, no sentido de cobrança por melhorias no bairro junto ao poder público.
Em relação à Copacabana, o jornal teceu alguns adjetivos e expressões de enaltecimento da área, como bairro “mimoso”, “aristocrático”, “deslumbrante”, “chic”, “fina”, “feliz”, “sensual”, “privilegiada”, “elegante” e “o Eden dos homens bons”. De acordo com Arthur de Calasans, que escreveu para o jornal em 1926, Copacabana era tão distinta do restante do restante da cidade que um turista perguntaria se “isto aqui ainda é a cidade do Rio de Janeiro” (22), dado o bairro ter se convertido em uma "incomparavel cidade balnearia", podendo receber o título de "Monte Carlo brasileira".
É interessante observar também a forma pela qual o jornal chamava os seus leitores: banhistas ou cilenses. Este último se refere à sigla Cil, criada pelo periódico para distinguir os moradores dos bairros de (C)opacabana, (I)panema e (L)eme — o trecho a seguir faz referência à sigla e exemplifica o modo de escrita utilizado para valorizar a área:
“A "Cil" aristocratiza-se dia a dia... De simples aldeia marinha e agreste, — scenario onde apenas se encontrava, pela manhã, um ou outro vulto de pescador dirigindo-se, pelos trilhos sombreados da collina, ao barco silencioso que o esperava lá embaixo, no mar — Copacabana se transformou em cidade de bom tom, habitada só de famílias ricas e elegantes” (23).
O excerto a seguir, de modo análogo, demonstra o tipo de valorização empregado pelo jornal para a distinção e prestígio de Copacabana, a ponto dos moradores de outros bairros irem lá passear e de estrangeiros optarem por residir na localidade:
“Copacabana é hoje o bairro chic da cidade. Certo, bairro novo, está cheio de parvenus, de nouveaux riches e de falsos ricos. Mas é incontestavel o exodo para as praias atlanticas. Se Botafogo, Laranjeiras e Tijuca guardam tradições e ainda são residencias de grande parte da elite, o deslocamento para o sul é cada vez mais accentuado.
Copacabana é o refrigerio do carioca, onde vão passear os que moram nos outros bairros nas tardes e nas noites quentes é o sitio predilecto dos amororos.
Os bairros atlanticos são o recanto dos passeios, o paraíso dos namorados, o ideal dos especuladores dos terrenos e das construções, os arrabaldes onde os ordenados dos domésticos são mais altos.
Os inglezes moravam dantes na Tijuca. Hoje, inglezes e norte-americanos preferem Copacabana” (24).
Além de ingleses e estadunidenses, segundo o jornal, Copacabana também era desejada pelos vizinhos argentinos. De acordo com uma declaração de Lemos de Britto — colunista do periódico — até mesmo “o estadista [e presidente] argentino sr. Marcello Alvear me disse um dia, em seu palacete de Buenos Ayres, que morar em Copacabana é estar senhor de metade da felicidade...” (25).
Reforçando o aspecto “aristocrático” do “bairro chic” da cidade, o jornal, ao comparar Copacabana com Petrópolis, diz que a “aristocracia carioca” opta agora pela praia ao invés da serra. Além disso, o periódico se utilizou da literatura (como poemas, romances e crônicas) em inúmeros casos para enaltecer a paisagem do bairro e a sua cultura balneária — como no poema abaixo, de Arlindo Cardoso:
“Vae tomando o horizonte, lentamente,
a mais linda cambiancia. Espaço em fóra,
esvae-se a treva. Alvorecer!... Agora,
tudo se aclara, ás luzes do nascente;
Tudo canta e sorri, gloriosamente,
sob esta fresca e collorida aurora;
a belleza suprema a tudo enflora;
e é toda mysticismo a alma da gente...
Cessa de phosphorear longe, o pharol;
desponta, refulgente, o rubro sol;
agita-se, feliz, a mole humana;
A praia, de deidades fica cheia;
e, aos cochichos da vaga sobre a areia,
faz-nos lembrar o céo Copacabana!” (26).
O Beira-mar também fez algumas menções às construções e empreendimentos, encarados como o símbolo de progresso do bairro. Contudo, se nas primeiras edições o jornal tratou, neste assunto, da construção de novas casas (em 1923, por exemplo, reconhece 264 novos domicílios e o início da formação de mais 143), a partir de 1927 — quando surgiu, pela primeira vez, a palavra “apartamento” no periódico — agora a referência constantemente será sobre novos edifícios e arranha-céus.
Em síntese, a palavra “apartamento” apareceu no periódico em situações diversas ao longo do período 1927-1946. Foi comum o uso da palavra, por exemplo, em pequenas histórias e romances veiculados pelo jornal — aqui, o foco não foi exatamente sobre o apartamento, mas este aparece enquanto cenário onde se desenvolviam estas histórias, simbolizando uma nova forma de se morar; por vezes, estas habitações eram descritas como “elegantes” e/ou “luxuosas”. Verificou-se também a presença da palavra em anúncios (seja de venda de habitações ou de móveis para estes, seja de estabelecimentos comerciais que operam em apartamentos) e em páginas de coluna social, onde se mencionava nomes de moradores e onde estes residiam.
Em inúmeros casos, morar em um apartamento, segundo o jornal, representava um novo modo de vida, em que novos hábitos e práticas se desenvolviam. Em uma edição de 1939, por exemplo, se relatou a experiência de uma moradora de apartamento que abre a janela do seu quarto e aprecia a vista da praia, da cidade e da montanha enquanto “contempla” a música que toca pelo rádio:
“Da varanda do meu apartamento, contemplo, extasiada, o pedaço de Copacabana que os meus olhos abrangem:
— O céo todo azul. O mar limpido e calmo, agitando-se, apenas, ao extremecer das ondas, sobre a areia da praia que se cobre de um extenso lençol de espumas.
Ao longe, sulcando as águas, ao sabor do vento e da corrente, uma pequena embarcação de velas brancas vae se distanciando da encosta dos grandes morros verdejantes, clareados pelo sol desta suave tarde de maio!
Mas perto do meu olhar, sob a mancha amarellada dos telhados, as casas, n'uma diversidade de linhas architectonicas, agrupadas entre o colorido da folhagem, completam o bello quadro que, extasiada, eu contemplo, ouvindo ao mesmo tempo, transmittida pelo radio, na maviosidade de um violino, a linda "Zingaresca", de Sarazate!” (27).
Morar em apartamento, sobretudo em Copacabana, também representa uma vida mais feliz e com menos problemas — como o anúncio de 1942 afirma:
“O que significa um apartamento próprio
Para o marido: Uma vida livre de preocupações.
Para a esposa: A maior aspiração.
Para os filhos: Um futuro garantido.
Para todos: A felicidade” (28).
Mas toda esta nova forma de vida, associada ao apartamento, também precisava ser acompanhada, segundo uma nota do jornal, por certo “bom senso” dos moradores, para que toda a modernidade e beleza do bairro e de suas edificações fosse mantida. Nesse sentido, foram denunciadas algumas práticas, como atirar itens pela janela ou deixar roupas penduradas na sacada. Estes “vícios” eram vistos como "aspectos deprimentes da nossa população".
Na mesma nota acima referida o jornal apresentou o apartamento como “um aspecto victorioso do problema da habitação. Não fosse o advento dessa nova moradia e os immoveis, que hoje custam um preço tão elevado, estariam pelo dobro” (29).
Num pequeno diálogo publicado em 1940, o jornal mencionou o aspecto “custoso” de se comprar um apartamento:
“— Você não gosta de morar em apartamento?
— Não posso. Ganho muito pouco no Departamento” (30).
Em relação à quantidade dos edifícios de apartamentos, diversas passagens encontradas no jornal revelam que estes já se encontravam em grande número no bairro desde o começo da década de 1930. Em um anúncio de 1932, por exemplo, foi feita referência ao “número já elevado” de edifícios em Copacabana; em matéria de 1936 esta questão apareceu de forma mais evidente: “Em Copacabana, como em nenhum outro bairro do Rio, é incontestável a vertiginosidade do progresso. Dia a dia, os terrenos vão desapparecendo, levantando-se por todos os lados, magestosos arranha-céos, surgindo novas ruas n'uma febre de edificação” (31). Em 1937, de modo análogo, também se reproduziu discurso semelhante:
“O arranha-ceu marca, sem duvida, um capítulo na vida de Copacabana. Um capítulo de progresso, de vida própria. O arranha-ceu foi um incentivo ao nosso commercio, um tijolo para a nossa independencia.
Em Copacabana constróe-se actualmente uma media de seis, sete predios diarios.
Caminhamos á largos passos para a autonomia. Somos hoje uma grande cidade.
Temos dois casinos, seis cinemas, duzentos mil habitantes e a praia mais feminina do Brasil” (32).
O arranha-céu era descrito como “moderno”, “grã-fino”, “aristocrático”, “elegante”, o "signal de modernidade das grandes cidades" e a “prova de progresso, indica[ndo] civilisação, movimento, cultura” (33). E ainda diz:
“Copacabana é a cidade dos arranha-ceus, no Rio de Janeiro.
Os nossos architectos têm mostrado que também temos gosto e espirito emprehendedor.
Os edifícios por elles levantados são monumentos de arte apurado, de sobriedade, distincção e segurança.
[...] Copacabana ergue-se, vertiginosamente, das areias como um sortilegio surprehendente.
As suas ruas sobem com ancios arrojados de chegar ás nuvens, abrindo-se, no alto, em jardins, em pateos, em formosos platôs de onde se divisa um panorama phantastico, empolgante” (34).
Por fim, o enaltecimento de Copacabana e de seus arranha-céus chegou a tal nível que o jornal propõe que, além desta ser a melhor parte do Rio de Janeiro (com destaque para a zona da Praça do Lido), era também a melhor parte do mundo: “a América do Sul é a parte melhor do mundo; o Brasil é a parte melhor da América do Sul; o Rio de Janeiro é a parte mehlor do Brasil; Copacabana é a parte melhor do Rio de Janeiro e o Lido é a parte melhor de Copacabana, logo, o Lido é a parte melhor do mundo!” (35).
Conclusão
Copacabana, no início do século 20, era um bairro de formação recente, que intensificou o seu processo de ocupação e urbanização apenas na década de 1920. Entretanto, a partir das modificações intensas que se estabeleceu no bairro ao longo deste período, este passou a ser dotado não só de edifícios de apartamento e de infraestruturas urbanas, mas também de todo um imaginário social que representava um novo estilo de vida: moderno, chic, praiano, elegante e diferencial.
Este artigo buscou contribuir, portanto, na compreensão de como se criou a ideia de distinção social e de requinte em Copacabana a ponto da mercadoria-apartamento na localidade se multiplicar e se valorizar numa escala ainda não vista em toda a cidade do Rio de Janeiro.
Sobre esta valorização e distinção, de um lado temos o enaltecimento do próprio bairro e de suas qualidades físicas, que conferiam beleza e atratividade únicas para esta área da cidade — com o consequente desenvolvimento de uma cultura praieira e de um desejo de beira-mar importados da Europa e ainda em ascensão no Rio de Janeiro. De outro lado temos o enaltecimento pelo modo de vida e pelo modo de se morar que se desenvolve no bairro; a figura do apartamento e do arranha-céu, deste modo, surgiram para realçar a distinção, o luxo e a elegância de se viver num bairro “aristocrático” e onde o novo tipo de moradia mais se desenvolvia em toda a cidade. Morar em um apartamento em Copacabana, portanto, tornava-se sinônimo de boa-vida e de status social.
Em todo esse processo se verificou a construção social de um discurso e de um imaginário que atraía a classe burguesa carioca para o bairro e fazia com que ela tivesse cada vez mais desejo de residir na área. Todo este encantamento, de um modo geral, não se restringiu às características físicas da mercadoria-apartamento, mas também aos seus aspectos metafísicos, dado que este bem surgía enquanto algo a ser cultuado e que detinha atributos equivalentes aos vistos no homem — como observado no jornal, em inúmeros casos os apartamentos, assim como seus moradores, foram classificados como “elegantes”, “aristocráticos” e “modernos”.
A vida num apartamento, contudo, não representava uma forma natural de convívio, mas é reflexo de relações sociais da sociedade capitalista que induzem pessoas a pautarem sua convivência por meio de mercadorias que adquirem vida e vontade próprias. E quando a variável “Copacabana” era considerada, esta relação “fantasmagórica” se exacerbava, na medida que toda a ação do capital (incorporador, neste caso) e da mídia (como vimos no Beira-mar) transformou esta localidade em verdadeiro paraíso, onde se morava melhor e todos queriam estar.
notas
NE — Este artigo foi originalmente apresentado no evento Colóquio Verticalização, adensamento e urbanidade: questões de pesquisa. VIEIRA, Ivan Souza. Nas alturas: o apartamento à beira-mar e a verticalização de Copacabana. Colóquio Verticalização, adensamento e urbanidade: questões de pesquisa, São Paulo, PPGAU FAU Mackenzie, 12 a 13 set. 2019.
1
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/IPPUR UFRJ/Fase, 1997.
2
REZENDE, Vera Lucia Ferreira Motta. Planos e regulação urbanística: a dimensão normativa das intervenções na cidade do Rio de Janeiro. In OLIVEIRA, Lucia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro, FGV, 2002, p. 256-281.
3
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Op. cit., p. 89.
4
SMOLKA, Martini Oscar. O capital incorporador e seus movimentos de valorização. Cadernos PUR UFRJ, n. 1, 1987, p. 47.
5
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Op. cit., p. 250.
6
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Op. cit., p. 263.
7
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Coleção Os Pensadores: livro 1, tomo 2. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 165.
8
Idem, ibidem, p. 166.
9
Na passagem do item 2 para o item 3 do referido capítulo, Marx muda a terminologia do conceito até aqui trabalhado: de “mercadoria” para “forma mercadoria”. Esta última expressão, em suma, condensa em si as determinações do que se constitui a teoria do valor de Marx.
10
Idem, ibidem, p. 198.
11
Idem, ibidem, p. 198.
12
Idem, ibidem, p. 201-202.
13
Em referência ao livro “A invenção de Copacabana”, de Julia O’Donnell. O’DONNELL, Julia. A invenção de Copacabana: Culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro (1890-1940). Rio de Janeiro, Zahar, 2013.
14
MACEDO, Silvio Soares. Litoral urbanização: ambientes e seus ecossistemas frágeis. Paisagem Ambiente: Ensaios, n. 12, São Paulo, dez. 1999, p. 49.
15
CORBAIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
16
ABREU, Mauricio. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 4ª edição. Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos, 1987, p. 48.
17
BORGES, Marília Vicente. O zoneamento na cidade do Rio de Janeiro: gênese, evolução e aplicação. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, IPPUR UFRJ, 2007.
18
REZENDE, Vera Lucia Ferreira Motta. Op. cit., p. 262.
19
JARDIM, Paulo. O Rio e o mar na orla sul da baía. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2014, p. 50-51.
20
Dados obtidos na seguinte obra: CARDEMAN, David; CARDEMAN, Rogério Goldfeld. O Rio de Janeiro nas alturas. Rio de Janeiro, Mauad, 2016.
21
Observação sobre O Beira-mar (Copacabana, Ipanema, Leme): As edições consultadas estão disponíveis no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional <https://bit.ly/3Fe0R8i>.
22
Beira-mar, Rio de Janeiro, 22 ago.1926, p. 5.
23
Beira-mar, Rio de Janeiro, 16 set. 1928, p. 1.
24
Beira-mar, Rio de Janeiro, 23 out. 1927, p. 8.
25
Beira-mar, Rio de Janeiro, 7 nov. 1936, p. 84.
26
Beira-mar, Rio de Janeiro, 21 dez. 1924, p. 5.
27
Beira-mar, Rio de Janeiro, 3 jun. 1939, p. 9.
28
Beira-mar, Rio de Janeiro, 20 jun. 1942, p. 6.
29
Beira-mar, Rio de Janeiro, 20 jan. 1940, p. 6.
30
Idem, ibidem.
31
Beira-mar, Rio de Janeiro, 4 jul. 1936, p. 5.
32
Beira-mar, Rio de Janeiro, 24 jul. 1937, p. 1
33
Beira-mar, Rio de Janeiro, 26 set. 1936, p. 1
34
Idem, ibidem.
35
Beira-mar, Rio de Janeiro, 26 set. 1936, p. 1.
sobre o autor
Ivan Souza Vieira é mestre em Ciência Política (2020) e bacharel em Ciências Sociais (2016) pela Universidade de São Paulo. Especialista em Política e Planejamento Urbano (2018) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é doutorando em Ciência Política pelo Centro de Investigación y Docencia Económicas, no México.