A produção do espaço é uma prática social ligada a um determinado tempo e, a partir de uma estrutura (cultural, econômica, política), são constituídas as formas e funções de um determinado espaço (1). Essa construção está em constante transformação e deixa rastros de sua concepção na história. Marcas que podem permanecer ou ser adaptadas para servir aos novos propósitos e/ou usos do espaço, atribuídos pela população que dele se apropria. A configuração desses espaços estaria ligada ao direito à cidade (2), pois é no urbano que se manifestam as principais necessidades e atividades humanas. Assim, é impossível dissociar tais conceitos dos espaços públicos, onde os encontros, as trocas, o convívio, os confrontos, os protestos e a vida coletiva acontecem nas cidades.
Ruas, praças, parques fazem parte das rotinas da vida urbana desde as primeiras cidades e, na lógica capitalista de produção do espaço, esses locais vêm sofrendo transformações nos últimos séculos. Esta lógica, de valores individualistas e consumistas, altera substantivamente a relação entre o espaço público e privado. A produção crescente de loteamentos e condomínios fechados para classes média e alta, que levam atividades públicas para espaços privativos e a criam espaços coletivos-privados, como os shoppings centers, esvaziam os sentidos de coletivo, público e de apropriação da cidade (3).
Como agravante desta situação, estabeleceu-se no contexto da pandemia do coronavírus, a restrição do uso dos espaços públicos, medidas de distanciamento social e fechamento dos locais de grande concentração de pessoas. A alteração da vida urbana, pode gerar uma quebra na maneira como se pensa, utiliza e se apropria dos espaços, inclusive na esfera pública, entendida no sentido mais amplo de vida coletiva e pública. Assim, o objetivo deste trabalho é refletir sobre os debates que vêm ocorrendo sobre os espaços públicos durante a pandemia, para entender e confrontar diferentes perspectivas sobre mudanças às quais esses espaços estão sendo submetidos e também utopias e distopias colocadas em pauta como possibilidades de futuro.
As reflexões aqui trazidas foram desenvolvidas em aproximação ao método regressivo-progressivo (4), que olha do virtual ao presente, avaliando a produção do espaço neste momento, “como conceito teórico e realidade prática indissoluvelmente ligados” (5), recorrendo ao passado na busca de aspectos e momentos pouco explorados. Dessa forma, se esclarece o passado de uma nova maneira, ao mesmo tempo que remonta o processo que leva deste passado ao presente e ao futuro como algo novo que pode nascer.
A construção histórica possibilita outra leitura dos espaços públicos na atualidade, e assim entender melhor os movimentos de produção do espaço e as hipóteses sobre futuro trazidas nos debates ocorridos na pandemia. Foi então realizada uma pesquisa bibliográfica para entender os processos de produção e uso dos espaços públicos na história. Posteriormente, foram analisadas narrativas em ensaios e lives sobre acontecimentos durante a pandemia relacionados às cidades, para entender questões emergentes sobre os espaços públicos sob o imperativo do distanciamento social, quais debates ocupam as arenas de discussão e as funções que lhes são atribuídas, assim como utopias e distopias nas prospecções sobre o seu futuro.
Faz-se assim uma análise buscando entender como formas e funções pretéritas dos espaços públicos dialogam ou se afastam das atuais e como podem contribuir para refletir sobre eles durante e após a pandemia. O trabalho, traz uma visão atual das diferentes narrativas envolvendo os espaços públicos, na crise sanitária, possibilitando a observação de diferentes posições sobre o assunto. Busca também entender as repercussões imediatas da ausência/presença das pessoas nos espaços públicos e digressões produzidas, aqui entendidas, tanto no sentido de afastamento físico, quanto dos valores e sentidos historicamente atrelados a esses espaços.
Espaços públicos e esfera pública: prospecções na história
Estrutura, forma e função são categorias de análise do espaço propostas por Henry Lefebvre (6) e Milton Santos (7). Estrutura estaria ligada à economia, cultura e política de cada sociedade, forma à expressão física da estrutura no espaço; a função seria a maneira como aquela forma é usada e qual o seu propósito para aquela sociedade. Milton Santos (8) vai destacar o processo, como representação do tempo, capaz de marcar as transições.
Referenciais da cidade política (9), seja da polis grega, em particular da ágora (praça), ou da cidade romana, podem se mostrar residuais (10) na cultura contemporânea. Lefebvre (11) entende essas cidades como “cidades políticas”, reportando-se à administração, proteção e exploração do território. Em ambas a presença do espaço público era fundamental para a vida cotidiana e para a política. Porém, nem todos tinham acesso a esses espaços. Na Grécia antiga, esse direito só era garantido àqueles que fossem cidadãos da polis, ou seja, mulheres, escravos e estrangeiros residentes não participavam das decisões.
Na cidade medieval, outras lógicas dos espaços públicos se revelam. Lefebvre (12) enxerga condições favoráveis à união de mercadores contra os senhores de terras na estrutura dessa sociedade, baseada nas guildas com suas práticas de tomada de decisões coletivas em prol do interesse da associação. O mercado ganha importância e a praça do mercado se coloca como principal espaço da cidade, onde ocorriam encontros, celebrações e trocas. Assim, os espaços públicos tinham relevância no cotidiano da população, pois a rua, a praça e os equipamentos públicos eram essenciais para o desenvolvimento da vida e da rotina das pessoas nas cidades (13), sendo enaltecidos pela forma como eram apropriados e pelos significados atrelados à liberdade e a valorização da vida política.
As primeiras manifestações de mudanças na esfera pública surgem no Renascimento, quando a cidade passa a ser pensada para atender aos interesses de reis absolutistas, e se intensifica no Barroco, diante de interesses da Igreja Católica. O crescimento das cidades, as epidemias, o avanço das técnicas; a ascensão da burguesia e enfraquecimento das cooperativas; a separação entre o trabalho intelectual e o de produção marcam o período (14). Nesse contexto, interesses particulares ditavam as mudanças nas cidades, através de reformas urbanas com os propósitos de embelezamento, higienização e ruptura com o passado. Alterações na esfera pública e nos espaços públicos se estabelecem: as avenidas servem aos deleites da burguesia e dos militares; as calçadas são utilizadas pelas pessoas mais pobres; o comportamento em público se torna menos espontâneo e as ruas se tornam espaço de lutas (15).
A Revolução Industrial, especialmente no século 19, imprimiu diversas mudanças sociais, econômicas e políticas, que levaram a reformas importantes na esfera pública, no comportamento das pessoas e no desenho das cidades. As indústrias imprimem uma dinâmica de crescimento populacional sem precedentes nas cidades e a classe operária passa a ser o novo sujeito urbano. Isso, junto a mudanças comportamentais, como o estranhamento, e códigos sociais implementados no Barroco, intensificam o isolamento e o papel da casa como ambiente “seguro”. É o período das grandes reformas em cidades europeias, como a de Paris, onde boulevards, parques de passeio e largas avenidas, absorvem o capital da burguesia, atendem os interesses dos governantes e afastam dos centros das cidades as classes trabalhadoras (16). Com essas reformas, os espaços públicos assumem a função de lazer para as classes mais altas e os controles sufocam as inquietações das massas.
Mudanças são também marcantes a partir da segunda metade do século 20, com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, dos meios de transporte e da circulação de pessoas e bens. A internet e a socialização remota, principalmente a sua utilização como instrumento político, também contribui para o afastamento dos espaços públicos, ao que se soma uma profunda reconfiguração das relações sociais, o medo de estranhos, a valorização da individualidade produzidos por uma infinidade de estímulos (17). Condomínios fechados, shopping centers etc. acentuam a desigualdade e a segregação da população realça separações e opressões históricas, persistentes na produção e uso dos espaços.
Tais mudanças, rupturas e suas permanências e persistências contribuem para a crença de crise dos espaços públicos. As prospecções na história mostram elementos residuais ativos nos processos urbanos contemporâneos que tencionam a produção e o uso dos espaços públicos no sentido de esvaziar o seu caráter público e coletivo. Essa busca no passado esclarece então determinadas tradições que persistem dentro de uma lógica hegemônica de restrição, privação e privatização dos espaços públicos.
Olhar o passado implica também em examinar a produção e uso dos espaços públicos e a diversidade de agentes engajados nesses processos. Com esse olhar mais abrangente, identificam-se grupos sociais que encontram restrições no uso e apropriação dos espaços públicos. É o caso de mulheres, idosos, pessoas com deficiência, trabalhadores informais, LGBTQ+, pessoas em situação de rua, entre outros. Percebemos assim como práticas excludentes são resíduos de um passado não superado, marcado por cisões, assimetrias e opressões. Esses grupos encontram entraves na segurança, no preconceito e na arquitetura com sua mal qualificada e carência de equipamentos.
Todavia, mesmo com tantas adversidades, a sociedade ainda encontra maneiras de se apropriar dos espaços públicos e satisfazer suas necessidades sociais (18). Celebrações, como carnaval ou festas religiosas; manifestações políticas nas ruas, como aquelas promovidas por grupos LGBTQ e outros movimentos sociais; o lazer e o contato com a natureza em praças e parques, a mobilidade para o trabalho ou o próprio trabalho na rua; a expressão da arte, pequenas performances ou simplesmente os encontros e trocas nas praças, becos e praias, animam e dão sentido à vida coletiva. Tais exemplos mostram que os espaços públicos contemporâneos evidenciam muitas de suas funções agregadas ou apagadas na sua história.
A pandemia traz novas tensões a respeito do uso e apropriação do espaço público e ao direito à cidade. O distanciamento social se apresenta como uma das poucas medidas eficazes para o combate ao coronavírus, impondo restrições à cidade. Na estratégia de contenção da doença, os espaços públicos são afetados, sendo necessário entender discursos e práticas sociais, culturais e contextuais, que podem ser tanto passageiras, quanto duradouras. Esse esforço de reflexão é feito a partir de agentes sociais que, nessa conjuntura, discutem e expõem contradições que afetam os sentidos desses espaços.
A pandemia, os espaços públicos e suas diferentes dinâmicas no Brasil
A pandemia da Covid-19 que teve início no final de 2019, na China, e se espalhou no mundo, tem evidenciado as contradições da sociedade e das cidades forjadas no capitalismo, ao acentuar desigualdades, opressões e outras mazelas econômicas, sociais, ambientais. Também abala essa estrutura, pausando e/ou acelerando processos. Mudanças na forma e na função dos espaços da cidade com as medidas de distanciamento e isolamento social são marcantes, pois parte das pessoas foram confinadas dentro de suas casas e restritas de utilizar os espaços públicos, que tiveram suas praças lacradas, parques fechados, praias interditadas, entre outros.
O distanciamento social no atual contexto leva a reflexões sobre a relação entre espaço público e a liberdade. Para Hanna Arendt (19), a liberdade expressa a dimensão propriamente política da ação e, por isso, exige um espaço politicamente organizado para aparecer como “algo tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que podem ser comentados”, ou seja, a “liberdade só pode se efetivar quando se manifesta na sua visibilidade, como uma realidade concreta e tangível e isso depende da ação (e do discurso)” (20). Considerando que a noção de espaço público se determina enquanto “comunidade politicamente organizada”, algo que transcende o “espaço da vida individual” (21), a impossibilidade atual de uso pleno do espaço público pode significar a perda dessa condição de igualdade que apenas a liberdade pode construir. Essa condição, pode ser identificada em Arendt ao expressar que os homens, quando excluídos ou privados desse espaço, ficam fixados nas diferenças, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.
Do ponto de vista do direito à cidade, os espaços públicos seriam os locais de expressão das necessidades sociais. Com as restrições e interdições, encontros ficam restringidos ou permeados pelo medo da contaminação. Rodrigo Firmino (22), referindo-se a essas mudanças, traz a ideia de territorialidade do vírus, cuja rede e materialidade se expressam na forma de contágio, de contenção, de prevenção. O vírus então cria novas fronteiras e movimentos de de-re-territorialização. Reforçando a relação entre território, grupos sociais e medidas de prevenção.
Evidencia-se duas das diversas realidades no Brasil: a daqueles que se afastaram completamente dos espaços públicos, ocupando apenas os espaços privados porque têm condições de fazê-lo, e aqueles que permaneceram utilizando esses espaços por ser sua única opção viável. Reforçando esse cenário, estudo feito pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia — UFBA evidenciou que em bairros onde as condições de vida são de melhor qualidade, mais pessoas aderiram ao isolamento (23). Todavia, nos territórios populares, locais de maior vulnerabilidade, ficar isolado não é compatível com essa realidade.
Percebe-se, assim, como os espaços públicos são imprescindíveis para a vida de boa parte da população das cidades, seja em sua rotina ou até mesmo para sua sobrevivência. Enquanto parte da população se isola para se proteger do vírus, trabalhando e conectando-se de forma remota, outros não possuem essa opção (24), como vendedores ambulantes, entregadores de delivery, pedintes, atores, músicos e outros que se apresentam nos espaços abertos das cidades (25). Para essa população, não frequentar os espaços públicos significa privá-lo da sua condição de sobrevivência. Junta-se a este grupo profissionais de serviços essenciais, os que trabalham em indústrias, produção de alimentos, na área de saúde, entre outras modalidades, que saem nas ruas por conta da natureza de suas tarefas, que se expõem (26) nas aglomerações do uso dos transportes públicos, com oferta insuficiente e frota reduzida em várias cidades.
Embora as principais medidas de prevenção como lavar as mãos, usar álcool em gel, ficar em casa e manter distanciamento, sejam relativamente simples (27), a população em situação de rua, não têm acesso a banheiros públicos, água e sabão, que já eram escassos antes da pandemia (28). Somado a isso, despejos e remoções continuam ocorrendo, agora mais intensos, e acabam por deixar muitas famílias ainda mais vulneráveis. Ainda sobre a questão sanitária, muitas áreas das cidades não possuem abastecimento de água e/ou sistema de esgoto de qualidade, ou quando possuem, muitas das famílias não conseguem custear materiais de limpeza (29).
Diante das dificuldades, ações como a do Padre Lancellotti, que retirou pedras colocadas embaixo de um viaduto que impediam o uso da população em situação de rua, contribuem para pensar a cidade na ótica do direito à cidade. Percebe-se também que nas comunidades onde a presença do Estado é menor, as redes de solidariedade assumem o papel de cuidado da população (30), revelando o sentido coletivo da vida urbana. Pias comunitárias, por exemplo, foram instaladas em diversas comunidades.
Com o fechamento de escolas e outros serviços sociais, a situação se agrava ainda mais, pois várias dessas redes contribuem também para o amparo de crianças e idosos (31). Crianças perderam seus espaços de brincadeiras e socializações, além de ficarem deficitários com o ensino; idosos ficaram mais vulneráveis à violência (32), como têm sofrido com o abuso, o abandono e a ausência dos passeios e encontros nas ruas. As mulheres sofrem com a violência doméstica, aumentada com o confinamento; com a sobrecarga de trabalho e com a perda do espaço público na sua função de refúgio e de luta (33). Algumas pessoas têm encontrado apoio na conexão através das redes sociais e da internet, inclusive utilizando-as para fazer denúncias de abusos, mas, nem todos possuem acesso a estes recursos.
Muitos grupos sociais já viviam em quarentena antes da pandemia (34), pois frequentar os espaços públicos, existir na cidade e ter seu direito à cidade garantido já se apresentava como um entrave. Isso leva a reflexões sobre o fato de que a pandemia agravou tendências e trouxe para a visibilidade problemas antigos. As discussões sobre a crise desses espaços mostram-se importantes, pois percebe-se, com a pandemia, a dificuldade de viver sem os espaços públicos e como modelos ideais de apropriação nunca existiram.
Ausências, presenças e digressões dos espaços públicos na pandemia
O futuro pós-pandemia é incerto, mas, já é possível notar que muitas tendências que vinham surgindo nos últimos anos foram aceleradas, embora ainda não seja possível prever quais delas são temporárias e quais permanecerão. Discursos sobre o futuro da sociedade e das cidades presentes em lives e outros meios analisados durante a pandemia, trazem pontos de conexão e contradições à discussão sobre espaços públicos. Dentre eles destacam-se: 1. a relação entre espaços públicos e privados; 2. os atravessamentos tecnológicos; 3. novas regras e mudanças de comportamento; 4. as mudanças espaciais e na política urbana; 5. a relação entre controle e vigilância versus liberdade.
As esferas pública e privada, suas expressões na cidade e seus limites se aproximam na modernidade (35) e a pandemia traz inflexões. Espaços comerciais ocupam espaços públicos desde a revolução industrial, o que poderá se intensificar, com a justificativa de diminuir a aglomeração de pessoas dentro de estabelecimentos comerciais fechados (36). Assim, restringe-se e esvazia-se ainda mais os espaços públicos, que já são escassos.
A relação público e privado enseja debates sobre o mundo do trabalho, que sempre articulou as duas esferas. A expansão do trabalho remoto muda a maneira como se pensa e projeta o espaço da casa e expõe a vida privada dos trabalhadores. Quando realizado fora do ambiente doméstico, o trabalho impulsiona pessoas a utilizarem os espaços públicos em seus deslocamentos e mesmo como espaço de trabalho. Por um lado, essa medida pode afastar as pessoas ainda mais dos espaços públicos, reduzindo sua circulação pela cidade. Por outro, pode incentivar antigas e/ou novas formas de apropriação desses espaços. Uma possível tendência é a de redução de distâncias entre a moradia e o local de trabalho, permitindo que as pessoas se desloquem a pé ou de bicicleta, usando, dessa forma, mais intensamente os espaços públicos (37), proposta esta nomeada de “cidades de 15 minutos”.
Outra questão importante é a possibilidade de recrudescimento dos modelos higienistas, que expulsam a população vulnerabilizada para periferias longínquas (38), principalmente ao se observar o aumento dos despejos durante a pandemia. Sobre essas políticas, Sennett, junto com uma infinidade de agentes na esfera pública, aponta como alternativa o fortalecimento do Estado com vistas ao bem-estar social (39). Em reforço, Raquel Rolnik e Ana Fernandes (40) discutem a necessidade de políticas públicas mais próximas ao território em diálogo com a realidade de cada área da cidade.
Discussões sobre vigilância e controle, especialmente sobre medidas antidemocráticas e opressoras, com proibições, seguidas de medidas coercitivas, aplicadas por alguns países geraram controvérsias. Para garantir o cumprimento de medidas protetivas, governos têm se valido do auxílio do controle digital, chamado de capitalismo de vigilância (41). Como avalia Rob Kitchin (42), “o uso indiscriminado de tecnologias no combate à pandemia tende a legitimar e naturalizar o capitalismo de vigilância, abrindo novas possibilidades de exploração invasiva de dados pessoais em prol do lucro — processo que chama de ‘covidwashing’”. Em contraponto, ficar em casa trouxe mudanças no comportamento das pessoas, podendo alterar a maneira como interagem no espaço público. Estranhamentos e aproximações, inclusive políticas, revelam mudanças de comportamento e atitudes no espaço e esfera públicos, como visto no uso da máscara em apoio ou negação ao governo (43).
A ideia da liberdade é trazida também na dimensão coletiva e pública. André Lemos (44) aborda a liberdade, não como um direito privado, individual, pois entende que somos dependentes uns dos outros, de objetos e de outros seres vivos. Assim, faz-se necessário repensar essa liberdade a partir da pandemia, conferindo-lhe um caráter coletivo e não privado, em aproximação ao entendimento de Hanna Arendt (45) e em reforço à esfera e ao espaço público como condições de existência na/da cidade.
Considerações finais
Se por muito tempo vêm se discutindo a crise e o abandono dos espaços públicos, a pandemia traz uma versão mais próxima dessa crença. Ao mesmo tempo, ela mostra o quão difícil é não estar no espaço público, não viver a vida pública. Ela evidencia características de uma sociedade marcada pelo individualismo, consumismo e impessoalidade, como também mostra a capacidade humana de ser solidários. O contexto traz a chance de repensar a sociedade, a política, a economia e o planejamento das nossas cidades.
As restrições feitas no período trazem de volta o espaço público para o centro da discussão, permitindo pensá-los a partir das necessidades atuais, com a possibilidade de torná-los mais democráticos. Essa é uma questão alertada por Richard Sennett (46) ao recorrer a Foucault para explicar o quanto a arquitetura de espaço de confinamento e seus mobiliários são projetados para limitar a atuação do corpo e servir como tecnologia de controle, disciplina, acompanhamento e observância de sujeitos. Assim, mecanismos antigos são evidenciados na pandemia. Em contraposição, Sennett enfatiza a ética da cidade aberta, a partir da feitura da cidade em diálogo com apropriações, vivências, o corpo, os sentidos e o tempo.
No momento de incertezas, importa destacar que a crise sanitária em curso escancara o modelo insustentável de sociedade, no qual não tem lugar um planejamento para as cidades e seus espaços públicos. Isso reforça a importância de olhar a pandemia como um momento de aprofundamento do debate sobre que sociedade e que cidade queremos, ou, como propõe Bruno Latour (47) aproveitar a “pausa” que o vírus deu no capitalismo para repensar o que se quer que continue e o que se acha que merece ser mudado. Entender, assim, limites e conexões entre as esferas pública e privada para repensar essas relações, com vistas a um futuro em que o público, o comum e o coletivo preponderem nas cidades e nos espaços públicos.
notas
1
SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo, Nobel, 1985; LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Tradução de Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins <https://bit.ly/3Fee94H>.
2
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo, Moraes, 1991.
3
Idem, ibidem.
4
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço (op. cit.).
5
Idem, ibidem, p. 103.
6
Idem, ibidem.
7
SANTOS, Milton (op. cit.), p. 49-59.
8
Idem, ibidem.
9
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte, UFMG, 2002.
10
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.
11
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço (op. cit.).
12
Idem, ibidem.
13
MUMFORD, Lewis. Vida doméstica urbana medieval. In MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 337-376.
14
ARGAN, Giulio Carlo. A cidade do renascimento. In ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: o renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 55-80.
15
BAETA, Rodrigo Espinha. A urbanística barroca. In BAETA, Rodrigo Espinha. O barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos 17 e 18. Salvador, Edufba, 2010, p. 213-232.
16
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988; HARVEY, David. O direito à cidade. Piauí, n. 82, São Paulo, 16 jul. 2013 <https://bit.ly/3wJk4M2>.
17
BEZERRA, Mariana Andrade; CUNHA JUNIOR, Moisés Ferreira. Cidades, espaços públicos e comportamento: discussões sobre o cenário urbano no contexto de pandemia global. Observatório das metrópoles, Rio de Janeiro, 11 jun. 2020 <https://bit.ly/3wNeWq4>.
18
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (op. cit.).
19
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 201.
20
TELLES,Vera da Silva. Direitos sociais: afinal, do que se trata? Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, p. 57.
21
ARENDT, Hannah. Los orígenes del totalitarismo. Madrid, Taurus, 1974, p. 565.
22
FIRMINO, Rodrigo. Território Viral. Lab404, Salvador, 13 out. 2020 <https://bit.ly/3FxU6OI>.
23
NATIVIDADE, Marcio dos Santos et al. Distanciamento social e vulnerabilidades no município de Salvador-Bahia. Ciência e saúde coletiva, v. 25, n. 9, Salvador, 1 jul. 2020, p. 3385-3392 <https://bit.ly/3nwcEIX>.
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra, Almedina, 2020 <https://bit.ly/3qPcFdf>.
25
ALENCAR, Eduardo Matos de. A vida nas favelas: Como três comunidades — em São Paulo, Rio e Recife — enfrentam a pandemia. Piauí, São Paulo, 23 abr. 2020 <https://bit.ly/3HBrdTG>.
26
Idem, ibidem.
27
Idem, ibidem.
28
LIMA, Juliana Domingos de; CHARLEAUX, João Paulo. Quais as medidas para a população de rua na pandemia: pessoas desabrigadas estão entre as mais vulneráveis à doença e às implicações econômicas da crise por ela causada. Nexo, São Paulo, 28 mar. 2020 <https://bit.ly/3kNXflC>.
29
ALENCAR, Eduardo Matos de. Op. cit.
30
BRITO, G. et al. Op. cit., 2020.
31
Idem, ibidem.
32
LIMA, Mariana. Denúncias de violência contra idosos crescem cinco vezes na pandemia. Observatório do terceiro setor, São Paulo, 2020 <https://bit.ly/3FtwsD6>.
33
BOGADO, Maria. Rua. In HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, p. 23-42.
34
SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit.
35
ARENDT, Hannah. As esferas pública e privada. In ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007, p. 31-83.
36
MELO, C. Como o coronavírus vai mudar nossas vidas: dez tendências para o mundo pós-pandemia. El País, Madrid, 13 abr. 2020 <https://bit.ly/3nxKAVF>.
37
Idem, ibidem.
38
pandemia e a cidade com Raquel Rolnik e Nabil Bonduki. YouTube, San Bruno, 25 abr. 2020 <https://bit.ly/3Fw91cq>.
39
PÉREZ-LANZAC, C. Richard Sennett: “O liberalismo enfraqueceu nossa rede de salvação”. El País, Madrid, 13 jun. 2020 <https://bit.ly/3Ct5kSV>.
40
Raquel Rolnik e Ana Fernandes: cidade, pandemia e conflitos sociais. Facebook: UC Livre Resiste. YouTube, San Bruno, 25 jun. 2020 <https://bit.ly/3nxwxj3>.
41
LEMOS, André; MARQUES, Daniel. Vigilância guiada por dados, privacidade e Covid-19. Lab404, Salvador, 11 mai. 2020 <https://bit.ly/3DC6i0e>.
42
KITCHIN, Rob. Using digital technologies to tackle the spread of the coronavirus: Panacea or folly? Programmable City Working Paper, n. 44, 2020.
43
LEMOS, André. Lavits_Covid19_#24: A Máscara da Covid-19 no Brasil. Lavits, s. l., 8 dez. 2020 <https://bit.ly/3HAATOn>.
44
LEMOS, André. Covid-19, liberdade e cidadão ideal! Lab404, Salvador, 31 ago. 2020 <https://bit.ly/3qUd2Dq>.
45
ARENDT, Hanna. Op. cit., 2007.
46
SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro, Record, 2018.
47
LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Insurgência, s. l., 10 mai. 2020 <https://bit.ly/3x3Qb9m>.
sobre as autoras
Rebeca Daltro Ferrari Bulhões. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Território Ambiente e Sociedade da Universidade Católica do Salvador. Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (2018).
Liana Viveiros. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Território, Ambiente e Sociedade da Universidade Católica do Salvador. Publicação: Direito à Cidade e Hegemonia: Caminhos para uma práxis urbana, Revista Vírus, jul. 2020.
Laila Nazem Mourad. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (2011). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Território, Ambiente e Sociedade da Universidade Católica do Salvador. Publicação: Gentrificação no Bairro 2 de Julho, em Salvador: modos, formas e conteúdos. Cadernos Metrópole, 2014.