Sobre a necessidade de um debate crítico
Pensar sobre espaços fúnebres não é tarefa simples, pois, certamente, compreende um campo multidisciplinar e polissêmico definido por um dos temas de maior complexidade para a humanidade: a morte. A dificuldade de se abordar essa questão é patente na sociedade de forma geral, o que faz ambientes como o cemitério serem predominantemente vistos a partir de uma atmosfera tétrica e negativa. Apesar de parecer longínqua, essa concepção tornou-se hegemônica apenas durante o século 19, em virtude das transformações sociais que levaram a uma mudança de paradigma na compreensão do tema (1). O século 20 e seu constante clima bélico contribuíram decididamente para o fortalecimento de uma percepção obscena da morte, alimentando um verdadeiro tabu sobre o assunto.
No que diz respeito à estruturação e reflexão projetual desse tipo de ambiente, diferentemente de muitos outros usos e programas arquitetônicos, os espaços fúnebres não costumam ser parte do repertório usual de arquitetos, paisagistas e urbanistas. Aqueles que porventura se dedicam a pensar sobre essa questão estão acostumados a conviver com adversidades e reações que podem ir do fascínio ao estranhamento. Desde o início do século 21, ainda que de forma incipiente, nota-se que esse cenário tem se transformado. A cada ano surgem estudos, pesquisas e debates acadêmicos que demonstram uma maior disposição em se discutir a morte e os assuntos relacionados. No que concerne à discussão dos espaços fúnebres cemiteriais, de forma bastante simplificada, é possível perceber que há dois principais caminhos sendo adotados.
Grande parte das pesquisas tem estudado os espaços fúnebres com foco em seu valor patrimonial e sua importância histórico-cultural, dedicando-se aos cemitérios que apresentam maior conexão com esses atributos, normalmente os mais antigos e emblemáticos. Desse modo, fomenta-se uma importante discussão das formas de manutenção, proteção e valorização dos cemitérios, incentivando a realização de trabalhos de mapeamento, catalogação, visitação turística ou similares (2). Como é de se esperar, esses estudos costumam estar ligados a linhas de pesquisa de áreas relacionadas ao levantamento histórico-cultural e à preservação de patrimônio.
Paralelamente, nota-se o surgimento de investigações e projetos que defendem um caminho de ingerência amparado pela intenção de promover uma maior utilização de espaços de cemitérios, especialmente aqueles que apresentam localização privilegiada nas cidades. Nesse caso, o principal argumento trazido é a existência de um potencial de uso de áreas que poderiam ser aproveitadas por meio da realização de reformas de reconfiguração ou de requalificação (3). Esses trabalhos, por sua vez, têm como base abordagens que, em comparação ao grupo anterior, apoiam medidas de maior intervenção e transformação, seguindo diretrizes mais propositivas.
Apresentadas as linhas de atuação mais marcantes, a distinção colocada serve como motivação para que a discussão desses espaços seja cada vez mais aprofundada, afastando-se de leituras superficiais que deixam de lado as dinâmicas, as conjunturas e a multiplicidade de questões relacionadas ao tema. Sem antagonizar ou achar meios-termos, pretende-se contribuir para a reflexão sem a pretensão de chegar a uma conclusão absoluta ou definitiva. Se num primeiro momento evidencia-se um contraste entre as abordagens apontadas, ao mesmo tempo é possível presumir traços de complementaridade entre múltiplas variáveis que estão envolvidas em seu desenvolvimento. Assim, destaca-se, o essencial é abrir campo para um diálogo que busque reposicionar esses espaços no debate relativo à sociedade e às cidades contemporâneas, colocando-os em maior evidência.
As colocações e reflexões trazidas são fruto de leituras, pesquisas, conversas e incursões etnográficas realizadas ao longo do período de desenvolvimento de dissertação de mestrado sobre essa temática no período de 2017 a 2019 (4).
Sobre o sentido do cemitério e dos espaços fúnebres
O que é o cemitério e qual é a sua finalidade?
Por mais que a resposta pareça evidente, uma explicação de dicionário pode restringir a compreensão e limitar maiores reflexões.
A morte é percebida de forma distinta de acordo com seu contexto histórico, cultural e social. Desse modo, os espaços fúnebres carregam atributos e características relacionadas a essas questões tanto em sua materialidade como em sua configuração. O cemitério, espaço fúnebre predominante no mundo ocidental, é fruto de uma concepção específica sobre a morte estabelecida ao longo dos últimos séculos. O próprio vocábulo cemitério, em sua origem, está associado a essa ideia. Os termos em grego, koumenterion, e no latim, coemeterium, eram usados para designar o lugar onde se dormia, assim como a palavra dormitório. Desse modo, a palavra cemitério carrega, em si, a noção de repouso do corpo, estando diretamente relacionada à percepção da morte como um sono eterno. Esse entendimento tem sido tão imperativo na determinação e conformação dos espaços cemiteriais que, de certa forma, acaba por assimilar sua própria definição. Ao observar de forma mais detalhada, nota-se que essa designação carrega sentidos que vão além do que se imagina à primeira vista. Somado a isso, a passagem do tempo trouxe e segue trazendo camadas de significados que se fazem presentes através da sucessão de releituras e transformações relacionadas ao tema.
Conceitualmente, um dos marcos dessas mudanças foi, como observou Jean Baudrillard, a ideia de que a imortalidade da alma se popularizou no mundo cristão (5). Para o autor, esse acontecimento foi uma novidade em relação a grande parte do período histórico anterior, reconhecido pela diferenciação da morte de acordo com a posição social e as origens étnica e racial. Essa transformação abriu espaço para uma compreensão na qual todos teriam, ao menos em teoria, o direito ao repouso do corpo (e da alma) após a morte. Com isso, foi necessário adaptar os cemitérios para que cada indivíduo passasse a ter, por suposto, um espaço de sepultamento.
No que diz respeito à localização dos cemitérios, também ocorreram modificações significativas, principalmente em relação a seu contexto. Durante boa parte do período medieval, não havia uma separação evidente entre o lugar dos vivos e o lugar dos mortos, como acontece atualmente. Os cemitérios se situavam nas dependências das igrejas e em seus arredores, no centro da cidade, no mesmo espaço onde havia atividades sociais cotidianas como feiras, exibições e espetáculos. Essa proximidade era entendida de modo habitual devido à predominância de uma concepção coletiva do destino fúnebre e da aceitação da morte como uma ordem da natureza que não pode ser alterada, a não ser pelo milagre (6).
Esse conceito prevaleceu até o final do século 18 e começo do 19, quando foi alterado por influência de preceitos sanitaristas. Nesse período, ganhou força um discurso defendendo que os cemitérios deveriam ser deslocados dos centros urbanos devido ao risco que representavam à saúde pública (7). O argumento de que era necessário o distanciamento desses espaços levou à construção de novos cemitérios para além dos limites das cidades. Esse movimento ocorreu de modo simultâneo à secularização da questão fúnebre, marcando a fundação dos chamados “cemitérios civis” (8). A partir de então, a proximidade e a convivência entre vivos e mortos foram interrompidas, reproduzindo as ideias de um período que estabeleceu a separação entre a morte e o cotidiano urbano.
No entanto, não tardou muito para que essa relação ganhasse novos elementos. A partir do crescimento demográfico sucedido ao longo do século 19, as cidades foram se expandindo e alcançando os cemitérios afastados. Ao mesmo tempo, a argumentação de que esses locais representavam um perigo à saúde pública se mostrou improcedente, ainda que a sensação de desconforto em relação aos mortos tenha se mantido. Os cemitérios passaram a ser incorporados à trama das cidades aproximando-se, novamente, do meio urbano. Esse processo ocorreu sem maiores reflexões acerca das relações cemitério-cidade e morte-sociedade. No novo contexto, os muros dos cemitérios, erguidos como proteção a furtos e entrada de animais, passaram também a representar a marcante separação entre vivos e mortos vigente na sociedade.
A partir dessa conjuntura, recentemente tem se tornado mais frequente a discussão sobre a utilização das áreas de cemitério, geralmente apoiada na ideia de otimização dos locais de sepultamento. No Brasil, esse movimento ganhou força no final do século 20, quando o enterro passou a concorrer com formas de destinação fúnebre capazes de propiciar um melhor desempenho no uso dos espaços. Com efeito, o desenvolvimento e a difusão de meios alternativos de tratamento do corpo são fundamentais, não apenas devido à demanda decorrente do crescimento populacional, mas também por seu papel na ampliação de escolhas e procedimentos de tanatopraxia. No entanto, é preciso estar atento para que esses processos não sejam utilizados como justificativa a interesses alheios, incentivando ações que tornam a presença dos mortos ou a própria permanência de espaços fúnebres um empecilho.
Nesse sentido, nota-se que muitos arquitetos, urbanistas e outros agentes dedicados a pensar a cidade acabam por aproximar os espaços de cemitério à ideia de vazio urbano. Esses locais são vistos, nessa perspectiva, como um espaço disponível e, portanto, devem ser aproveitados territorialmente para a implementação de melhorias urbanas como a ampliação de áreas de lazer, esporte e afins. Por mais bem-intencionadas que possam ser, essas abordagens acabam por reproduzir um discurso de valorização fundiária que, por meio da ideia de resolução de aspectos logísticos e funcionais, carrega uma visão reducionista da problemática fúnebre. Nesses casos, é comum que o espaço dos mortos seja setorizado e se torne secundário, reduzindo a importância de aspectos afetivos, simbólicos e memoriais. Com isso, acaba-se por reafirmar a noção da morte como algo depreciativo, contribuindo para seu isolamento e ocultação, assim como foi feito no início do século 19.
Por fim, ao refletir sobre o que é o espaço fúnebre, é fundamental ter em mente a complexidade que envolve discutir as questões relacionadas à morte em toda sua abrangência. Os cemitérios não devem ser entendidos apenas como lugares de acomodação dos mortos, mas como espaços onde a relação entre a vida e a morte ganha sentido, cumprindo um papel essencial na sua continuidade e nos seus desdobramentos. Portanto, é imprescindível compreender as características, qualidades e importância desses locais, destacando a essência do que representa, invariavelmente, um espaço fúnebre.
Sobre concepções, relações e vínculos
Vale ressaltar que, ao debater a temática da morte, aspectos de ordem cultural, filosófica e religiosa estão entre os tópicos de maior importância. Essas questões envolvem costumes, rituais e hábitos que carregam múltiplos pensamentos e entendimentos sobre o assunto. Por sua vez, essas práticas refletem uma profusão de relações e configurações que se revelam no espaço de diversos modos. Em termos históricos, há um movimento crescente no sentido de garantir maior abertura a práticas distintas, a opções pessoais e a percepções variadas sobre a morte.
É essencial refletir sobre a ideia de universalidade de modo a apontar diferenças entre o universal e o universalizante. Enquanto o universal reconhece o que há em comum sem restringir a pluralidade e a abrangência, o universalizante tende a limitar as variáveis através da predominância de uma ideia global (9). Para entender melhor como esses conceitos se relacionam à temática fúnebre, basta observar as questões relacionadas ao cadáver. Se a necessidade de definir um destino ao corpo é universal, a forma com que esse encaminhamento se dá pode ser múltipla e dinâmica, envolvendo tanto aspectos objetivos como subjetivos. Se por um lado essa opção demanda uma ação de cunho mais imediato e pontual, por outro, é preciso reforçar que a morte vai muito além do momento em que um indivíduo deixa a vida. Ou seja, ela não se limita a uma transição instantânea de um estado para outro, mas reflete um processo complexo, de tempo indeterminado e que carrega diversas facetas: morte biológica, morte social, morte íntima. Aprofundar-se nesse assunto é essencial para os estudos da morte e do morrer que são, fundamentalmente, permeados por questões relacionadas a simbolismos e representações.
Em Antropologia da imagem, Hans Belting dedicou-se a investigar o tema da morte, dos mortos e de sua representação na arte, indicando entendimentos comuns à sua percepção. O autor argumenta que “o morto será sempre um ausente e a morte uma ausência insuportável que os vivos tentam suprir de diversas maneiras” (10). Belting pontua que, ao se deparar com a morte, as relações entre os vivos e o ente querido perdido não cessam, mas sofrem uma transformação definitiva.
No que se refere a sua associação ao meio físico, essa transformação pode ser percebida pelo estabelecimento de uma dimensão afetiva com lugares significativos para a relação em vida, assim como em espaços definidos após a morte, a exemplo do local de sepultamento (11). Eles ganham valor por meio da criação de vínculos essenciais ao processo de luto e à continuidade da relação interpessoal alterada pelo evento da morte. Por isso, é fundamental definir um encaminhamento, seja ele determinado (como o enterro no cemitério em lote demarcado), disperso (o espargimento de cinzas em um jardim ou em um corpo d’água) ou simbólico (em caso de corpos desaparecidos).
O historiador Fernando Catroga (12) refere-se a esse processo como a “re-presentificação” do finado, sugerindo uma instância de compreensão que transita entre os conceitos de representação e de presentificação.
Desse modo, nota-se que os aspectos afetivos envolvidos na relação vivo-morto levam à instituição de uma dimensão simbólica com o espaço. Este, por sua vez, é compreendido pela linguagem e pela determinação de meios físicos que assumem papel semântico através de opções conceituais, construtivas e tipológicas. Adolf Loos exemplifica o valor dessa associação ao afirmar que, “se encontrarmos um monte na floresta amontoado com uma pá em forma de pirâmide, nos comportamos de forma solene e então algo nos diz: alguém está enterrado aqui, e isso é arquitetura” (13).
O estabelecimento desses marcos simbólicos está relacionado às formas de tratamento do corpo. Esses processos são determinantes para a configuração dos ambientes fúnebres, induzindo soluções espaciais de acordo com suas características. Atualmente, as opções de destinação dos cadáveres mais comuns são o enterro e a cremação, com predomínio acentuado do primeiro (14). A configuração dos cemitérios é decorrente dessa predileção, no entanto, novas formas de tratamento do corpo têm ampliado esse debate, principalmente aquelas baseadas no desenvolvimento tecnológico. Por serem embrionárias, sua aceitação e aplicabilidade precisam ser verificadas conforme as especificidades de cada meio social. Se parte delas for bem-sucedida, será possível ampliar o leque de alternativas existentes, permitindo que novas abordagens e conformações sejam pensadas junto aos espaços fúnebres.
Somado a isso, é importante reiterar que as percepções e os modos com que se estabelecem as relações entre vivos e mortos se alteram conforme o passar do tempo e o contexto. Fatores como as diretrizes de desenvolvimento urbano, a capacidade de deslocamento, a virtualização de relações e a globalização são capazes de afetar o comportamento e as condições encontradas. Portanto, não se pode deixar de considerar a influência que esses aspectos podem desempenhar junto à dinâmica dos espaços fúnebres, que devem passar por transformações nas próximas décadas.
Sobre abordagens e iniciativas
O historiador e crítico de arquitetura Ken Worpole considera que há um grande vácuo na análise e no pensamento arquitetônico no que diz respeito aos espaços fúnebres (15). Embora se note um aumento no número de pesquisas realizadas nas últimas décadas em comparação a períodos anteriores, o autor ressalta que é necessário organizar bases e diretrizes de pesquisa sobre o tema de modo a ampliar ainda mais seu alcance. Essa observação é reforçada pelo reconhecimento da importância de se debater fatores supracitados, como o crescimento populacional, as mudanças na dinâmica urbana, o surgimento de diferentes formas de tratamento do corpo e a abertura às diferentes percepções na relação vivos-mortos.
Por ora, algumas das pesquisas mais significativas têm sido elaboradas no DeathLAB, da Universidade de Columbia. O laboratório tem apresentado estudos e propostas experimentais que investigam como os espaços memoriais fúnebres poderiam se configurar a partir da transformação de práticas sociais e da adoção de tecnologias. Karla Rothstein, diretora do DeathLAB, acredita que a arquitetura e o design podem direcionar uma mudança sociocultural, incorporando novas práticas e provocando uma importante reflexão sobre a relação entre vida e morte (16).
Ainda no campo de investigação propositiva, alguns arquitetos e paisagistas têm idealizado cemitérios que partem de uma leitura cuidadosa sobre as noções de projeto, paisagem, percurso e processo, ensejando distintas formas de se pensar e se relacionar com a morte e com seus espaços (17). Para não ficar apenas em aspectos teóricos, é possível citar o Cemitério de Igualada, de Enric Miralles e Carme Pinós, o Cemitério de Courtrai, de Bernardo Secchi e Paola Viganò, e o Cemitério Villa Armea, de Ivano Amoretti e Marco Calvi.
No que se refere ao contexto brasileiro, há algumas iniciativas e estudos que podem ser apontados como propulsores para uma discussão dos espaços fúnebres de forma singular. Entre 2015 e 2016, a Prefeitura de São Paulo inaugurou um grupo de pesquisa chamado Programa Memória & Vida com o objetivo melhorar a qualidade dos serviços fúnebres. O programa buscou, entre outras questões, discutir a visão da morte como um tabu e a ressignificação dos espaços cemiteriais públicos. De forma mais expressiva, destaca-se a atuação do grupo junto ao Cemitério Consolação, onde foi promovida a realização de eventos variados, como projeção de filmes, encontro de ciclistas e conversas sobre memória e luto, além de estabelecer uma rotina regular de visitas guiadas para apreciação da história e do patrimônio artístico do local.
Ainda em São Paulo, outra iniciativa que busca repensar os usos do cemitério e pode servir como fomento ao debate do tema é a conformação do Memorial Parque das Cerejeiras. Devido à marcante presença de vegetação em seu terreno, o Parque das Cerejeiras foi pensado de modo a ampliar o acesso público a áreas verdes para os moradores das regiões do seu entorno. O seu projeto paisagístico foi concebido visando oferecer espaços de parquinho para crianças, bosque com animais, mirante e praças memoriais. Para gerar maior atratividade, o local também passou a oferecer programações culturais, como a realização de apresentações musicais, exposições de arte e cerimônias de celebração em ocasiões especiais, como o Dia de Finados.
Desse modo, nota-se que há campo para que seja discutido um reposicionamento da percepção dos espaços fúnebres no contexto brasileiro. Ao ampliar esse espaço de debate para que essas e outras iniciativas ganhem lugar, é possível vislumbrar uma mudança de abordagem na condução da questão fúnebre, abrindo novas perspectivas a esse respeito.
Em 2017, pensando na incumbência de administração dos cemitérios municipais, a Prefeitura do Município de São Paulo lançou um edital de concessão dos cemitérios públicos. Nele, o Município isentou-se de direcionar e participar ativamente da discussão de diretrizes conceituais para esses lugares, deixando a responsabilidade pela condução do assunto a cargo da iniciativa privada. De forma geral, o edital limitou-se a requisitar o cumprimento de aspectos de caráter funcional e logístico, pouco contribuindo para o desenvolvimento de questões como a relação com a morte e com seus espaços. Assim, ao menos por ora, a adoção de uma postura crítica e de incentivo a maiores discussões sobre o tema foi deixada de lado. Resta aguardar o direcionamento prático a ser instituído e avaliar qual seu impacto na conformação dos espaços fúnebres de São Paulo.
Sobre possibilidades
Além do fomento a iniciativas similares às mencionadas anteriormente, um caminho fundamental para se discutir sobre ações nos espaços fúnebres passa pelo próprio reconhecimento de costumes e atividades já estabelecidas nesses locais. Ao olhar atentamente para o dia a dia de alguns cemitérios, é possível encontrar aspectos que os aproximam a uma ambiência dinâmica do espaço, ampliando o repertório de interações presente nesses locais. Um exemplo marcante desse tipo de comportamento pode ser encontrado no Cemitério da Vila Formosa.
O Vila Formosa apresenta uma cotidianidade perceptível não apenas no que diz respeito às atividades fúnebres, mas também em relação a práticas reticentes que encontram no cemitério campo para sua realização (18) Além dos rituais e hábitos ligados à morte, os espaços do cemitério são utilizados para atividades não relacionadas à questão fúnebre, entre elas, praticar exercícios físicos, andar de bicicleta, recolher flores e frutos ou passear com animais de estimação.
Apesar de parecer inusitada a presença desses usos em um cemitério, ao observar de perto essa dinâmica, nota-se que as diversas formas de apropriação presentes no local seguem uma espécie de repartição nômade das áreas existentes. Muitos frequentadores do local realizam seu itinerário de acordo com a definição das áreas de sepultamento, estabelecendo um fluxo de uso dos espaços do cemitério. Isso é possível devido à grande dimensão e à alta rotatividade de utilização das áreas do Vila Formosa (19). Os sepultamentos são distribuídos em setores que variam ao longo tempo, assim, quem frequenta o cemitério para participar de um enterro ou visitar um ente querido falecido convive com aqueles que usam os espaços para atividades não relacionadas à questão fúnebre. Com isso, estabelece-se uma espécie de mutualidade consciente no uso das áreas do local, abrigando concomitantemente uma variedade de atividades.
Nesse caso, é importante destacar que parte da motivação para a existência dessa dinâmica tem origem na carência de praças, parques e equipamentos de lazer e cultura disponíveis à população da região. Devido à associação de áreas verdes ao lazer e à recreação, a boa presença de vegetação do cemitério contribui para que sejam estabelecidas formas mais abrangentes de relação com o local. O Vila Formosa configura-se, então, como um espaço atraente e mais acessível à população do entorno, levando alguns moradores à percepção de que “o cemitério é como o quintal que eles não têm em casa” (20).
Visto que os espaços fúnebres são predominantemente vistos de modo tétrico e monofuncional, a dinâmica presente no Vila Formosa convida a uma reflexão sobre possíveis meios de interação e percepção junto a esses ambientes, tornando-se peça importante na discussão das mediações entre cidade, pessoas e espaços fúnebres. O cemitério consegue se desprender tanto da noção de um objeto estático e imutável, como da condição de um terreno urbano desprovido de qualidades. Nessa perspectiva, o termo cemitério-parque, normalmente utilizado para descrever um espaço fúnebre cemiterial com boa presença de vegetação, ganha um novo sentido, refletindo não apenas aspectos de sua aparência, mas também a percepção e a utilização desses locais.
Como o estudo e a observação do Cemitério da Vila Formosa ajudam a mostrar, as possibilidades de se imaginar uma transformação dos espaços fúnebres podem estar no próprio reconhecimento das condições e interações existentes. As práticas de projeto arquitetônico, paisagístico e urbano podem assimilar esses atributos, contribuindo de forma fundamental para o debate e a reflexão sobre a temática. Para tal, reforça-se, é preciso ir além de uma visão que preconiza apenas a resolução de funcionalidades e a definição de linguagens, estabelecendo uma discussão crítica e abrangente dos espaços fúnebres.
A partir dessa abordagem, é fundamental destacar a importância de se pensar sobre as formas de relação estabelecidas com a morte do ponto de vista de sua cotidianidade. Muitas vezes, espera-se sua superação como condição para o convívio, quando, na prática, o que se tem observado é que o convívio com esse tema é o que incentiva sua aceitação e beneficia o processo de luto. Em vistas disso, é possível retomar o histórico de transformação na percepção desses locais para reforçar que a posição do espaço fúnebre está diretamente atrelada à percepção social vigente. A abertura ao debate e à investigação permite imaginar um cenário no qual a transformação na relação entre os vivos e os mortos é capaz de alterar a própria conjuntura desses ambientes. Nessa perspectiva, a definição da configuração dos espaços fúnebres nas cidades deve ser capaz de oferecer amparo às relações entre vivos e mortos, assim como deve buscar respostas à problemática espacial e urbana a partir de um olhar atento à sociedade contemporânea e sua constante transformação.
Por fim, vale sublinhar que o desafio colocado deve necessariamente encontrar caminhos que permitam abrigar diferentes percepções da morte de modo a ressaltar a importância de processos essenciais à natureza humana, como a noção de finitude, a memória e o luto. Portanto, reitera-se, da forma mais clara possível, que a morte deve ser protagonista dos espaços fúnebres. Essa é a condição que os diferencia, aproximando-os à ideia de heterotopia (21). É o que os torna reconhecíveis.
notas
1
O trabalho do historiador Philippe Ariès é uma das grandes referências para estudos do tema da morte. O autor defende que a modernidade passou a buscar distância das emoções ocasionadas pela morte, enxergando-a com um problema na busca por um ideal de felicidade. ARIÈS, Philippe. Sobre a história da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa, Teorema, 2010 e ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. São Paulo, Editora Unesp, 2014.
2
A Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais — ABEC passou a realizar encontros nacionais desde 2004 com o intuito de difundir estudos, pesquisas e debates sobre a temática fúnebre, tornando-se referência sobre o assunto.
3
Exemplo marcante é a exposição Jardins do Tempo, idealizada pelo artista visual Pazé e exibida no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, entre agosto e outubro de 2019. Cf. LORES, Raul Juste. Artista plástico propõe que cemitérios se tornem jardins botânicos. Veja São Paulo, São Paulo, 23 ago 2019 <https://bit.ly/3DnTwDe>.
4
FUCHS, Felipe. Espaços de cemitério e a cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2019.
5
Para Baudrillard, é com o passar dos tempos que a ideia de imortalidade da alma passa de privilégio de alguns a direito virtual de todos, podendo ser entendida como uma espécie de conquista social. O autor aponta que a imortalidade da alma permaneceu, por muito tempo, no interior de uma certa casta social, demarcando as relações entre morte e poder. “Os missionários terão algum dia acreditado na alma imortal dos indígenas? A mulher tinha de fato alma no cristianismo ‘clássico’? E os loucos, as crianças, os criminosos?”. BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo, Edições Loyola, 1996, p. 176.
6
ARIÈS, Philippe. Sobre a história da Morte no Ocidente desde a Idade Média (op. cit.).
7
Os médicos da época defendiam a chamada doutrina dos miasmas, no qual a matéria orgânica em decomposição, especialmente de origem animal, sob a influência de elementos atmosféricos como temperatura, umidade e direção dos ventos, formava vapores ou miasmas nocivos à saúde.
8
SIMÕES FERREIRA, José Manuel. Arquitectura para a morte: a questão cemiterial e seus reflexos na teoria da arquitectura. Tese de doutorado. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2005.
9
FUCHS, Felipe. Op. cit.
10
BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Lisboa, KKYM, 2014, p. 182.
11
Em alguns casos, decide-se por uma aproximação entre ambas acepções, definindo um lugar significativo para a pessoa em vida como local de destinação do corpo (ou da matéria transformada).
12
CATROGA, Fernando. O culto dos mortos como uma poética da ausência. ArtCultura, v. 12, n. 20, Uberlândia, jan./jun. 2010, p. 167.
13
LOOS, Adolf [1910]. Architektur. In MÜNZ, Ludwig; KÜNSTLER, Gustave. Adolf Loos: Pioneer of Modern Architecture. Nova York, Praeger, 1966, p. 192.
14
Não há estatísticas oficiais dos percentuais praticados para cada um dos procedimentos no Brasil, mas a escolha pela cremação vem crescendo a cada ano, conforme MOTTA, Bruna. E às cinzas voltarás: cremação deixa de ser tabu. Veja, São Paulo, 28 jun. 2019 <https://bit.ly/3qLLUWi> e VIGGIANO, Giuliana. Por que a forma de lidarmos com os mortos ficou insustentável. Galileu, São Paulo, 22 jan. 2020 <http://glo.bo/3iN6zF2>.
15
WORPOLE, Ken. Last landscapes: the architecture of the cemetery in the West. Londres, Reaktion Books, 2003.
16
ROTHSTEIN, Karla Maria. Propostas alternativas para cemitérios urbanos enquanto santuários e espaços de memória na contemporaneidade. Revista M., v. 1, n. 1, jan./jun. 2016, p. 107-127 <https://bit.ly/3iJmEvk>.
17
FUCHS, Felipe. Op. cit., p. 164-168.
18
Em meados de 2020, a partir da eclosão da pandemia de coronavírus, muitos cemitérios passaram a figurar nos noticiários devido ao grande número de mortos pela Covid-19 no Brasil. Por ser o maior cemitério de São Paulo, o Vila Formosa foi um dos locais que teve sua rotina radicalmente alterada, sendo necessário pontuar uma reflexão a esse respeito de acordo com seu contexto referencial.
19
O Cemitério da Vila Formosa adota o sistema de quadra geral, no qual são estabelecidos a exumação e o reuso do local de sepultamento após três anos de permissão de uso.
20
Cf. FUCHS, Felipe. Op. cit., p. 193.
21
A heterotopia é um conceito bastante amplo e complexo, tendo sido introduzida por Foucault pela primeira vez em 1966, no livro As palavras e as coisas. Posteriormente, em 1967, ela foi apresentada em uma conferência destinada a arquitetos, a partir do texto intitulado Os outros espaços. Uma das formas de entender esse conceito é através da compreensão de que os espaços podem se relacionar a outros espaços e compor diferentes temporalidades, transformando as relações, sensações e percepções a seu respeito. Desse modo, a heterotopia pode ser entendida como uma instância em que as possibilidades semânticas se abrem à imaginação, permitindo variados tipos de entendimento e apreensão espacial.
sobre o autor
Felipe Fuchs é arquiteto e urbanista pela Universidade de São Paulo (2012) e mestre pela mesma instituição (2019). Possui experiência na área de projeto de edificações, desenho urbano e espaços livres.