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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Apresenta o processo de concepção do livro-concertina ‘Pensar paisagem’ relacionando a experiência sensível, fundamentada na fenomenologia, com a forma e o conteúdo do livro. Reflete sobre a educação para a paisagem a partir da estética e da ética.

english
It presents the creation process of the concertina book ‘The Thinking Landscape’ relating the sensitive experience with the book’s form and contente based on phenomenology. It brings reflections on landscape education concerning aesthetics and ethics.

español
Presenta la concepción del libro-concertina ‘Pensar paisaje’, relacionando la experiencia sensible con la forma y el contenido del libro, basado en la fenomenología. Reflecciona sobre la educación para el paisaje mediante la estética y la ética.


how to quote

DUARTE, Mirela Carina Rêgo; SANTOS, Luisa Acioli dos; FEITOSA JÚNIOR, Wilson de Barros; CARNEIRO, Ana Rita Sá. A concertina na educação para a paisagem. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 262.02, Vitruvius, mar. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.262/8433>.

Definir paisagem não é uma tarefa simples, devido às inúmeras abordagens possíveis. No senso comum, a paisagem é normalmente associada a uma vista bonita, a um panorama observado a partir de um mirante, ou à beleza das imagens de cartões-postais, acepções que nos interessam na medida em que o pensamento científico é a continuidade e o desenvolvimento de um tipo de sabedoria contida no senso comum, como afirma Rubem Alves (1). Por isso, encontramos no sentido de beleza, de contemplação e de deslumbre por trás da noção de paisagem do senso comum, a possibilidade de aprofundamento da compreensão desta noção na contemporaneidade.

Deparamo-nos constantemente, em nosso laboratório de pesquisa e em sala de aula junto aos estudantes da graduação em Arquitetura e Urbanismo ou da pós-graduação, com a necessidade de pensar paisagem para projetar paisagem (2), ou seja, compreender para intervir. Todos temos uma noção de paisagem nascida de nossas experiências cotidianas, mas instrumentalizar esse conhecimento torna-se um desafio diante da dificuldade ou impossibilidade de definir paisagem. Para Adriana Veríssimo Serrão (3), “paisagem é insusceptível de uma definição canônica”, pois se aproxima mais de uma ideia do que de um conceito empírico. Para Jean-Marc Besse (4), a paisagem é uma noção ligada a múltiplas definições, oriunda de diversos campos do conhecimento como a geografia, a história da arte, a arquitetura da paisagem e também a filosofia.

O campo da filosofia trabalha a paisagem como “categoria sintética, ponto de confluência de múltiplas perspectivas” (5), para a qual as diversas abordagens teóricas contribuem, no debate atual, indicando “uma nova consciência paisageira” como suporte para pensar o futuro. Portanto, mais pertinente que definir paisagem seria estimular a consciência de paisagem, o que levou o Laboratório da Paisagem da Universidade Federal de Pernambuco — UFPE a desenvolver o livro intitulado Pensar paisagem sob a coordenação das pesquisadoras Mirela Duarte e Luisa Acioli dos Santos. O livro tem forma de concertina, constituído por dobras sequenciais que abordam o assunto de maneira lúdica, envolvendo o leitor numa experiência de leitura que busca despertar a sensibilidade através de temas-chave do estudo de paisagem.

Apoiados numa perspectiva filosófica, mais especificamente do ponto de vista da fenomenologia, argumentamos que a noção de paisagem se constrói na relação entre as pessoas e os lugares de suas vivências, e vem de uma compreensão de mundo, ou seja, da experiência de vida dos seres humanos, individual e coletivamente, e que é passível de mudanças ao longo do tempo. Como diz Eric Dardel (6), em essência, a paisagem é “a inserção do homem no mundo”, algo que é geográfico, mas também histórico.

Hoje é possível afirmar que a paisagem está vinculada ao cotidiano das pessoas, e que também é tema que constitui um saber teórico e científico. Entretanto, Augustin Berque (7) destaca que, apesar disso, as ações mais recentes da humanidade revelam o quanto estamos afastados da paisagem, visto que destruímos muito mais do que protegemos. Trata-se de um problema que envolve a todos, mas que é uma provocação especialmente direcionada aos profissionais que projetam paisagem. Todos os dias, há pessoas que enfrentam o trânsito caótico para ir de casa ao trabalho, há os que se deparam com novos prédios cada vez mais altos, e os que lamentam a demolição de edificações antigas e a destruição de florestas. Há os que promovem essas ações, há os que protestam contra elas, os que são indiferentes e os que têm a responsabilidade de investigar essas ações e imaginar projetos capazes de mediar os interesses envolvidos. A vida de todas essas pessoas é atravessada por paisagem, mas é possível dizer que suas ações têm por base uma consciência de paisagem?

Estimular a consciência de paisagem requer incentivar o sentimento e o pensamento de paisagem na constituição do nosso ser a partir de nossas experiências diárias. Tendo em vista este objetivo, o livro-concertina propõe educar para a paisagem, abordando o pensamento filosófico e científico, mas também o sentimento e o entendimento do senso comum, apontando para a responsabilidade e comprometimento com a qualidade dessas paisagens que atravessam nossas vidas.

Apresentando a concertina para discutir a educação para a paisagem, o artigo, primeiramente, aborda a experiência sensível, relacionando a teoria com a escolha do formato em concertina. No segundo momento, destaca as relações entre teoria e aspectos do texto e das imagens. Finalmente, tendo em vista a função pedagógica da concertina, reflete sobre a educação que aponta para um sentido estético, na medida em que estimula a experiência sensível e o sentimento de paisagem, e, ao mesmo tempo, para um sentido ético, por estimular também o pensamento de paisagem no sentido da sua valorização e preservação.

A experiência sensível de paisagem e a concertina

O desafio de elaborar um livro capaz de despertar a consciência de paisagem buscou suporte nas ideias de Berque (8) que associa o termo “pensamiento paisajero” a dois significados distintos. De um lado, aponta a existência de um pensamento que tem a paisagem como objeto de estudo e investigação e que se expressa sobretudo através de palavras. De outro lado, indica a existência de um pensamento que é fruto de um modo de viver sensível, um pensamento de tipo “paisajero”, que se expressa através do gesto.

Ao fazer tal distinção, o autor chama atenção para civilizações antigas que viviam de maneira paisagística e que construíam paisagens admiráveis, sem nunca ter investido no debate teórico sobre o tema. Assim, compara a vida desses antepassados à condição atual da humanidade, questionando a insustentabilidade dos comportamentos, da maneira de pensar e agir sobre a terra. Sua argumentação leva à reflexão de que na contemporaneidade, embora o debate intelectual sobre a paisagem tenha florescido, a maior parte da humanidade vive apartada dela. Isto pode ser confirmado pelo estado de degradação em que se encontram inúmeras cidades, áreas rurais e até mesmo paisagens excepcionais que deveriam ser protegidas, como florestas e mares.

O caminho para alcançar o “pensamiento paisajero” parece estar na comunhão entre as duas acepções apontadas pelo autor. Envolve considerar os avanços do conhecimento científico, mas sobretudo incentivar a conexão das pessoas com a paisagem a partir de uma reflexão sobre a maneira de ser e estar no mundo. Partindo dessa interpretação, o livro propõe despertar a consciência de paisagem através do estímulo ao “pensamiento paisajero” que se expressa na experiência sensível de paisagem.

Tal experiência é fruto da inserção integrada do indivíduo no mundo, imerso nas relações com os lugares, as pessoas, suas memórias, a cultura e a natureza. Requer negar um estado de indiferença ou de dormência em relação às coisas para mergulhar num estado de estesia que provoque a ampliação da sensibilidade, e depende do movimento do corpo em que o indivíduo explora o mundo através dos sentidos fazendo do contato com o exterior uma espécie de abertura para voltar à reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo. Nesta experiência, unem-se sentimento e pensamento numa acepção Kantiana, para quem “o sentimento estético nasce da reflexão” que nada mais é do que um “modo de pensar que se debruça sobre as manifestações sensíveis” (9).

Segundo Michel Collot (10), a relação sensível com o mundo “não é a de um sujeito posto em frente a um objeto, mas a de um encontro e de uma interação permanente entre o dentro e o fora, o eu e o outro”. Seguindo esse viés, a paisagem se expressa para Berque (11) como um fenômeno relacional, fruto de um movimento contínuo, de uma “trajeção, entre o visível e o invisível, o subjetivo e o objetivo, o individual e o coletivo. A experiência sensível de paisagem ocorre, portanto, a partir do corpo em sua individualidade, mas se relaciona com o exterior, desenvolvendo laços com os lugares. Esses laços também passam a fazer parte da identidade individual, basta pensar em como o meio interfere na linguagem, na vestimenta, nos hábitos, para além de outros aspectos de ordem simbólica.

A espacialidade do corpo é o que nos conecta ao mundo também num sentido afetivo, como estabelece Besse (12). Para o autor, o corpo sensível “é o centro dos afetos, o centro e o receptáculo das espacialidades afetivas [...] [é] através do nosso próprio corpo que habitamos o mundo” (13). Reforçando o papel essencial do corpo, Michel Collot (14) afirma que “é o corpo que constitui o ponto de fixação da consciência com o mundo e o ponto de vista a partir do qual essa consciência se pode compreendê-lo”. Foi pensando neste corpo que se movimenta, se surpreende, e se descobre, que se optou por fazer um livro-objeto, explorando a experiência tátil de leitura como uma metáfora da experiência sensível de paisagem.

O livro-objeto propõe uma interação menos convencional, provocando o leitor a partir do conteúdo textual, das imagens e da diagramação, mas principalmente a partir da forma. Uma das inspirações foi o livro-objeto intitulado Dobra, de Philippe Wollney, que oscila entre o material e o imaterial ao dizer que “Um livro é feito fundamentalmente pela dobra” em sua realidade física, mas que “A dobra desvela realidades” mentais. O poeta se utiliza da metáfora da dobra para refletir sobre o papel do livro como um desencadeador de vivências, e nas suas palavras “A dobra cria uma sequência de espaço [...] Essa sequência de espaço cria também uma sequência de momentos” (15).

Fotos do livro-objeto Dobra, de Philippe Wollney
Imagem divulgação [Revista Continente]

As dobras de que fala o poeta são a essência do livro em concertina — se assemelhando ao instrumento musical acordeon — cujas dobras definem dois lados de um continuum que pode ser desdobrado, articulado e rearticulado, sem a clareza imediata do que seja o começo e o fim do livro — como numa Fita de Möbius. Tal forma estimula o tato, convidando o leitor a descobrir o livro de maneira lúdica, quase como um jogo ou um brinquedo.

Protótipo da concertina Pensar paisagem
Foto Laboratório da Paisagem, 2020

O espaço-tempo criado pela concertina se aproxima, assim, daquele relativo à experiência sensível de paisagem que, segundo Vladimir Bartalini (16), pode ser compreendido como um espaço “feito de dobras, sem referências, aberto e insubmisso a uma lógica de base cartesiana”. O leitor é então convidado a percorrer um movimento de desdobramentos, que tem como objetivo despertar para a paisagem a partir de uma experiência de leitura interativa que incorpora exercícios relacionados ao tema e uma dobra em aberto para ser preenchida com experiências do leitor.

Nas dobras da concertina

A experiência sensível de paisagem, metaforizada na forma do livro, é reforçada no seu conteúdo literário-imagético. Com dois lados e duas extremidades, a concertina, oferece duas possibilidades de entrada na experiência da leitura: De um lado as dobras exploram conteúdos que buscam estimular o sentimento de paisagem, na contemplação e na experiência da natureza, da cidade, dos lugares onde vivemos, mostrando que “entre (17) nós e os lugares de nossas vivências nascem paisagens, tecidas ao longo do tempo nos caminhos do nosso cotidiano, no espaço público que vivenciamos, e expressas no espírito do lugar” (18). De outro lado, as dobras exploram temas que buscam estimular o pensamento de paisagem e que são centrais nos estudos em diversas áreas do conhecimento, mostrando que “nascem paisagens quando nos apropriamos de um território e da natureza ou quando criamos um jardim e outras formas de arte. Paisagens que se valorizadas como bem comum são consideradas patrimônio” (19).

A escolha de tais temas não é fruto do acaso, reflete problemáticas abordadas em profundidade por especialistas. Ainda que contradições e repetições indiquem a complexidade dos temas, a unidade da concertina está expressa na valorização da experiência sensível que atravessa suas dobras.

O tema do cotidiano é uma dobra de entrada que procura despertar o olhar do leitor para o mundo à sua volta, aproximando a noção de paisagem das vivências diárias. Sutilmente, a narrativa introduz o debate sobre a experiência sensível a partir da exterioridade e da sensorialidade, exploradas sobretudo no tema caminho. Por sua vez, o tema espaço público se concentra no suporte físico necessário à experiência, dando ênfase ao papel da rua e da praça como lugar do encontro. Os ciclos que movimentam esta relação entre as pessoas e os lugares ao longo da história são abordados no texto tempo e a consequente memória coletiva que define a essência dos lugares é tratada no tema espírito do lugar. Por fim, o tema entre proporciona uma síntese que enfatiza a mediação e a relação como o cerne daquilo que entendemos por experiência sensível de paisagem.

Do outro lado da concertina, o tema da natureza é uma dobra de entrada, destacando sua grandiosidade enquanto vida que nos sustenta e enquanto tema essencial no desenvolvimento da noção de paisagem. O respeito à natureza é abordado no tema jardim, encorajando uma atitude jardineira frente ao mundo. As ligações materiais e imateriais construídas ao habitar o mundo são discutidas a partir da perspectiva do pertencimento no texto território. Pouco a pouco, a narrativa passeia entre natureza e cultura, chegando ao tema arte que trata a paisagem como representação de um sentimento de natureza. Para finalizar, o tema patrimônio destaca o senso de comprometimento e responsabilidade que deve orientar nossa ação diante daquilo que, para nós, tem valor paisagístico.

O conteúdo imagético é composto por fotomontagens que possibilitam apresentar a paisagem para além da realidade física captada pela visão. A fotomontagem, como uma imagem da experiência, evoca os sentidos e a memória, mostrando que paisagem é também a brisa que sentimos ou as lembranças do que vivemos enquanto sociedade. Segundo Fábio Cavalcanti (20), a utilização da fotomontagem como forma de comunicação possibilita um arranjo de associações e justaposições de imagens no qual tempo, espaço, coisas e pessoas podem ser recompostos “como uma colagem de paisagens guardadas do passado e vivenciadas no presente, especulando mais que revelando, num exercício de observar” (21).

Fotomontagem da paisagem do Recife
Foto Laboratório da Paisagem, 2020

Além de explorar sentidos, sentimentos e tempo, a fotomontagem oferece uma abertura da mente para arranjos imaginários. Mais que definir uma imagem, busca-se explorar o contraste, tanto enfatizando aquilo que ela não é, quanto acrescentando signos relacionados que fazem refletir sobre o que ela poderia ser. O uso intencional de elementos justapostos abre a interpretações, deixando a fotomontagem ligeiramente inacabada para que o leitor complemente atribuindo significados.

A utilização de signos facilmente reconhecíveis permite, por vezes, harmonizar as interpretações, ainda que o olhar de cada leitor particularize o entendimento da imagem. Na fotomontagem do tema território, a presença da cidade, do céu e do banco onde duas pessoas estão sentadas sugerem a experiência de fruição da paisagem. Mas o rasgo que atravessa a imagem horizontalmente aparece como um vazio ou um véu, dissimulando o que as pessoas estão de fato visualizando, pensando ou sentindo. A porta e a nuvem indicam a abertura de outro plano, para onde é possível escapar para uma outra experiência.

Aludindo à imaginação e ao devaneio, fotomontagens e textos simulam o que acontece em nossas experiências cotidianas enlaçando realidade, memória, desejo e fantasia, como vemos no trecho referente à imagem apresentada:

“Voltamos nosso olhar para a cidade e, tomados pelo sentimento de pertencimento, nos demos conta de sua singularidade. Cada rua rasga uma longa linha na palma da mão, cada cicatriz remete a uma aventura da infância e, assim, pudemos devanear nas sucessivas marcas de nossa própria história. Envolvidos nessa fantasia, nos tornamos gigantes. E, com a cabeça nas nuvens, avistamos mais uma porta. Entramos” (22).

A linguagem adotada, menos científica e mais literária, se dirige ao público geral e objetiva facilitar a compreensão de temas densos, colocando as palavras com a liberdade necessária para despertar a imaginação. Além disso, a escrita é conduzida por uma narrativa que se desdobra ao longo de um dia, apresentando a temporalidade própria da paisagem pois, como diz Rosario Assunto (23), “um espaço sem tempo nunca será paisagem”. Assim, o percurso entre dobras da concertina dura o tempo de rotação da Terra em torno de si, que é o tempo da natureza. Para Assunto:

“Há um tempo próprio da natureza — circular (sem começo nem fim, que move em uníssono todos dos elementos), inclusivo, que conserva as suas modificações e se altera com elas, um tempo, enfim, onde se gera a novidade do idêntico: nela o mesmo é sempre diferente e sempre novo” (24).

Num lado da concertina explora-se o dia, no outro, a noite. Na noite, o sonho surge como elemento que questiona a linearidade e a repetição uniforme do tempo, pois, sendo noite, é possível sonhar um sonho ensolarado. Com esta provocação, a narrativa estimula o leitor a seguir para a próxima dobra.

Um dos elementos que possibilita essa travessia entre dobras é a porta, que faz referência aos cruzamentos, aos deslocamentos e às mudanças de perspectiva necessárias para pensar paisagem. No ensaio A ponte e a porta, Georg Simmel (25) afirma que “a porta é feita de modo que por ela a vida se expande além dos limites do ser-para-si isolado, até a ilimitação de todas as orientações”. Trata-se de um convite à experiência, tanto na leitura quanto na vivência cotidiana do leitor, para quem a concertina pode ser um caderno de bordo que o acompanha nas suas experiências.

Educando para a paisagem

A educação para a paisagem pode se construir na experiência da realidade vivida, que é essencialmente dialética, como nos mostra Paulo Freire (26) numa abordagem fenomenológica da educação. Freire diz que a construção do conhecimento a partir da experiência é capaz de despertar a sensibilidade para o mundo ao redor, possibilitando uma nova interpretação da realidade à medida em que se aprende. Neste sentido, a educação se torna a base necessária na construção de uma consciência, para além de um conhecimento, pois, ao desenvolver um determinado olhar diante do mundo experienciado, é capaz de ressignificá-lo.

Educar para a paisagem consiste, portanto, no processo de despertar e desenvolver uma compreensão do mundo experienciado enquanto paisagem e de si mesmo enquanto sujeito mediador desta realidade, e, portanto, parte da paisagem. Numa perspectiva experiencial, a educação paisagística deve considerar necessariamente duas questões relevantes:

Compreender a paisagem em seu sentido estético, ou como “uma realidade estética que nós contemplamos vivendo nela” e cuja imersão é “acompanhada de um sentimento de familiaridade e de pertença” (27).

Produzir um desdobramento para o seu sentido ético, que preconiza “uma pedagogia e uma prática do habitar no respeito e na salvaguarda dos lugares da terra e do homem, atitudes responsáveis que prevalecem sobre o apreciar e o gostar” (28).

Nestes termos, a concertina funciona como dispositivo ou ferramenta que auxilia no processo de educação com a imbricação entre sua forma e seu conteúdo, enfatizando num lado, o sentido estético ao propor uma ampliação da sensibilidade, e, no outro lado, o sentido ético ao preparar para uma tomada de responsabilidade visando à proteção das paisagens. Em síntese, afirmamos que imersos na paisagem com sentimento de pertença, nos responsabilizamos pela qualidade da paisagem ou do mundo em que vivemos, também entendido como a natureza que nos sustenta. Esse movimento do sentido estético para o ético é tratado por Adriana Serrão (29) quando diz que “Ao apelar à dimensão vital da natureza, origem e base de toda a existência, a estética configura-se eticamente”.

O argumento é fortalecido por Arnold Berleant (30) ao expressar que a multi-sensorialidade na experiência sensível, do ponto de vista da estética, é “componente de uma tomada de consciência, conducente, por sua vez, a uma posição ética”. Essa ideia supera a compreensão de um sentir desintelectualizado, ou seja, de um sentir independente do pensar, substituindo-a pela compreensão de um sentir que desencadeia uma reflexão, isto é, do pensamento que vem junto com o sentimento, o que Berleant chama de “estética da seriedade”, que advém do comprometimento.

Nas palavras de Serrão (31), “a sensibilidade pode, pois, dar uma orientação a princípios éticos genéricos. Quer nos leve a proteger e a cuidar, quer nos impeça de destruir, aprofunda a consciência da nossa radicação na natureza e fortifica o comprometimento no nosso habitar”. Tal compreensão se aprende e se exercita nas práticas cotidianas, daí a função da educação paisagística.

Se a construção de uma consciência de paisagem parte do estímulo ao sentimento e ao pensamento de paisagem simultaneamente, as dobras da concertina são a representação dessa simultaneidade que ocorre na experiência do mundo real, onde somos parte integrante e constantemente responsáveis, como se víssemos o mundo sempre com a ajuda de espelhos que se desdobram.

Cena do filme As praias de Agnès (2008), recomendado pela concertina Pensar Paisagem
Imagem divulgação [Revista Interlúdio]

Finalmente, é possível afirmar que os sentidos estético e ético da paisagem fundamentam um conhecimento e uma consciência orientados a uma cidadania paisagística, na qual “grupos vivem em seu cadre de vie e mobilizam-no a partir dos vínculos entre suas apreciações, vivências e ligações afetivas com as paisagens cotidianas” (32). Portanto, uma educação que visa a apreensão e o compartilhamento de valores paisagísticos, será sempre um estímulo ao exercício dessa cidadania que exprime aspirações das coletividades engajadas na preservação da paisagem, e que se reconheçam no sentimento de paisagem.

Educar para a cidadania não é uma tarefa fácil, e neste sentido, elementos presentes na narrativa da concertina propõem um aprendizado lúdico que inspire as pessoas a apreenderem algo que é aparentemente novo ou estranho, mas na verdade fala sobre elas mesmas. Como dizia Rubem Alves:

“Quando a gente abre os olhos,
abrem-se as janelas do corpo,
e o mundo aparece refletido dentro da gente”.

Conclusão

A concertina Pensar paisagem busca ressignificar nossa própria experiência sensível do mundo mediada pelo corpo através de provocações que sensibilizam buscando educar para a paisagem.

Paulo Freire (33) afirma que, nós “mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos”. Em todas as nossas ações, temos nossa parcela de responsabilidade com os resultados alcançados, mas é preciso reconhecer que essas ações são realizadas a partir de nossa compreensão de mundo, e consequentemente de nossa relação com o mundo. Compreendê-lo como fruto de uma experiência sensível de paisagem abre uma fenda, uma possibilidade de intervir no mundo — projetar paisagem — respeitando a natureza, que é respeitar a vida, o futuro e a humanidade.

Desdobrando a concertina, nos deparamos com um todo que é mais que a soma das partes: desperta para uma experiência sensível, que é sempre plural, para a estética da paisagem, que renova o olhar para as paisagens cotidianas, e para a ética da paisagem, que proporciona uma reflexão sobre nosso papel enquanto agentes responsáveis pela construção e proteção dessas paisagens. Acredita-se que o comprometimento com a paisagem começa pela educação.

notas

NA — Agradecimentos à Companhia Editora de Pernambuco pela concessão de Apoio Cultural para edição, impressão e acabamento do livro-concertina Pensar paisagem.

1
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo, Edições Loyola, 2004.

2
Refere-se às ações de intervenção na paisagem para o uso das pessoas, podendo ter como fim, por exemplo, a sua conservação.

3
SERRÃO, Adriana Verríssimo. Filosofia da paisagem: estudos. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013, p. 12.

4
BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo, exercícios de paisagem. Rio de Janeiro, Eduerj, 2014, p. 11-66.

5
SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 33-34.

6
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo, Perspectiva, 2015, p. 32.

7
BERQUE, Augustin. El pensamiento paisajero. Madrid, Editoral Biblioteca Nueva, 2009.

8
Idem, ibidem.

9
SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 23.

10
COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2013, p. 26.

11
BERQUE, Augustin. Território e pessoa: a identidade humana. Desigualdades & Diversidade: Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, n. 6, Rio de Janeiro, jan./jun. 2010 <https://bit.ly/3JQuzD2>.

12
BESSE, Jean-Marc. Le paysage, espace sensible, espace public. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, and Practical Philosophy. Bucharest, v. 2, n. 2, 2010 <https://bit.ly/3iGQIaZ>.

13
Idem, ibidem, p. 269.

14
COLLOT, Michel. Op. cit., p. 37.

15
WOLLNEY, Philippe. Dobra. Goiana, Porta Aberta, 2018, p. 3; 14; 8-9.

16
BARTALINI, Vladimir. Outros olhares sobre a paisagem. In BARTALINI, Vladimir (org.). Paisagem textos 3. São Paulo, FAU USP, 2016, p. 7.

17
Cada palavra destacada corresponde a uma dobra do livro. Grifo dos autores.

18
DUARTE, Mirela; SANTOS, Luisa Acioli dos (org.). Pensar paisagem. Recife, Laboratório da Paisagem, 2020. Grifo dos autores.

19
Idem, ibidem. Grifo dos autores.

20
CAVALCANTI, Fábio. Terceira porta: paisagem como uma experiência de cidade. In VERAS, Lúcia [et al]. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo: Cidade-Paisagem. Recife/João Pessoa, CAU PE/Patmos, 2017 <https://bit.ly/3Dfh5OA>.

21
Idem, ibidem, p. 61.

22
DUARTE, Mirela; SANTOS, Luisa Acioli dos (org.). Op. cit.

23
ASSUNTO, Rosario. Apud SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 27.

24
Idem, ibidem, p. 27.

25
SIMMEL, Georg. A ponte e a porta. Revista de Ciências Sociais — Política & Trabalho, n. 12, 1996, p. 12 <https://bit.ly/3DikfRR>.

26
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 56ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 2018.

27
ASSUNTO, Rosario. Apud SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 148.

28
SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 155.

29
Op. cit., p. 152.

30
BERLEANT, Arnold. Apud SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 156.

31
SERRÃO, Adriana Verríssimo. Op. cit., p. 157.

32
BARBOSA, David Tavares. Cidadania paisagística. Revista de Geografia, Recife, v. 35, n. 1 (especial), 2018, p. 49 <https://bit.ly/3LfdJhi>.

33
FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 34.

sobre os autores

Mirela Carina Rêgo Duarte é arquiteta e urbanista (2011) e mestra em Desenvolvimento Urbano (2014) pela Universidade Federal de Pernambuco, onde leciona no curso de Arquitetura e Urbanismo. É também pesquisadora do Laboratório da Paisagem.

Luisa Acioli dos Santos é arquiteta e urbanista (2016) e mestra em Desenvolvimento Urbano (2019) pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do Laboratório da Paisagem.

Wilson de Barros Feitosa Júnior é arquiteto e urbanista (2017) e mestrando (2019_) pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Laboratório da Paisagem.

Ana Rita Sá Carneiro é doutora em Arquitetura pela Oxford Brookes University (1995), mestra em Desenvolvimento Urbano (1989) e arquiteta (1975) pela Universidade Federal de Pernambuco, onde leciona no curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano. Coordenadora do Laboratório da Paisagem.

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