“Dentro do museu novo em folha
uma sinagoga antiga.
Dentro da sinagoga
eu.
Dentro de mim
meu coração
Dentro do meu coração
um museu” (1).
Tanto as arquiteturas como as comunidades são experienciadas em uma dialética entre o dentro e o fora. É por meio da fachada na arquitetura e da expressão identitária nas comunidades que uma certa permeabilidade entre interior e exterior é revelada. Permitindo uma transmissão de imagens que podem ser vistas no espaço comum das cidades e da sociedade, apreendidas e ressignificadas em um contexto mais amplo. É nessa chave de leitura que este artigo busca articular identidade judaica e arquitetura, tomando como objeto a transformação do Templo Beth El, a primeira grande sinagoga paulista, no Museu Judaico de São Paulo, recém inaugurado. É por meio dessas duas temporalidades, sobrepostas na arquitetura, que narrativas diversas ou até antagônicas se relacionam, expressando diferentes imagens judaicas.
As origens do Templo Beth El
No ano de 1926, há quase cem anos, a primeira geração de imigrantes judeus ashkenazitas que residiam São Paulo, decidiu construir uma sinagoga de maior porte. No vetor de expansão oeste da cidade, o terreno entre o viaduto da Martinho Prado e a rua Avanhandava foi adquirido com a Companhia City para a construção do que veio a ser o Templo Beth El.
Na busca de um lugar fora dos limites do Bom Retiro transparece uma intenção cosmopolita de afastamento aos referenciais guetificados existentes na ocupação daquele bairro, trazidos do leste europeu. Os dizeres inscritos na fachada da sinagoga: “Que esta seja uma casa de orações para todos os povos”, anunciam o anseio de congregar as diferentes origens judaicas em um mesmo espaço.
Os financiadores dessa construção, as famílias Klabin e Lafer, realizaram um concurso entre os arquitetos Samuel Roder e Gregori Warchavchik (2). É justamente nas divergências dos projetos desses dois arquitetos, judeus e imigrantes, que se encontra a tensão entre tradição e modernidade, presente na identidade judaica e transposta para as formas arquitetônicas. Entre uma linguagem simbólica e historicista de Roder e outra abstrata e vanguardista de Warchavchik, se tornam perceptíveis os embates estéticos nas artes no início do século 20, que se estabeleceram entre os ecléticos e os modernistas.
Warchavchik, recém chegado ao Brasil, buscava espaço para disseminar os ideais modernos de arquitetura, da clareza formal e da funcionalidade, trazidos consigo da Europa. Em 1925, em um artigo intitulado “Acerca da Architectura Moderna”, ele denuncia o uso da ornamentação em arquitetura: “Detalhe inútil e absurdo, imitação cega da técnica da arquitetura clássica, tudo isso era lógico e belo, mas não é mais”. Por mais que Warchavchik denunciasse a ornamentação, seus projetos para sinagogas não deixavam de estabelecer relações iconográficas com a tradição judaica: por meio da cúpula, inscrições de letras hebraicas ou relevos com símbolos em suas fachadas, adequando a ‘função ornamental’ ao vocabulário moderno.
Em outra vertente, Samuel Roder, formado pela Academia de Belas Artes de Kiev, propôs para o Templo Beth El um edifício de sete lados com arcos, cúpulas e vitrais, incorporando o estilo bizantino, único e sem continuidade na arquitetura judaica no Brasil. Segundo Anat Falbel (3), o estilo bizantino foi utilizado em sinagogas nos Estados Unidos durante a década de 1920 como construção judaica de uma linguagem arquitetônica. O paralelo mais evidente do Templo Beth El de São Paulo pode ser encontrado no Templo Tifereth Israel em Cleveland, projetado por Charles Greco e construído entre 1922 e 1924. Alfred Alschuler, arquiteto que também se utilizou do estilo, justifica o emprego na arquitetura judaica da seguinte forma:
“Os arquitetos e construtores de Constantino e Justiniano foram inspirados pelas artes e estilos das raças subjugadas ao domínio do Império Romano, sendo razoável assumir que o desenvolvimento do estilo da arquitetura bizantina tomou e incorporou os temas existentes de origem judaica” (4).
Na busca de uma arquitetura que figurasse o sentido identitário da insurgente comunidade judaica paulista, duas formas distintas foram propostas. No projeto de Roder, a identidade judaica é assumida por meio da retomada de uma linguagem antiga, e de certo modo, ‘comum’ às diversas comunidades das diásporas. Nessa construção simbólica reside a tentativa de alcançar uma expressão judaica nas artes e arquitetura, alinhadas com a formação do Estado Nacional judaico nos meados do século 20 (5). Warchavchik, por sua vez, indica na concepção de espaços desprovidos de qualquer ordem arquitetônica ‘ultrapassada’, a possibilidade daqueles imigrantes judeus elaborarem sua identidade judaica moderna no novo contexto brasileiro, sem se utilizar de estilos históricos de seus lugares de origem. Por fim, o projeto de Roder foi selecionado em detrimento ao de Warchavchik.
De modo que a narrativa arquitetônica da sinagoga, traçada até aqui, não seja concluída de maneira polarizada entre tradição e modernidade, relato algumas contradições que integram a história daquele edifício. A construção foi uma das primeiras em São Paulo a utilizar o concreto armado como material estrutural. Warchavchik não edificou seu projeto para o Templo, mas foi chamado para supervisionar a execução da obra de Roder, na etapa de acabamento. Foi nesse momento que os recursos financeiros cessaram, o que levou o interior a ficar sem ornamentação.
Em uma entrevista realizada em outubro de 1982, Samuel Roder relata: “A sinagoga, de acordo com meu projeto, nunca foi concluída. Ninguém quer dar dinheiro para terminar... Se fosse terminada, como vi no Templo de Kiev, que era uma maravilha, tinha ornatos, pinturas, mas aqui está tudo nú, branco, não tem decoração”. É justamente pelo inacabamento do interior da sinagoga, que este ambiente adquire sua complexidade, relacionando ao mesmo tempo uma aparência moderna, desnuda e impessoal da clareza dos pilares e planos brancos, com um vocabulário formal de arcos e cúpulas, que buscava retornar a origens judaicas longínquas, resultado interior da volumetria externa do edifício bizantino.
As duas fotografias a seguir mostram o Templo Beth El em 1938. Na primeira, vemos o viaduto da Martinho Prado, que transpõe o vale da Nove de Julho, com o Córrego do Saracura ainda não retificado. Na outra, em primeiro plano, vemos um homem vestido de branco dentro de uma vala, possivelmente um engenheiro, nas obras de infraestrutura urbana dos empreendimentos da Companhia City. A placa anuncia: “Apartamentos e grandes edifícios, vendas a longo praso”. Ao fundo o Templo Beth El, como única arquitetura presente na imagem.
Do antigo templo ao novo museu
Ao longo de todo o século 20, inúmeras obras urbanas transformaram a paisagem daquela região. A transição do Vale do Anhangabaú em uma rodovia urbana e a construção do Viaduto Júlio de Mesquita Filho, que conecta o Minhocão com a Radial Leste, rasgando o tecido urbano do Bexiga, complexificaram as camadas da cidade. Durante as décadas de 1970 e 1980, o deslocamento dos centros econômicos e culturais ao vetor sudoeste resultou na evasão da comunidade judaica do Centro de São Paulo, incluindo do bairro do Bom Retiro. O Templo, que da década de 1930 até a de 1970, representou aos judeus liberais um dos principais espaços de uso comunitário, sediando inúmeras cerimônias de casamento e outras festas judaicas, foi progressivamente sendo esvaziado.
Nesse intercurso, a arquitetura se deteriorou. Camadas de tinta sobrepostas e décadas de uso contínuo transfiguravam aquele edifício em algo já distinto do que ele havia sido em 1928. A retomada da região central como patrimônio cultural e urbano, na última década, ressignificou o antigo Templo Beth El para se tornar o novo Museu Judaico de São Paulo. A edificação foi tombada pelo Conpresp em 2013, em seus níveis superiores, pelo seu valor histórico e pela “procura de uma linguagem judaica na arquitetura” (6). No entanto, nas cotas inferiores ao viaduto Martinho Prado foram permitidas modificações, abrindo espaço para transformações contemporâneas naquela edificação.
Para adaptar o prédio sinagogal, a Associação de Amigos do Museu realizou um concurso, com a temática “Tradição e Modernidade”, em que participaram os arquitetos Roberto Loeb, André Vainer, Marcos Cartum, Paulo Bastos e os escritórios Botti Rubin e Brasil Arquitetura. Todas as propostas se utilizaram do terreno contíguo, de 7 por 31 metros, onde estaria uma escadaria pública que não foi construída. Esse terreno da prefeitura foi por muitos anos um ‘quintal’ subutilizado da sinagoga no nível da Nove de Julho, que a Associação de Amigos do Museu conseguiu em comodato para realizar a expansão.
O projeto vencedor foi do escritório Botti Rubin, que propôs no terreno contíguo um anexo de circulação conectando os térreos da Martinho Prado e da 9 de Julho, passando pelos dois andares intermediários onde estão alocadas as exposições de longa duração. Nos níveis superiores à Martinho Prado, de maior valor patrimonial do Templo, o interior e exterior da antiga construção passaram por um processo de restauro, devidamente executado de acordo com estudos e reconstituições. As obras de ampliação e restauro começaram a ser feitas em 2011 e foram concluídas em 2019.
O museu como lugar judaico
O funcionamento do lugar como sinagoga se deu com aberturas periódicas até 2011, quando a comunidade foi transferida para novo endereço no bairro dos Jardins. As sinagogas, como arquitetura comunitária da diáspora, não são espaços para abrigarem “a morada de Deus”, mas lugares voltados para as escalas humanas. Segundo Adolfo Roitman: “todo lugar pode ser prima facie uma sinagoga, implicando que o elo com Deus não reside em um lugar fixo e determinado (como é o caso de um templo), mas que se fazia presente onde Israel se reunia e elevava suas preces” (7). Pela tradição judaica, as construções sinagogais podem ser substituídas e até mesmo demolidas, contanto que a comunidade se estabeleça em um novo lugar, como foi o caso da comunidade Beth El.
A arquitetura do Templo Beth El, nessa transformação, perdeu seu significado locativo de santidade. Sem a presença dos rituais e de uma comunidade que os coloque em prática, a arquitetura se torna um invólucro esvaziado. Com essa metamorfose de usos, um deslocamento semântico ocorre no espaço, sem que a arquitetura seja modificada: a atmosfera de sagrado se converte em comum.
Em uma perspectiva religiosa, o espaço sagrado é entendido como aquele que se separa (8) do comum ou profano. Já em uma transposição para uma perspectiva cultural, o espaço sagrado que se transforma em comum se faz acessível e permeável para outros olhares que não somente os judaicos — nessa abertura é possível reconhecer um dos vieses curatoriais do Museu, do diálogo com a cidade e sociedade que o envolvem. É essa dialética entre olhares internos e externos que torna esse lugar judaico singular dentre os outros que estão espalhados pela cidade.
Um lugar judaico, bem como o judaísmo em si, não se restringem a aqueles preenchidos de religiosidade e santidade, mas são aqueles cujas identidades judaicas, em suas pluralidades, são efetivamente experienciadas. Lugares judaicos podem ser encontrados em uma escola, em um bairro, no interior de uma casa, em um cemitério, ou mesmo dentro de um museu.
O que caracteriza um lugar judaico? É possível dar forma exterior para as subjetividades judaicas interiores? Ou mesmo, a Arquitetura tem como papel expressar sentidos identitários? Esses questionamentos são apresentados, em primeiro lugar, para privilegiar a dúvida perante as respostas; depois, para articular possíveis reflexões dentre as muitas respostas que essas perguntas permitem, em vista de estabelecer uma crítica sobre as recentes obras de ampliação do Museu Judaico de São Paulo.
Arquitetura contemporânea e identidade judaica
A seguinte reflexão sobre identidade na arquitetura tem como objeto principal a fachada de vidro como a marca contemporânea mais significativa naquela arquitetura. O elemento da fachada, para além de ser um fechamento do edifício, representa o plano que comunica o interior com o exterior, por onde a edificação é lida em contexto urbano. Para Robert Venturi: “A arquitetura como parede entre o interior e o exterior converte-se no registro espacial dessa resolução e em seu drama” (9).
A justificativa dada pelo arquiteto Marc Rubin para a colocação da pele de vidro na fachada da avenida Nove de Julho é que “o museu se abra para a cidade”, indicando o desejo de permeabilidade entre o dentro e o fora. Segundo ele: “[a fachada de vidro] funcionará como uma grande vitrine da cultura judaica e será uma referência urbana para o centro de São Paulo” (10).
Entretanto, a imagem que a fachada curva de vidro espelhado exibe não evidencia qualquer elemento judaico interior, mas ao contrário, reflete a própria paisagem exterior da movimentada avenida Nove de Julho. O intercâmbio almejado entre edifício e cidade não se dá pela ótica da transparência. O emprego do vidro espelhado, materialidade recorrente na paisagem corporativa paulistana, dificulta a distinção do Museu Judaico diante outras construções empresariais construídas nos últimos anos na cidade. Onde originalmente, pelo anteprojeto, estaria um jardim, foram instalados repetitivos volumes de ar condicionado.
Funcionalmente, o projeto atende às demandas do programa museológico, e proporciona as transformações arquitetônicas necessárias para a mudança de uso. No entanto, ao seguir uma lógica funcionalista, a arquitetura do anexo não evidencia um diálogo com as formas pré-existentes do Templo, nem busca algum modo de transmissão da identidade judaica por meio de sua conformação arquitetônica. Pelo contrário, o projeto se apropria do vidro como representação de si. Superfície aparentemente permeável e quase ‘imaterial’, representa a transparência de uma identidade quase sem fronteiras. Nada no vidro é singular, autêntico ou único:
“Segundo Benjamin, o vidro é inimigo do mistério e da propriedade [...]. Mas se o vidro tem a propriedade transgressiva de desencantar o mundo e horizontalizar as relações sociais, ele é também, por outro lado, ainda segundo Benjamin, a encarnação de uma ‘nova pobreza’, em que o homem ostenta através da transparência total a sua libertação final de toda a experiência [identidade]” (11).
É importante relembrar que em 1928 a ornamentação do Templo Beth El foi privilegiada em seu exterior visto pela cidade, perante ao interior, que só era visto pela comunidade. O novo bloco anexo, diferentemente do Templo, cria uma apreensão difusa no contexto urbano. Nessa narrativa de diluição simbólica pelo emprego do vidro, reside o discurso cuja origem é o iluminismo judaico do século 19, de assumir que não há nada que diferencie algo judaico do que não é. Nesse sentido, a questão levantada por Lewis Mumford em 1925 continua sendo pertinente:
“Quais foram as fontes tradicionais da cultura judaica? Até que ponto elas podem ser utilizadas em nosso tempo? E se a sinagoga [ou o Museu] deve estar em harmonia com os edifícios em seu entorno, ou deve destacar-se proclamando a individualidade cultural da comunidade judaica?” (12).
Sob o ponto de vista dos ideais modernos, arquitetônico (modernismo) e judaico (reformista), a caixa de vidro do Museu pode ser lida como o resultado de um duplo processo: descolamento dos signos e ornatos dos planos arquitetônicos, juntamente com a dissociação de simbologias e identificações ao judaísmo. Ao se ver livre de qualquer identificação étnica-identitária, a obra assume o ideal moderno da emancipação judaica, proposto por Napoleão em 1791, quando o judaísmo passa a ser experienciado na vida privada interior (expografia), enquanto a vida pública (fachada) se assimila no contexto geral da sociedade. Desse modo o edifício anexo se funde com a paisagem urbana emancipada de resquícios judaizantes.
A imagem que os imigrantes judeus buscavam representar por meio da arquitetura do Templo, na escolha do historicismo de Roder, se transforma durante a segunda metade do século 20 com a adesão da estética moderna nos edifícios comunitários judaicos ao redor do mundo. O debate estabelecido entre os ecléticos e modernistas, no início do século, sobre as construções de linguagem figurada/abstrata, ressurge sob nova perspectiva nas tensões existentes entre a arquitetura moderna e a pós-moderna. Como apresenta Guilherme Wisnik em Dentro do nevoeiro:
“Se antes da modernidade, no período correspondente à arte naturalista, um edifício era percebido segundo suas diferentes vistas externas, a arquitetura moderna procurou abolir essa diferenciação hierárquica entre as fachadas, propondo criar uma relação de continuidade entre o edifício e a cidade, o mundo em comum por excelência. Mas na prática essa almejada fusão do edifício na cidade nunca chega a ocorrer plenamente, o que faz com que essa prometida relação de identidade termine sempre truncada. Daí que a fachada-anteparo da arquitetura pós-moderna — seja ela historicista, neo vernacular, iconográfica ou mais abstrata — que em geral rompe a transparência ideal da pele de vidro moderna, assume essa condição de isolamento do edifício em relação ao entorno, Isto é, assuma sua condição tópica, claramente irredutível a generalidade da cidade” (13).
Sobre a ausência de um sentido claro e uniforme na leitura de identidades no século 21, Stuart Hall expõe que elas são: “Cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos” (14). Por mais que as definições se tornem cada vez mais complexas, a questão da Identidade, em especial das minorias, tem sido trazida ao primeiro plano ao longo das últimas décadas nas discussões políticas e estéticas.
O projeto da Botti Rubin se utiliza da pele de vidro moderna em oposição a outros projetos judaicos contemporâneos que reivindicam o ressurgimento de elementos judaicos, iconográficos, históricos ou mais abstratos nos planos e volumes da arquitetura, como é o caso do Museu Judaico de Berlim de Daniel Libeskind (1999), ou mesmo do Centro de Cultura Judaica (atual Unibes Cultural) projetado por Roberto Loeb (2003).
As questões acerca da construção de formas mais figuradas ou mais abstratas para representar a identidade judaica se expandem para além da Arquitetura e se estabelecem de maneira geral em toda a experiência social judaica. De um lado, as ortodoxias, que por meios tradicionais buscam conter uma imagem estática de judaísmo que em extremos recai numa caricatura. De outro, o secularismo que pela modernidade assimila outras imagens não-judaicas, que quando inteiramente diluídas se tornam tão transparentes que impedem qualquer identificação ao judaísmo.
Conclusão
A arquitetura do Museu Judaico de São Paulo, com suas sobreposições de camadas, revela escolhas e intenções díspares na construção da memória, destes que edificaram o Museu, e daqueles que ergueram o Templo noventa anos antes. A linha demarcada no piso, que divide a antiga da nova edificação do Museu, aponta para uma leitura descontínua daquele todo. Na impossibilidade de estabelecer uma narrativa que costure os tempos da edificação, o projeto atual busca, por meio da ‘neutralidade’, uma irreal tentativa de retirar da tectônica vestígios sobre o tempo presente. E com isso, perde em possibilidades narrativas de significados étnicos-identitários exteriores, para além dos conteúdos que serão exibidos no interior do Museu.
A mesma dificuldade que os autores judeus têm para articular verbalmente uma resposta ao que é judaísmo, também é enfrentada pelos arquitetos na construção de significados para um lugar judaico. A arquitetura judaica como estilo ou linguagem unificada não existe, entretanto são muitas as formulações possíveis de serem concebidas. Na filosofia judaica antiga, o Rabi Tarfon costumava dizer que: “Não lhe é exigido que complete a tarefa, mas não é livre para escapar dela” (15). Essa abordagem de uma constante gestação da obra é o que impossibilita uma imagem conclusiva sobre a linguagem judaica, mas não exime a necessidade de uma contínua atualização dessa busca.
Por toda a diáspora do povo judeu, desde os mais antigos vestígios arquitetônicos, até os dias de hoje, inúmeras obras têm a capacidade intrínseca de transmitir influências judaicas, expressas por meio do espaço e da Arquitetura, que demonstram medidas combinadas de figuração, abstração, de abertura e de reclusão daquelas comunidades. Não faltam exemplos dos mais variados, sejam eles históricos, iconográficos ou conceituais, capazes de inspirar e fomentar a elaboração de uma arquitetura judaica dotada de sentido contemporâneo. Para Sergio Ekerman: “Não há dúvidas de que os caminhos capazes de trilhar esta renovação da religião judaica e da expressão de sua arquitetura são múltiplos e heterogêneos” (16).
Para além de abrigar funções e necessidades presentes, a arquitetura deve ser lida como um veículo portador de sentidos, que perpassa as gerações carregando em si os vestígios e marcas de cada uma delas. Na possibilidade de reflexão sobre o tempo de agora, tomamos contato com a nossa condição ativa na construção da memória. Como sabiamente John Ruskin expõe: “Que nós pensemos, enquanto colocamos pedra sobre pedra, que virá um tempo em que aquelas Pedras serão consideradas sagradas porque nossas mãos as tocaram” (17).
notas
1
AMICHAI, Yehuda. Poema Infinito. In AMÂNCIO, Moacir (org.). Terra e paz: antologia poética. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2018, p. 182.
2
Até o momento o projeto de Gregori Warchavchik para o Templo Beth-El é desconhecido, nesse sentido a presente análise foi pautada em outros projetos sinagogais realizados pelo arquiteto.
3
FALBEL, Anat. O domo e o edifício sinagogal: entre a unidade da fé e a afirmação da nacionalidade. Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 12, Campinas, dez. 2009.
4
ALSCHULER, Alfred S. Isaiah Temple, Chicago. The American Architect & The Architectural Review, CXXVI, 1924, p. 623.
5
FALBEL, Anat. Op. cit.
6
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DA PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Resolução n. 14 / Conpresp / 2013. São Paulo, Conpresp <https://bit.ly/3Hy66S4>.
7
ROITMAN, Adolfo D. Del Tabernáculo al Templo. Sobre el espacio sagrado en el judaísmo antiguo. Estella, Editorial Verbo Divino, 2016, p. 59.
8
Segundo a tradição judaica, a palavra hebraica “קדוש” [kadosh] que se traduz “sagrado” também significa “separado”.
9
VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 119.
10
Botti Rubin: Museu, São Paulo. Arco Web, São Paulo, 27 jul. 2006 <https://bit.ly/3cmWM5a>.
11
WISNIK, Guilherme. Dentro do Nevoeiro: diálogos cruzados entre arte e arquitetura contemporânea. Tese doutorado. São Paulo, FAU USP, 2012, p. 207.
12
MUMFORD, Lewis. Towards a Modern Synagogue Architecture. Menorah Journal, jun. 1925, p. 225-240.
13
WISNIK, Guilherme. Op. cit., p. 53. Grifo do autor.
14
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade. In. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2012.
15
Pirke Avot 2:16, circa século I. Tradução do autor.
16
EKERMAN, Sergio Kopinski. Judaísmo e Identidade na Arquitetura de Sinagogas. Revista 18, ano V, n. 22, São Paulo, jan./ fev. 2007, p. 58-63.
17
RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia, Ateliê Editorial, 2008, p. 67-68
sobre o autor
Gabriel Neistein Lowczyk é paulistano e está finalizando a graduação em Arquitetura e Urbanismo na FAU USP. Desde 2017, quando viveu em Jerusalém, vem elaborando pesquisas sobre diferentes perspectivas de lugar no Judaísmo. Atualmente vive no Bom Retiro e é um dos coordenadores do Círculo de Reflexão de Judaísmo Contemporâneo da Casa do Povo. Desenvolve também estudos e práticas nos campos das artes visuais e na música.