Em agosto de 2016, a artista plástica Laura Vinci propôs ao coletivo de artistas da Mundana Companhia, com quem trabalhava em criações teatrais desde 2008, a criação de uma obra experimental que investigasse as potencialidades estéticas contidas no poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, em correlação com dois capítulos de obras literárias: um de A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, e “O delírio”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O coletivo, composto por atores, iluminadores, figurinistas, cenógrafos e músicos, trabalhou de forma horizontal; não houve qualquer hierarquia com relação a cargos durante a criação, assim como não houve submissão ao texto ou a qualquer outro elemento do processo criativo. A proposta era realizar um processo de criação com uma primeira fase de imersão na leitura, seguida de experimentos práticos disparados pelas provocações dos textos, e uma segunda fase para criar mais objetivamente algo a ser mostrado ao público. Apesar da total abertura em relação à metodologia e aos objetivos do trabalho, já havia, desde o princípio, a intenção de encontrar uma alternativa às práticas teatrais que subordinam todos os elementos cênicos ao texto. As diferentes áreas trabalhariam juntas de forma a suspender a oposição entre narrativa e arte visual, ação ao vivo com atores e instalação em movimento, possibilitando uma dramaturgia visual em que o teatro, as artes plásticas e os textos literários se combinassem no interior de uma máquina de ver mundos.
O presente artigo aproxima o processo de criação de Máquinas do mundo à experiência pedagógica. Busca-se compreender os pontos de encontro entre tais práticas e o modo como os dispositivos da arte podem contribuir para a formação do indivíduo. Para isso se analisa a metodologia de trabalho e alguns acontecimentos significativos do processo de criação à luz dos conceitos desenvolvidos pelo antropólogo Tim Ingold no artigo “O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção” (1) e em alguns de seus livros. Ingold compreende a antropologia como forma de educação e aborda, entre outras questões, experiências de encontro com o outro, com a matéria ou com o espaço, que se dão como ricas práticas pedagógicas. O autor considera que o ensino deve expor o indivíduo ao mundo e demandar sua inteira atenção em situações nas quais vive experiências alheias ao que lhe é comum. Com a intenção de escapar da concepção de educação como transmissão de conhecimento, no caminho do aluno da ignorância ao intelecto, Tim Ingold compreende o ensino como uma experiência de devir humano, de contínua produção de começos.
O processo criativo de Máquinas do mundo é abordado de forma a identificar experiências do corpo no espaço nas quais há coevolução sujeito-ambiente e produção de subjetividade. A análise que se desenvolve foca em alguns acontecimentos que se deram ao longo dos encontros de experiência prática; são acontecimentos pontuais e merecem ser sublinhados por seu potencial de análise. Peter Pál Pelbart define os acontecimentos como uma maneira de criar novos mundos para quem os atravessa. “Importam precisamente os acontecimentos, o advir, através do qual se passa a um plano de existência diverso em função de uma mudança de perspectiva. Pois o acontecimento consiste precisamente nisto: uma mudança de perspectiva, de plano de existência” (2). Encaram-se os acontecimentos como formas de instaurar existências e desenvolver os mecanismos de percepção do corpo no espaço, na busca por expandir conceitualmente a experiência de criação encontrando seus pontos de encontro com a experiência pedagógica.
A criação de Máquinas do mundo apresenta alguns momentos distintos, sendo os principais o de pesquisa e o de ensaio da peça. O foco aqui será o momento de pesquisa, período mais rico e fértil de ideias, imagens e experiências, no qual se criou uma metodologia para investigação dos textos através de experiências práticas. Nesse momento, a finalidade não era encontrar meios para montar uma peça, mas sim abrir o maior número de caminhos de materialidade, corporeidade e espacialidade por onde posteriormente seguir.
Inicialmente o coletivo debruçou-se sobre os textos, em um momento de leitura individual e digestão daquela enxurrada de literatura, para posteriormente se reunir e discutir as análises de cada um, conduzidas pelo músico e professor José Miguel Wisnik. Os textos selecionados abordam situações de delírio e encontro com o real. Cada autor à sua maneira, segundo seu estilo literário e seu período histórico, descreve uma visão que revela algo como a origem dos séculos, a total explicação da vida ou os séculos e séculos do mundo sobrepostos em um ponto. A análise buscou compreender as imagens produzidas pela descrição dessas visões que, uma vez apropriadas pelo coletivo, seriam deslocadas de seus contextos originais para se traduzir livremente em espaços, matérias, luzes e corpos. Foram quatro dias de encontros para discussão dos textos, durante os quais se levantou um material bruto composto de ideias, imagens, palavras soltas ou conceitos marcantes para cada um, a partir das conversas com Wisnik. Esse levantamento foi organizado em listas de palavras, divididas em função de seis temas principais. Devido à grande diferença de estilo e linguagem entre os três textos analisados, os denominadores comuns entre os temas foram, principalmente, as questões filosóficas e imagéticas tratadas.
Com os seis temas organizados, a equipe se dividiu em seis grupos multidisciplinares de três pessoas e cada grupo ficou responsável por realizar uma proposta para um dos seis dias de experimento prático, sendo cada dia inspirado pelas palavras da lista formada a partir da análise de textos. A proposta era que todas as áreas de criação (cenário, figurino, luz, atores e texto) tivessem pesos iguais durante a pesquisa, não havendo nenhum tipo de hierarquia, configurando-se uma criação sem a figura de um(a) diretor(a). Cada dia de experiência era proposto por três integrantes do grupo e tinha abordagens e direcionamentos claros em relação às ações e à construção de imagens. A principal demanda era viver as experiências propostas em estado de presença e atenção para que possíveis intervenções, de qualquer integrante, fizessem sentido naquele plano de imanência estabelecido na sala de ensaio. Os acontecimentos apontados a seguir ocorreram ao longo dos dias de experiência prática e não estão apresentados segundo lógica temporal, mas sim de acordo com os conceitos que os iluminam.
Dédalo e labirinto
Tim Ingold traz a metáfora do dédalo e do labirinto para tratar de tipos de experiências pedagógicas. Ele não defende um método de trabalho, mas relata características de dois tipos opostos de experiência que levam a formas de aprendizado distintas. Ao abordar tais metáforas, refere-se sempre à experiência do caminhar, seja nas ruas da cidade, em uma floresta ou em um labirinto. O autor identifica duas formas distintas de caminhar, comparáveis uma ao percurso em um labirinto e outra em um dédalo. Aqui a metáfora apresentada por Tim Ingold como um olhar para a experiência pedagógica será deslocada para a experiência da criação coletiva. Tal deslocamento se dá pois algumas características principais da experiência labiríntica se assemelham muito aos acontecimentos da experiência prática de criação; desse modo, buscam-se conceitos relacionados à prática pedagógica para compreender melhor as transformações subjetivas ocorridas entre corpo e espaço durante a experiência de criação. Porém, algumas diferenças estruturais devem ser ressaltadas em tal deslocamento. A principal se refere ao espaço. Tanto no dédalo quanto no labirinto, Ingold trata sempre de um espaço múltiplo em caminhos, no qual a caminhada leva de um lugar a outro. É possível dizer que ambas as experiências se dão em áreas externas. Ao deslocar esses conceitos para a sala de ensaio é necessário encontrar outras formas, menos literais, de observar as possibilidades de caminhos e escolhas. Trata-se de uma comparação mais sutil e subjetiva, que se baseia tanto na formação estrutural do coletivo, em sua metodologia de trabalho, quanto nos pequenos indícios de que as situações criadas podem se assemelhar a um ou outro tipo de experiência, dessa forma levando a certas maneiras de apreensão do real e produção de subjetividade. Apresentam-se aqui as principais características dos dois tipos de experiências colocados por Ingold, para posteriormente se traçarem alguns paralelos com o processo de criação de Máquinas do mundo.
A principal diferença entre o dédalo e o labirinto é que no primeiro o indivíduo faz escolhas antes de seguir por um ou outro caminho; sendo assim, quando percorre o caminho escolhido, tem um objetivo, uma finalidade. As ações no dédalo são intencionais, há um pensamento por trás de toda a ação, não apenas um movimento de se deixar levar. “No dédalo, a intenção é a causa, e a ação, o efeito” (3). Sendo assim, uma vez feita sua escolha, o caminhante do dédalo não precisa atentar ao ambiente ou caminho à sua volta; ele o percorre com o objetivo de chegar ao fim. No labirinto acontece a situação oposta: o caminho é dado ao caminhante, seja pelo tipo de construção do espaço, seja pelo tipo de experiência que se realiza (Ingold traz exemplos como seguir os passos de um animal na floresta ou deslocar-se por um caminho previamente traçado). Quem percorre o caminho não precisa fazer escolhas, seu único objetivo é seguir em frente. Porém, seguir o caminho é uma prática de atenção: quem o faz deve se colocar em estado de presença total, aceitando o encontro com o real. Sendo assim, a experiência do dédalo é mais mental, enquanto a do labirinto é mais corporal (demanda a atenção de todos os sentidos).
Já neste ponto é possível relacionar o momento experimental de pesquisa prática de Máquinas do mundo com a experiência do labirinto. A forma como o grupo se organizou e como os dias de experiência foram propostos se mostra estruturalmente comparável com o labirinto. Para cada encontro havia um tema e uma lista de palavras chaves que deveriam guiar a escolha da materialidade, as ações e os direcionamentos da experiência, de forma que fossem exploradas diversas possibilidades a partir do tema proposto. O grupo de proponentes, formado por integrantes do coletivo, escrevia um roteiro para o dia, determinando ações e diretrizes para luz, som, figurino, cenário e atores. O labirinto portanto estava dado. No começo do dia o roteiro era repassado com toda a equipe, ficando claro o que cada um deveria fazer e qual a sequência dos acontecimentos. Porém, como no labirinto, todo acontecimento exigia plena atenção de todos os sentidos: o corpo era chamado a viver aquela experiência com presença para que o caminho dado fosse seguido e também para que se pudesse apreender daqueles momentos de abertura todas as possibilidades que estavam sendo colocadas em jogo.
No processo, exigia-se a total presença de cada membro do coletivo, pois, a partir disso, cada um tinha a liberdade de intervir em uma ação, alterar uma luz ou transformar radicalmente o clima musical proposto. As iluminadoras, por exemplo, poderiam interferir diretamente na concepção sonora propondo o uso de um equipamento de luz que emite estalos regulares à medida que as lâmpadas se acendem e se apagam, afetando assim o ritmo do som e do deslocamento no espaço. Da mesma forma, a cenografia poderia propor espacialidades que se tornavam elementos condutores da ação no espaço, mostrando-se como propostas estruturais de alguns momentos. Dentro daquele labirinto dado, o caminho se mostrava aberto a intervenções; a potência do encontro dos corpos com a matéria no espaço consolidava uma experiência única e singular, trazendo diferentes leituras e sentidos para cada participante. Viver as experiências propostas era uma forma de se expor ao real do mundo, deixando de mentá-lo, ou de absorvê-lo através de representações e pontos de vista. Quando se expõe ao real, o indivíduo ressignifica o que é conhecido, subvertendo ou variando seus modos de uso. Ele está imerso na experiência, não pode se afastar para compreendê-la a partir de outros pontos de vista, apenas pode vivê-la e seguir adiante, aberto para o que quer que possa vir.
Quando, durante um dia de experiência, o desenho espacial se fez com sacos de terra no chão, havendo um roteiro pré-estabelecido para montagem de barricadas que cruzariam o espaço, abertura dos sacos, construção de uma montanha de terra etc., foi possível perceber que ali não havia o que intelectualizar, as direções de ação eram claras e o material estava dado. Há então, em uma situação assim, um encontro com o real que se faz principalmente a partir do peso da terra e do desgaste físico de quem com ela trabalha. É interessante perceber que o peso se mostra como o real incontornável, inescapável. Se o objetivo é carregar os sacos, organizá-los de um jeito ou de outro, o importante em tudo isso é perceber como o corpo reage e também como o observador desse corpo, que talvez não esteja carregando os sacos mas se encontra no espaço com o mesmo tipo de presença, reage ao desgaste do corpo alheio, ao embate do corpo com a terra e todos os seus fluxos de energia. A visão não é o principal sentido: não se trata de montar uma barricada e observá-la de diferentes ângulos, mas sim de construí-la, derrubá-la, espalhá-la e dessa forma submergir nesse caminho de encontros com a matéria.
Esse momento da pesquisa traz à tona a questão da variabilidade da matéria, colocada por Ingold como suas tensões e linhas de fluxo, sua elasticidade e resistência. Conforme defende o antropólogo através de conceitos do filósofo Gilles Deleuze e do psicanalista Félix Guattari, a matéria apresenta movimento, fluxo e variação. O sujeito que a trabalha deve seguir seus fluxos através de sua intuição, identificando maneiras de transformá-la e fazer emergir novas formas (4). A matéria não é vista como receptora passiva de formas previamente projetadas pelo sujeito, mas sim através de sua participação ativa no processo de criação. Ela toma forma a partir do encontro com corpos e outras matérias. Esse foi o modo de encarar o encontro com a materialidade conduzido pelo processo de pesquisa de Máquinas do mundo. Não havia submissão da matéria aos desejos do grupo, mas sim uma equivalência de importância e respeito a qualquer elemento colocado no espaço, fosse ele vivo ou não-vivo.
Essa forma de trabalho, na qual não é possível prever anteriormente o desdobrar dos acontecimentos, revela a principal intenção da pesquisa: lançar-se ao desconhecido para se surpreender com o que pode vir a ser o encontro dos corpos com a matéria e o espaço. A premissa adotada por Ingold é: o mundo não está dado, ele se faz à medida que a experiência é vivida, o que se relaciona diretamente com o conceito de devir explorado por Deleuze e Guattari. Sujeito e ambiente se fazem outros a partir de seus encontros. Em outro momento das experiências práticas, em busca de um clima de aridez de deserto, a sala foi preenchida por fumaça branca e só o que se via era luz e fumaça. Houve ali um devir coletivo, permeado da disponibilidade dos sujeitos e da matéria. A presença corporal se mostrou ainda mais necessária, e a transformação do estado do indivíduo e da matéria foi perceptível ao observador. A fumaça traz sensação de umidade, turva a visão e esbranquiça o espaço. Como afirma G.H., “o deserto tem uma umidade que é preciso encontrar de novo” (5). Por meio da fumaça, essa umidade transformou o ambiente, fazendo-se presente como mais um corpo naquele espaço, capaz de alterar o movimento e ser alterado por ele. Ora rala, ora densa, a fumaça se fez sujeito à medida que sua materialidade foi vivida no corpo e preencheu o espaço. Este é um momento em que o mundo se refaz continuamente; não há formas dadas, mas constante transformação, devir.
Em relação a esse contínuo “vir a ser” do mundo, é possível trazer uma citação de John Dewey, filósofo e pedagogo norte-americano em cujo trabalho Tim Ingold baseia muitos de seus textos. Dewey define a experiência como:
“Um processo eternamente renovado de agir sobre o ambiente e de ser afetado pelo mesmo, juntamente com a instituição das relações entre o que é feito e as coisas pelas quais passamos. [...] O mundo que experimentamos torna-se parte integrante do eu que age e age de acordo com a experiência. Em sua ocorrência física, as coisas e os eventos experienciados passam e se vão. Mas algo do seu significado e valor é mantido como parte integrante do eu. Através de hábitos formados no intercurso com o mundo, nós também habitamos dentro do mundo. Ele torna-se um lar e o lar faz parte de todas as nossas experiências” (6).
Plano de imanência
É na união de corpos diversos e suas trajetórias singulares com roteiros de ações previamente estipulados, materiais livremente propostos e um espaço liso (7), cheio de possibilidades, que se dá o encontro da forma como Tim Ingold aborda a experiência da educação e o processo de pesquisa de Máquinas do mundo. Evocando novamente Deleuze e Guattari, Ingold aborda os conceitos de real e virtual ao explorar, em termos subjetivos, a forma como o indivíduo vive a experiência do labirinto (8). A imaginação, importante elemento do processo criativo, é pensada pelo autor como a experiência de fazer aparecer algo, assistir à sua gestação e ao seu nascimento. Nesse sentido, imaginar é produzir começos e não fins. O mundo está repleto de potencialidades virtuais, qualquer espaço contém múltiplas possibilidades em vias de se atualizar. Mundos vão se criando a partir da atualização de algumas dessas virtualidades. Quando se vive a experiência do labirinto, o que há de virtual presente naquele espaço, naquele caminho, se atualiza através da imaginação, levando cada caminhante a viver algo único, formador de sua existência. Esse modo de existir entre o virtual e o atual, no qual antes há uma virtualidade que, conduzida pela imaginação e seguida pela percepção do real, se faz atual, é chamado por Tim Ingold, segundo conceito de Gilles Deleuze, de plano de imanência — plano no qual se encontram os que experimentam o labirinto (9). Da mesma forma, os acontecimentos de Máquinas do mundo aqui mencionados apresentam indivíduos imersos em tal plano de imanência. Corpos entregues ao que pode vir a ser descoberto, em um processo de constante transformação de suas subjetividades a partir da atualização de acontecimentos materiais e de suas memórias.
Os acontecimentos apresentados no artigo, como a montagem de barricadas de terra ou a imersão na fumaça, foram trazidos com o objetivo de encontrar pontos de aproximação entre a experiência prática e os conceitos teóricos, compreendendo o que se pode entender da experiência a partir da abordagem de tais conceitos. Porém, são acontecimentos pontuais e não esclarecem de forma prática a metodologia do trabalho. Por isso, apresenta-se a seguir a descrição da proposta de um desses encontros, de forma mais geral, sem adentrar em acontecimentos específicos, de modo a delinear a paisagem das ações que se constitui no decorrer da experiência, à semelhança do plano de imanência.
O tema do dia era Máquina-Olho. O roteiro era claro, sem abertura para mudanças: havia um pula-pula dentro da sala de ensaio (desses cheios de ar, de festa infantil), duas paredes de luz forte e quente posicionadas uma contra a outra no fundo da sala (de modo que, estando-se entre elas, sentia-se muito calor e luminosidade) e um tapete preto do lado de fora da sala com um tecido branco esticado fazendo como um “teto” sobre o tapete. O coletivo deveria se dividir em três grupos, cada um ocuparia um desses ambientes propostos por cinco minutos e se alternaria sequencialmente. Esse foi um experimento de percepção da luz a partir de repetição de ações. Iniciando pelo pula-pula, havia um desgaste físico dos corpos que, entregues àquela brincadeira infantil, se desfaziam de toda a busca mental por símbolos e sentidos da experiência. A ideia desse desgaste físico era produzir um estado de presença semelhante e coletivo para o que seria vivido a seguir. Após o pula-pula, o grupo se posicionava entre as paredes de luz, intensificando o calor de seus corpos já quentes pelo pular. Ali se vivia um momento de pausa, de descanso, simultaneamente ao aumento das ondas de calor sobre os corpos e a uma quase cegueira visual dada pelas luzes extremamente fortes. As ações nesse segundo momento eram livres; havia espaço para se movimentar, dançar, deitar ou mesmo ficar parado. A proposta era sensorial: cegar a visão e esquentar o corpo na busca pelo estado de presença coletivo, de experimentação do real na criação daquele mundo. Um mundo quase surreal, no qual há uma sala completamente preenchida por um enorme pula-pula inflável, com luzes extremamente fortes e um grupo de adultos se alternando entre atividades. O pula-pula chacoalhava constantemente, parecendo que ia sair rodando pelo espaço, a parede de luzes esquentava a sala, e a percepção do grupo, já alterada pelas experiências corporais, mergulhava a fundo na situação proposta. A última estação pela qual o grupo passava, para então voltar novamente ao pula-pula, era o tapete preto. Importante ressaltar que toda essa experiência aconteceu durante um entardecer, finalizando no lusco-fusco. Quando o grupo se deitava no tapete, olhando para o tecido branco esticado, havia uma fresta entre o tecido e a parede onde ele estava fixado por onde se podia ver o céu. Luzes coloridas tingiam o tecido e a parede com cores diferentes, e o céu ia mudando de cor com o pôr do sol. Esse era um momento de experiência visual inspirado na obra do artista plástico James Turrell e que exigia constante trabalho da Máquina-Olho — que, adaptando-se constantemente à diferença de cor e luminosidade dada pelo lusco-fusco e pelas luzes artificiais coloridas, percebia claramente as mudanças na cor do céu em relação às cores das paredes. Era quase um estudo de cor espacial, tendo como protagonistas as diferentes cores do céu em um momento de lusco-fusco.
Na experiência descrita fica clara a relação com a experiência do labirinto. Os pontos de ação, o direcionamento do grupo, o modo como o dia foi estruturado formam um caminho labiríntico, no qual não há escolhas a serem feitas: o indivíduo segue a experiência que lhe foi colocada, porém deve fazê-lo com atenção. Pular no pula-pula é algo que exige esforço físico e coordenação para que um não caia sobre o outro, não se machuque e consiga colocar o corpo à disposição daquela ação solicitada. Entre as paredes de luz quente, a atenção é necessária para que se busque o que aquele corpo cansado consegue experimentar em um estado de calor e cegueira, na troca com os outros corpos e dentro dos limites do próprio corpo. A matéria ali é a luz, que através do calor se faz sentir na pele, transforma o estado dos corpos e instaura um ambiente de lentidão. Finalmente, há um estado de constante devir, pois as mudanças na cor do céu, intensificadas pela impressão causada pela luz artificial colorida, imprimem no indivíduo mudança sutis mas marcantes; aquele corpo já em estado de presença se deixa transformar a partir da percepção das transformações do céu. A experiência proposta foi uma busca intensa por estados de imanência, em que o corpo foi forçado a se fazer presente e a atualização de virtualidades foi constante — abarcando desde a atualização de memórias de infância, diante de um brinquedo infantil há muito não visto, até a atualização da luz em calor ou das mudanças de cores do céu na Máquina-Olho do indivíduo.
Atenção como forma de educação
A partir do paralelo traçado entre os acontecimentos do processo de criação experimental de Máquinas do mundo e os conceitos de dédalo e labirinto colocados por Tim Ingold, é possível abordar a questão da educação de forma mais direta, com o objetivo de compreender que tipo de experiência pedagógica seria essa trazida pelo processo de criação. Ingold compara o dédalo e o labirinto a formas de prática pedagógica. Ele os identifica, segundo os conceitos do filósofo Jan Masschelein, como uma forma de pedagogia rica e outra pobre. Sendo a pedagogia rica associada à experiência do dédalo e a pobre à do labirinto, o antropólogo inverte as expectativas do senso comum e parte em defesa da pedagogia pobre, na qual a educação é “menos um guardião de fins do que um catalisador de começos, cuja tarefa é destravar a imaginação e lhe propiciar a liberdade de vagar sem um fim ou destino” (10). O autor critica a experiência de ensino do dédalo, considerada rica porque cheia de conteúdos e representações de mundo a serem transmitidas e acumuladas pelos alunos.
“Pois em sua história institucional, a escola tem se dedicado a conter a imaginação, a convertê-la numa capacidade de representar fins antes da sua consecução. O propósito da instituição tem sido, em larga medida, destinar o tempo, e não des-destiná-lo; completar a inculcação do conhecimento nas mentes dos alunos, e não desembaraçá-lo. Tem sido afirmar a primazia do dédalo ante o labirinto, do controle ante a submissão” (11).
Todo o esforço de Ingold se dá em mostrar o quão importante, socialmente, é a educação dita pobre, aquela que chama o sujeito à vida. Ela expõe o indivíduo a uma nova relação com o presente: não demanda interpretações ou fracionamentos, mas exige sua total atenção e permeabilidade. Na educação pobre, através da prática da atenção e da exposição ao outro, há produção de começos, há exposição ao mundo de forma que este se torna real e presente. O objetivo não é interpretar o mundo ou refletir a seu respeito, mas criar correspondência com ele, atentando-se para ele (12).
A aproximação entre a proposta pedagógica defendida por Tim Ingold e a experiência de pesquisa prática de Máquinas do mundo deixa claro que o campo das artes e, principalmente, o dos processos criativos se mostram repletos de ferramentas para instaurar uma forma de educação que busque interromper os fluxos, fazer desacelerar e permitir dar atenção ao mundo. Os dispositivos explorados na pesquisa prática apresentam maneiras de estar no espaço que ressignificam a experiência e abrem a atenção para o real. Podem ser utilizados como possível atividade pedagógica e também como inspiração para o desenvolvimento de formas experimentais de ensino. São métodos de ensino que buscam desenvolver a capacidade de o aluno se atentar para o mundo que habita, tomando consciência de que seu corpo ocupa o espaço em um processo de coevolução, no qual indivíduo e ambiente identificam-se como um único sistema em contínua transformação (13).
notas
1
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção. Horizontes Antropológicos, n. 21 (44), Porto Alegre, jul./dez. 2015 <https://bit.ly/3kxjiN4>.
2
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. N-1, São Paulo, 2016, p. 397.
3
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção (op. cit.).
4
INGOLD, Tim. Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture. Londres, Routledge, 2013.
5
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 74.
6
DEWEY, John. Art as experience. Carbondale, Southern Illinois University Press, 1987, p.109. Apud INGOLD, Tim. Antropologia e/como educação. Petrópolis, Vozes, 2020, p. 39.
7
Espaço liso, segundo conceito de Gilles Deleuze e Félix Guattari, é o que se opõe ao estriado. O espaço liso por excelência seria o mar ou o deserto, que flui e escorre, não podendo ser parcelado. Em um espaço liso não há direções pré-determinadas e, por não haver parcelamento do solo, qualquer movimento realizado em um ponto interfere em todos os outros simultaneamente. É um espaço heterogêneo, porém interconectado em todos os sentidos; tudo afeta tudo. É o espaço da descoberta e da experimentação. Nele há tantas variáveis que se deixar levar significa ser arrastado por um fluxo turbilhonar. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Volume 5. São Paulo, Editora 34, 2012.
8
“O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do virtual, é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: ‘Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos’, e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser entendido como uma estrita parte do objeto real — como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Rio de Janeiro, Editora 34,1993, p. 335-336. Grifo da autora.
9
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção (op. cit.).
10
Idem, ibidem.
11
Idem, ibidem.
12
INGOLD, Tim. Antropologia e/como educação (op. cit.).
13
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2018.
sobre a autora
Flora Belotti é mestranda na área Projeto, Espaço e Cultura do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, sob a orientação do professor doutor Luís Antônio Jorge, e graduada em arquitetura e urbanismo pela mesma instituição, em 2015.