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architexts ISSN 1809-6298


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português
Ao aprofundar-se no universo de Lina Bo Bardi, é possível descobrir influências que inspiraram partes de seu fazer arquitetônico. Uma delas foi Antônio Gramsci, citado inúmeras vezes pela própria em seus artigos e escritos pessoais.

english
By delving into Lina Bo Bardi's universe, it is possible to discover influences that inspired parts of her architectural work. One of them was Antônio Gramsci, cited numerous times by Lina in his articles and personal writings.

español
Al adentrarse en el universo de Lina Bo Bardi, es posible descubrir influencias que inspiraron partes de su obra arquitectónica. Uno de ellos fue Antônio Gramsci, citado numerosas veces por ella en sus artículos y escritos personales.


how to quote

FURTADO, Lívia Tinoco da Silva. Os traços de Gramsci na obra de Lina Bo Bardi. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 262.01, Vitruvius, mar. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.262/8431>.

Nascida na capital da Itália em 1914, Achillina Bo Bardi desembarcou no Rio de Janeiro no final de 1946. Ao chegar no Brasil, percebeu uma terra nova, sem as ruínas de uma Europa pós guerra, e um campo fértil para se fazer arquitetura moderna. Participou da cena cultural e arquitetônica de vários pontos do país, mas principalmente em São Paulo e Salvador. Foi na capital da Bahia que Lina deu uma aula sobre “Teoria e filosofia da arquitetura” na Universidade Federal da Bahia — UFBA, cujo manuscrito foi publicado em 2009, juntamente com outros textos de sua autoria. Esta aula foi “puro Antonio Gramsci traduzido para arquitetos” (1), descreve Silvana Rubino, professora do Departamento de História da Unicamp e conselheira do Iphan.

Não apenas neste manuscrito de aula, como em outros escritos seus, Lina Bo Bardi cita o filósofo Gramsci e termos por ele desenvolvidos como, por exemplo, o termo “nacional-popular”. Pode-se dizer que Lina traduziu o legado de Gramsci para cores, formas e volume (2). Além disso, o pesquisador e tradutor Carlos Nelson Coutinho, que conheceu Lina, confirma seu pioneirismo ao falar de Gramsci no Brasil. Ele afirma: “ela foi a segunda pessoa que me falou de Gramsci, depois do Paulo Farias. Para Dona Lina, como a chamávamos carinhosamente, a Bahia era uma real expressão do que Gramsci chamava de ‘nacional popular’” (3).

Lina participou da resistência ao fascismo, ainda na Itália, sendo membro do Partido Comunista Italiano (4). Torna-se natural, portanto, que tivesse interesse na obra de Gramsci, fundador deste partido. Foi na também na Itália, na região de Sardenha, em 1891, que nasceu o jornalista e filósofo Antonio Gramsci, preso pelo regime fascista em 1926. Durante seus anos como prisioneiro, ele escreveu os Cadernos do cárcere, onde ele disserta sobre, entre outros temas, a disputa pela hegemonia na sociedade moderna e a busca de um Estado de caráter nacional-social.

Para além de sua atuação técnica como arquiteta, Lina Bo Bardi transitou nas áreas da curadoria, do design e da crítica cultural; desenvolveu textos que expunham seus pensamentos sobre arte popular brasileira e reitera a diferença entre nacional e nacionalismo.

Por mais que em seus escritos Lina explicite algumas de suas fontes e influências, é necessário observar com maior pormenor suas construções para encontrar como Gramsci faz parte disso. Não apenas observar atenciosamente seu projeto já concretizado, mas também ter conhecimento de como e com que finalidade a arquiteta concebeu sua obra são caminhos necessários para perceber e apontar como Lina buscou imprimir em seus projetos a visão de mundo que ela e o filósofo conterrâneo compartilhavam.

Duas figuras históricas

O contexto em que Gramsci desenvolve suas teorias é um mundo mudado pela revolução industrial e que passava por diversas transformações sociais e culturais. Viveu simultaneamente a Primeira Guerra Mundial, a Revolução de Outubro, o Fascismo, a Crise de 1929, o Nazismo, o Stalinismo e o Americanismo (5).

Seguindo a concepção do materialismo histórico de Marx e rompendo com ela em alguns momentos, principalmente no que se refere ao economicismo próprio dos socialistas italianos na época, Gramsci defende que a história não é jogada ao acaso e descarta as teorias próximas da teologia como era a de Hegel. Para Gramsci os homens, como parte de uma classe, são capazes de mudar o rumo da história. “Gramsci vislumbra uma dimensão mais profunda na modernidade, o ‘indivíduo’ histórico-político não é o indivíduo ‘biológico’ mas o grupo social”. Em seus cadernos, são debatidas “as razões da derrota do movimento operário no Ocidente e as novas estratégias de lutas das classes subalternas para conquistar a hegemonia e criar um Estado de caráter nacional-popular” (6). Enquanto no Oriente o Estado era tudo e a sociedade civil era primitiva, no Ocidente havia entre Estado e sociedade civil uma relação apropriada, muito mais complexa que a enfrentada pelos bolcheviques (7).

Nesta complexidade da sociedade civil ocidental, a disputa hegemônica precede a disputa pela tomada de poder. As classes dominantes e subalternas precisam encontrar aliados para suas posições através da direção político-intelectual e do consenso (8). Os intelectuais possuem papel chave nesta disputa, na qual teriam a responsabilidade de trabalhar para elevar intelectualmente as camadas populares, ou seja, trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela (9). É digno de nota que esta parte do pensamento gramsciano encaixa-se perfeitamente aos planos de Lina em relação à escola de desenho técnico que haveria no Solar do Unhão, à necessidade vista por ela da criação do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand — Masp e ao Sesc Pompeia, aos quais retornarei em breve neste artigo.

É principalmente no âmbito da literatura italiana que Gramsci critica os intelectuais italianos da época, que não se propunham o problema de elaborar os sentimentos populares após tê-los revivido e deles se apropriado, resultando numa falta de concepção de mundo entre “escritores” e “povo”. Na Itália, os intelectuais estavam afastados do povo, ou seja, da “nação” e ligados a uma tradição de casta (10). Dessa forma, o nacional-popular só seria alcançado no plano cultural quando os intelectuais, os principais atuantes nessa hegemonia, sentissem e aprimorassem as necessidades e aspirações do povo, tornando as massas partícipes e sujeitos atuantes na ação histórica. Gramsci chama os intelectuais capazes de construir essa relação com o povo-nação de intelectuais orgânicos.

O pensamento de Gramsci influenciou também a produção cultural e arquitetura moderna italiana, especialmente entre os “protagonistas da fase de luta” contra o academicismo fascista (11). Todavia, Gramsci não publicou nenhum livro enquanto vivo, seus cadernos do cárcere e escrito pré-carcerários começaram a ser publicados dez anos após sua morte, cuja primeira edição se deu entre 1947 e 1971. Aqui percebemos como essas publicações ainda estavam frescas quando Lina entrou em contato com elas, exercendo, assim, um pioneirismo ao falar deste intelectual italiano no Brasil.

Assim como Lina Bo Bardi é uma fonte quase inesgotável de conteúdo devido a extensão de sua atuação na cultura, também o é Antonio Gramsci, cuja edição brasileira das Obras de Gramsci reúne cerca de cinco mil páginas de teoria e escritos pessoais. Nestas páginas, também são discorridas ideias sobre o folclore, que, segundo ele, havia sido estudado de forma pitoresca e seria preciso estudá-lo, ao contrário, como uma “concepção do mundo e da vida”, em grande medida implícita, de determinados estratos da sociedade, em contraposição às concepções de mundo oficiais(12), ou seja, como parte das concepções das classes subalternas, das massas. É justamente nesse sentido que Lina procede seu estudo sobre o folclore do Brasil, país que, para ela, possui um dos folclores mais ricos do mundo.

Gramsci ainda aborda a práxis e levanta a questão da teoria e prática, onde coloca-se o problema no sentido de construir, com base numa determinada prática, uma teoria que, coincidindo e identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente, eficiente em todos os seus elementos, isto é, elevando-a à máxima potência (13).

É a partir de percepções semelhantes e convergentes às de Gramsci que Lina Bo Bardi atua como arquiteta. Se apôs ao fascismo, fez parte do Partido Comunista Italiano — PCI (4) (que tem Gramsci como um de seus fundadores), participou da edição de revistas de arquitetura, principalmente tratando sobre a cultura italiana na reconstrução após a Segunda Guerra e a forma de morar do povo italiano, veio ao Brasil e tornou-se um intelectual orgânico ao fazer e discutir arquitetura moderna no país.

Uma de suas primeiras contribuições no cenário cultural e arquitetônico no país é a inauguração da revista Habitat, cujo foco era a cultura brasileira “erudita e popular, igualmente e sem hierarquia” (4), apresentando cerâmicas do Nordeste, fotos sobre arquitetura vernacular, favelas e a comemoração do carnaval nordestino. Para Lina a verdadeira cultura nacional era, e só poderia ser, nacional-popular, ou seja, intimamente ligada aos sentimentos e necessidades do povo.

Essa cultura e arquitetura vernacular que chamou a atenção de Lina era considerada tanto por ela quanto por Gramsci o tipo de cultura produtiva, nacional-popular, diretamente ligada ao povo (14). Lina chama esse tipo de arquitetura de pobre e primitiva em textos seus devido aos materiais e execução simples, muito diferente do meio intelectual italiano que Gramsci criticava pela expressão "humildes" — característica para compreender a atitude tradicional dos intelectuais italianos em face do povo — indicar uma relação de proteção paterna e divina, o sentimento "autossuficiente" de uma indiscutível superioridade, a relação como entre duas raças, uma considerada superior e outra inferior (15). Para Agnese Codebò, o que emerge da abordagem de Bardi do vernacular é seu uso das diferentes fontes, que tornam sua prática de arquitetura um esforço único na cena brasileira (14).

A arquiteta nunca escondeu que o objetivo de sua atuação era contribuir com a criação do caráter nacional-popular brasileiro e tampouco escondeu sua aversão à forma estigmatizada de fazer arquitetura. Sendo entrevistada por Gilberto Gil em 1990, Lina afirma: “pessoalmente, só fiz duas ou três casas para amigos, pessoas conhecidas. Se alguém que tem muito dinheiro me pede uma casa, eu não faço. Eu trabalho para o poder público, não acredito na iniciativa privada” (10). Ainda nessa entrevista, quando Gilberto a pergunta sobre os aspecto nacionalista de suas obras, Lina corrige: “O nacional popular é a identidade de um povo, de um país. [...] O nacionalismo é o caminho errado, político-reacionário. O pior que existe no mundo, cheio de empáfia e sem nenhum significado. O nacional traz implícito o povo com todas suas manifestações” (16).

Com o objetivo de trazer à tona o povo e suas manifestações, para pôr em prática as necessidades do popular brasileiro, Lina cria seus projetos arquitetônicos.

Lina Bo Bardi, Landscape, estudos iniciais galpões, 1977
Imagem divulgação [Acervo Instituto Bardi]

Museu de Arte de São Paulo

A cidade de São Paulo foi um terreno de intensa experimentação para a arquitetura moderna no Brasil. A demolição do Trianon, um centro político na avenida Paulista, abriu espaço para um conflito de concorrências do que deveria ser construído em seu lugar. Resultou-se que o Masp foi o projeto construído neste disputado terreno e tornou-se um dos edifícios mais queridos pelos brasileiros e talvez o principal cartão postal da avenida Paulista. Sobre a construção deste que é, e foi concebido para ser, um dos maiores museus de arte da América Latina, Lina Bo Bardi escreveu o texto “O novo Trianon”, onde expõe as dificuldades iniciais e um breve partido do projeto. Ter acesso às aspirações de Lina ao desenvolver o Masp é essencial para entender seu caráter popular, pois “o nacional-popular é ,sobretudo, uma orientação que se efetiva no processo de criação à medida que o artista procede a uma verdadeira unidade com as contradições sociais e humanas de seu próprio tempo e lugar” (17).

Quando o Trianon foi demolido, Lina passou em frente ao terreno vazio e concluiu que “aquele era o único lugar que o Museu de Arte de São Paulo podia ser construído; o único digno, pela projeção popular, de ser considerado ‘base’ do primeiro Museu de Arte da América Latina” (18). Após esse ocorrido, foi atrás dos agentes do poder público vigente na época, o prefeito Adhemar de Barros e o secretário de obras José Carlos de Figueiredo Ferraz, porém descobriu que a prefeitura já tinha planos para o lugar: seria construído um Museu-Fundação. Todavia, este plano não se concretizou e, em 1960, época que já estava na Bahia, Lina recebeu um telegrama a avisando que o seu museu no Trianon seria construído após o projeto anterior ter sido cancelado (19).

Na etapa inicial da construção do Masp, Lina teve um conflito de interesse com o prefeito, pois onde ela planejou um teatro popular, Adhemar queria um salão de baile e ambos não aceitavam mudanças (18). Lina estava decidida a criar um museu onde não houvesse o abismo colossal entre a cultura popular e a cultura erudita — o abismo repetidamente criticado por Gramsci entre os intelectuais e o povo — onde o folclore nacional tivesse seu espaço e as massas pudessem entrar em contato com a arte universal.

Lina diz que “o novo Trianon Museu é uma obra absolutamente nacional”, referindo-se aos materiais utilizados e ainda aponta sua sutil forma de “sabotar” o salão de baile, ao afirmar que ele foi construído “com a esperança de vir a ser transformado” (20). O acabamento do museu é simples, com o concreto e caiação à vista. Essa relação de materiais, tamanho e forma o podem colocar como uma arquitetura brutalista, onde há “uma preocupação com a expressão dos materiais em detrimento de superfícies bem acabadas. A ideia de beleza é associada à verdade construtiva. A edificação deve ser honesta, demonstrando seus materiais assim como a técnica construtiva adotada” (21).

A monumentalidade do Masp é explicada por Lina juntamente com o próprio conceito de monumental. Ela atenta para que aquilo que é monumental seja distinguido daquilo que é elefântico. Segundo a arquiteta, “o monumental não depende das ‘dimensões’ [...]. A construção nazifascista é elefântica e não monumental na sua empáfia inchada, não na sua lógica. O que eu quero chamar de monumental não é questão de tamanho ou ‘espalhafato’, é apenas um fato de coletividade, de consciência coletiva, o que alcança o coletivo, pode (e talvez deve) ser monumental” (22). O que Lina chama de coletivo não deve ser interpretado apenas como um local disponível para muitas pessoas, e sim, para a pluralidade de pessoas que formam o Brasil e os moradores de São Paulo, o povo com suas nuances e seus folclores.

O Masp foi inaugurado com a exposição Mão do Povo Brasileiro, onde foram expostos objetos populares neste mesmo espaço em que há obras do Renascimento ao Impressionismo (o maior museu de arte da América Latina, na época de sua inauguração). Para a pesquisadora Ana Belluzzo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, “a arte popular se tornou o agente principal para se pensar em práticas culturais ligadas à modernidade, quando isso se impôs para um país como o Brasil, de cultura e economia dependentes. Lina propunha como saída a ênfase na cultura autóctone, nas forças vitais do país” (23). O Museu de Arte de São Paulo foi projetado para abarcar a cultura nacional-popular ao mesmo tempo que traz o povo para contemplar aquilo que há de cultura erudita em seu acervo, para que em seu enorme vão e em seu interior as classes populares pudessem transitar, para que fosse possível um circo e um acervo de obras ocidentais num mesmo espaço.

O final de seu texto sobre a concepção do Masp talvez seja sua parte mais interessante, onde são expostas suas expectativas quanto ao futuro da obra e merece ser exposto na íntegra:

“Eu procurei, no Museu de Arte de São Paulo, retomar certas posições. Procurei (e espero que aconteça) recriar um ‘ambiente’ no Trianon. E gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e discutir, escutar música, ver fitas. Gostaria que crianças fossem brincar no sol da manhã e da tarde. E até retretas e o mau gosto de cada dia que, enfrentando ‘friamente’, pode ser também um conteúdo” (23).

Sesc Pompeia

A Fábrica de Tambores da Pompeia foi visitada por Lina pela primeira vez em 1976 (24), era um conjunto de galpões de concreto distribuídos racionalmente conforme os projetos ingleses do início da industrialização europeia em meados do século 19. A antiga fábrica era frequentada por famílias que andavam pelos pavilhões e, principalmente, por crianças brincando. Para projetar o Sesc Pompeia, Lina visitou com frequência o lugar a fim de “fixar essas cenas populares”.

Encantada com a elegante e precursora estrutura de concreto do local, Lina sentiu-se no dever de conservá-la e recuperá-la. Ela explica que sua ideia inicial para essa missão “foi a de ‘arquitetura pobre’, isto é, não no sentido de indigência mas no sentido artesanal” (24). Este termo é usado pela arquiteta mais de uma vez. Posteriormente Lina explica:

“Através de uma experiência popular cheguei àquilo que poderia chamar de Arquitetura Pobre. Insisto, não do ponto de vista ético. Acho que no Museu de Arte de São Paulo eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e pelos arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas” (25).

Ao falar sobre suas ideias para o Sesc Pompeia, Lina retoma sua experiência nacional-popular do Masp, onde ela “eliminou o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais”, ou seja quebrou a tradição de casta que Gramsci atribui aos intelectuais italianos e das nações ocidentais, e abraçou as soluções “diretas e despidas” que testemunhou na cultura popular do povo brasileiro. Ele repete o ato ao projetar a recuperação da fábrica de tambores, demonstrando, portanto, sua preocupação em ser um intelectual orgânico, capaz de elaborar e reviver os sentimentos populares.

O Sesc Pompeia tem a forte presença do vernacular, as cadeiras de madeira do Teatro da Pompeia não são estofadas, como uma forma de resgatar o teatro popular e o atributo teatro de distanciar e envolver, ao contrário das cadeiras estofadas criadas para os teatros das cortes e que, segundo Lina, “continuam até hoje no comfort da Sociedade de Consumo” (26). Os novos edifícios — uma torre de água, um complexo de quadras e outro de vestiários) de concreto armado erguidos próximos das estruturas existentes são privados de todos os detalhes sofisticados e marcados por gestos fortes: a conexão entre os dois blocos principais por meio de uma solução aérea devido a uma área não edificantes, que consiste em desordenadas passarelas de concreto e os furos nas paredes de concreto feitos para criar aberturas irregulares inspiradas nas cavernas pré-históricas (funcionalmente justificadas pelo requerimento de ventilação cruzada para as quadras de esportes) ao invés de recortar janelas convencionais ou instalar um sistema de ar condicionado, pelo qual Lina tinha “horror” (14). Esses dois blocos de concreto tiveram inspiração na “’arquitetura dos ‘fortes’ militares brasileiros, perdidos perto do mar, ou escondidos em todo o país, nas cidades, nas florestas, no desterro dos desertos e nos sertões” (27).

Em todos os textos de Lina Bo Bardi existe uma sombra de seu pensamento teórico e político. A frase “monumento não se refere somente a uma obra de arquitetura, mas também às ações coletivas de grandes arranques sociais” (28), escrita por Lina sobre a construção do Sesc Pompeia, coincide com a percepção gramsciana de que mesmo que a história molde um homem, ela é moldada pelo indivíduo coletivo, principalmente através da reação das classes subalternas (6).

Ainda explicando o partido do Sesc Pompeia, Lina comenta para quem ela dedica a construção — jovens das padarias, açougues, quitandas e em suma, o povo — e expõe sua opinião defensora da cultura brasileira, afirmando a importância do Povo Brasileiro (maiúsculas utilizadas pela arquiteta), enquanto nos países ocidentais considerados desenvolvidos a cultura é feita pela “classe média que procura angustiadamente uma saída em um mundo hipócrita e castrado cujas liberdades eles mesmos destruíram há séculos”(29).

Museu de Arte Moderna da Bahia

O Museu de Arte Moderna da Bahia parte da fascinação que Lina teve pelo Nordeste. Para ela, existiam três fatores que permitiriam que a Bahia se tornasse um centro nacional de cultura: a existência de uma universidade em expansão, sua classe estudantil e, sobretudo, o caráter profundamente popular da Bahia e de todo o Nordeste (30). Embora nenhuma parte de sua estrutura tenha sido inteiramente projetada por Lina — afinal este museu é, e sempre foi, sediado em prédios coloniais — a arquiteta teve papel fundamental em seu desenvolvimento e inauguração após ser transferido para o Solar do Unhão, onde deixou de ser o Museu de Arte da Bahia e tornou-se o Museu de Arte Moderna da Bahia.

Neste ponto, é preciso entrar com datas. O Museu de Arte da Bahia — Mamb é um dos primeiros do país, em 1960 foi inaugurado como Museu de Arte Moderna da Bahia sediado no Teatro Castro Alves, cuja direção foi assumida por Lina Bo Bardi. Em 1963 foi migrado para o Solar do Unhão, onde também foi inaugurado o Museu de Arte Popular da Bahia — MAP. Em 1964 o Mamb foi ocupado pela 6ª Região Militar (31).

No texto “Cinco anos entre os brancos", Lina retrata sua experiência neste projeto. Nele, ela também busca refletir sobre o que levou um país cujo futuro cultural parecia promissor a esse fim. A juventude da Universidade Federal da Bahia, bem como das demais universidades do país, passava por um período em que, embora confusamente, estava no caminho mais certo para tomada de consciência política e cultural (30); estava vindo à tona o Cinema Novo, que Lina testemunhou, e, em suma estava para acontecer um movimento intelectual e cultural partindo das bases, ou seja, das classes subalternas. A experiência no Nordeste deu a Lina a certeza de que a inércia conservadora do sul poderia ser superada, em campo cultural, pela “tensão” dos estudantes e pelo caráter fortemente popular do Nordeste (32). Dessa forma conclui-se que Lina, passando para os termos de Gramsci, acreditou que era possível que as classes populares (no momento subalterna) tomassem a hegemonia da classe dominante e privilegiada e tornarem-se dirigentes, pelo menos no campo cultural. Além disso, ao usar o termo “estágio de colonialismo cultural” (32), trata-se do que Gramsci define como uma nação que sofre a hegemonia cultural de outra (33).

Neste campo de batalha que é a sociedade civil ocidental, os diferentes grupos sociais lutam para conservar ou conquistar hegemonia (34), aqueles que exercem sua hegemonia são as classes dirigentes e aqueles que a sofrem são as classes subalternas. Ao falar sobre o Mamb e o contexto cultural da época de sua inauguração Lina adverte que havia o medo da classe dirigente:

“A situação se precipitava, o medo da classe dirigente aumentava dia a dia: ante a agressividade dos estudantes, ante a possível explosão da fronteiras da velha cultura acadêmica, cujo fantasma ameaçador era a Universidade de Brasília, ante a alfabetização em massa, praticada, com o sistema Paulo Freire principalmente por estudantes da UNE, ante a pressão de toda a estrutura do país chegado ao máximo de autodesenvolvimento nos limites da velha estrutura, que necessitava, para sobreviver, daquelas reformas que a classe privilegiada não queria conceder a preço nenhum” (35).

Dessa forma, aconteceu o golpe de 1964 e o movimento cultural emergente, vindo da cultura de base, sofreu um desmonte calamitoso e os planos para o Mamb foram por água abaixo.

Lina diz que o Mamb não foi museu no sentido tradicional, cujo objetivo é somente conservar um acervo, suas atividades foram dirigidas a criação de um movimento cultural. O programa do museu não era ambicioso, era apenas um caminho (36). Durante a estadia do Mamb no Teatro Castro Alves, Lina começou seu trabalho eliminando a “cultura estabelecida” da cidade, buscando apoio da Universidade e dos estudantes, abrindo o museu gratuitamente para o povo e procurando desenvolver ao máximo uma atividade didática. Nos subterrâneos funcionava uma escola de iniciação artística para crianças e na rampa de acesso foi instalado um auditório-cinema para aulas, projeções e debates. A Universidade e a Escola de Teatro contribuíam para as atividades do museu; seus jovens cineastas construíam com as próprias mãos seus cenários.

Reconstruir o Teatro Castro Alves como um teatro popular moderno chegou a ser uma ideia pensada por Lina, mas, durante o regime militar, a televisão e os jornais queriam reconstruí-lo aos velhos moldes, que foi o que ocorreu. Afinal, como é apontado por Gramsci são um meio de difusão e elaboração ideológica, e que, no caso, se sobrepôs ao plano que Lina tinha para o Castro Alves. Embora a reforma não tenha acontecido como desejado, por sua causa o museu migrou para o Solar do Unhão. Neste novo local, foi inaugurado também o Museu de Arte Popular e as Oficinas do Unhão, onde funcionaria também uma escola de desenho industrial, todavia estas atividades sequer chegaram a ser iniciadas, uma vez que seu projeto foi interrompido quando Castello Branco assumiu a presidência.

Percebe-se que inerente aos objetivos dos museus havia a tentativa do que Gramsci chama de elevação das massas. Dessa forma, as oficinas e escolas do museu buscariam trabalhar na criação de elites de intelectuais surgidos diretamente da massa e que permanecessem em contato com ela, desenvolvendo a cultura nacional-popular (37).

Últimas observações

Após investigar e expor lado a lado o pensamento gramsciano e trabalhos de Lina como arquiteta e curadora, em suma, como intelectual, conclui-se que sua atuação foi um fazer cuidadosamente pensado em conectar-se com o povo e desenvolver a cultura nacional-popular. Quando a arquiteta se recusa a se dedicar em casas particulares e dedica seus trabalhos à busca desse caráter nacional popular, ao fazer e pensar coletivo, Lina está exercendo seu papel como um intelectual orgânico, buscando unir a cultura erudita ocidental à sabedoria popular.

Para Gramsci, a elevação da consciência dos subalternos resulta do diálogo entre os “simples” e os intelectuais, elevação para a qual ambas as partes contribuem(38), a fim de fortalecer as classes populares na luta pela hegemonia. Este diálogo é uma busca constante na trajetória de Lina, demonstrada tanto na materialidade, muitas vezes simples, de suas obras e também em seus usos.

notas

1
JÚNIOR, Gonçalo. Arquiteta da mudança. Pesquisa Fapesp, São Paulo, ago. 2009, p. 162.

2
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Lina por escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi. Coleção Face Norte. Rio de Janeiro, Cosac Naify, 2009, p. 21.

3
COUTINHO, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo, Cortez, 2006, p. 148.

4
CARRANZA, Edite Galote. Casa Valéria Cirell e o nacional-popular. Pós V.21, São Paulo, jun. 2014, p. 122.

5
SEMERARO, Giovani. A filosofia da história “nacional-popular” nos cadernos de Antonio Gramsci. Revista HISTEDBR On-line, n. 54, Campinas, dez. 2013, p. 61.

6
Idem, ibidem, p. 60.

7
COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos: 1916-1935. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011, p. 22.

8
Idem, ibidem, p. 26.

9
Idem, ibidem, p. 142.

10
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere Volume 6: Literatura. Folclore. Gramática. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, p. 42.

11
ALENCAR, Mônica Maria Torres de. Gramsci e a perspectiva nacional-popular no âmbito da Cultura. O Social em Questão, ano 20, n. 39, set./dez. 2017, p. 185.

12
COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos: 1916-1935 (op. cit.), p. 150.

13
Idem, ibidem, p. 163.

14
CODEBÒ, Agnese. A arquiteta tecendo a cidade: a praxis de Lina Bo Bardi no SESC Pompeia. V!RUS, n. 14, São Carlos, 2017 <https://bit.ly/3wU1Olt>.

15
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere Volume 6: Literatura. Folclore. Gramática (op. cit.), p. 38.

16
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Op. cit., p. 169.

17
ALENCAR, Mônica Maria Torres de. Op. cit., p. 198.

18
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Op. cit., p. 122.

19
Idem, ibidem, p. 124.

20
Idem, ibidem, p. 125.

21
SANVITTO, Maria Luiza Adams. Brutalismo paulista: uma estética justificada por uma ética? Anais do 10º Seminário Docomomo Brasil. Arquitetura moderna e internacional: conexões brutalistas 1955-75, Curitiba, PUC PR, 15-18 out. 2013, p. 2.

22
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Op. cit., p. 126.

23
Idem, ibidem, p. 127.

24
Idem, ibidem, p. 147.

25
CARRANZA, Edite Galote. Op. cit., p. 126.

26
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Op. cit., p. 152.

27
Idem, ibidem, p. 153.

28
Idem, ibidem, p. 151.

29
Idem, ibidem, p. 154.

30
Idem, ibidem, p. 132.

31
Idem, ibidem, p. 136.

32
Idem, ibidem, p. 130.

33
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere Volume 6: Literatura. Folclore. Gramática (op. cit.), p. 42.

34
COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos: 1916-1935 (op. cit.), p. 25.

35
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Op. cit., p. 135.

36
Idem, ibidem, p. 131.

37
COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos: 1916-1935 (op. cit.), p. 142.

38
Idem, ibidem, p. 31.

sobre a autora

Lívia Tinoco é graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2018_).

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