A ruptura das premissas formais de caráter historicista e o questionamento dos modelos acadêmicos, assim como as mudanças do modus operandi da concepção artística, como as do último Paul Cézanne com seu “impressionismo escultural” (1), sugerem a libertação dos modos de ver (e de pintar) o mundo que no final do século 19 abandonam a ótica acadêmica tradicional, relacionada com a pintura de gênero, a mimética e a perspectiva imperante até aquele momento.
O levante contra esse método acadêmico se configura como uma abertura para novas experiências que, desatadas dos modelos lendários, buscaram satisfazer outros apetites estéticos e culturais, menos eurocêntricos em alguns aspectos (focando-se na África, no Oriente ou na Oceania), mas sobretudo tentando atender a um desejo de liberdade expressiva que não podia ser aplacado pela composição, como método de trabalho regrado (ainda que inventivo), ou pela tradição (clássica ou eclética), como fornecedora de modelos consensuais, socialmente reconhecidos. O impressionismo e as correntes que o seguiram (pós-impressionismo, pontilhismo, fauvismo e simbolismo) foram importantes componentes de uma mudança de atitude na arte e na forma de produzi-la que preocupou (questionou) a sociedade na passagem do século 19 para o 20.
A cultura arquitetônica parece seguir, no início do século 20, os caminhos trilhados pela arte desde fins do século 19, deslizando suas práticas operativas da dispositio à composição e dela ao projeto. Mas, embora sejam uma parte importante do complexo processo de alteração dos padrões culturais ocidentais, os principais movimentos transformadores do campo da arquitetura entre 1890 e 1910, Art Nouveau e Arts and Crafts, não desenvolveram técnicas expressivas novas, representações novas. Permaneceram dentro da tradição dos desenhos diédricos ou perspectivados, consagrados pela academia.
Os artistas desses movimentos e os grupos afins (Jugendstil, Liberty e Modernisme), foram capazes de impulsionar transformações de caráter formal (estilísticas) e funcional (tipológicas), como testemunham as obras, construídas ou escritas, de Morris, Horta, Wagner, Fenoglio, Gaudí, Muthesius, Van de Velde entre outros, mas não uma nova forma de representar a arquitetura do mundo capitalista industrializado. Uma arquitetura que precisaria lidar com a massificação da imagem e com as novas técnicas reprodutivas. Assim, ainda alheios às grandes mudanças que se avizinhavam, as representações desses movimentos se mantiveram coerentes com as visões de mundo de seus autores que reproduziam os métodos tradicionais, adotados nos séculos 15 e 16.
Os movimentos posteriores (considerados propriamente vanguardistas), como o expressionismo alemão, o futurismo italiano ou o cubo-futurismo checo, tampouco desenvolveram métodos expressivos fora do campo das representações aclamadas, mas dentro deles começaram a formular as primeiras alterações importantes. Certamente abordaram uma temática utópica, pois se apresentaram novas formas para uma sociedade por vir, que fugiam do convencionalismo historicista e das vertentes floral, animal ou geométrica derivadas do Art Nouveau, como constatamos nos projetos de Sant’Elia ou nas propostas de um Pöelzig. Também encontramos novos ângulos de visão, produto de um mundo industrializado, como nas obras de Marchi ou Finsterlin, ou alterações na paleta cromática e volumétrica, evidenciadas nas paisagens de Taut ou nas luminosas obras de Scharoun e Luckhardt. E tampouco faltaram, ainda que não tenham sido muitas, as propostas ousadas de fragmentação dos elementos da arquitetura, num intento de ressignificação pós-cubista, como nas obras de Janák. Mas nenhum desses artistas abandona o arcabouço representacional do desenho tradicional, aquele que vem do século 16.
É certo que para apresentar suas ideias preferem o desenho em perspectiva ao diédrico, mas também é certo que suas perspectivas se atêm nos limites aceitos e consensuais das representações cônicas, conceituadas desde o Renascimento. Assim, apesar de apresentar formas renovadas, novidades temáticas e cores deslumbrantes, não podem ser consideradas renovações da forma representacional, que permanece intacta. Há uma concessão aos aspectos formais representados que são privilegiados pelos mesmos meios utilizados para representar as arquiteturas do passado. Expectativas e desejos resolvem-se no que se representa, mas não no modo como se os apresenta (ou, se os pensa). Esses movimentos se situam em um complexo momento de transformação dos aspectos perceptivos e representacionais da cultura ocidental que resultaram na Primeira Guerra Mundial (e na Revolução de 1917), momento no qual o Ancien Régime finalmente cai (tese apontada por autores como Arno J. Mayer e Eric Hobsbawm). Abre-se, nesse momento, uma janela de questionamento dos valores renomados do presente que privilegia as incertezas de um futuro desejado.
Nossa tese é que esses movimentos, até o início dos anos 1920, não lograram romper conceitualmente com a forma, base incontestável nos quinhentos anos de existência da arquitetura, isto é, desde a formulação da profissão como a conhecemos hoje no Re-aedficiatoria, 1452, de Leon Battista Alberti. Foi necessário esperar um pouco mais, e por outro tipo de arquiteto-artista, para esboçar um caminho diferente. Ainda assim, não cabe dúvida sobre o ímpeto progressista e questionador de aqueles grupos, mas, do ponto de vista das representações, não há nesses trabalhos um paralelo com as propostas radicais e transformadoras das chamadas vanguardas artísticas, a dos anos 1910, que romperam com a figura (mimética, perspectiva), aquelas que surgem do êxito da renovação das artes (visuais e plásticas) promovidas sobretudo na França no último quartel do século 19 (com o pós-impressionismo) e depois. Essas vanguardas se amparam em processos ou práticas experimentais que não só se afastam rapidamente, mediante seus diversificados procedimentos de construção visual, das doutrinas acadêmicas, tanto quanto das correntes renovadoras que as precederam (o próprio impressionismo), mas também inventam novas formas expressivas (superando a superfície pictórica da tela por meio de uma nova concepção da profundidade de campo não perspectivada) e técnicas híbridas de representação que revolucionam a própria arte. Veja-se o caso paradigmático do cubismo na pintura.
O tema das colagens, que inauguram as representações híbridas (uma nova categoria de análise para a arquitetura), só recentemente entrou no espectro dos temas sobre representações da arquitetura (com pesquisas sobre Mies van der Rohe, ou sobre alguns artistas soviéticos, e, todavia, sobre a produção de coletivos como Archigram ou Superstudio), mas é um tema que já foi tratado no campo da arte, em relação tanto com o cubismo, como com Dadá (como nos trabalhos de Rosalind Krauss, The Picasso Papers — 1998, e William Chapin Seitz, The Art of Assemblage — 1961). O tema, bastante ampliado tem, recentemente, encontrado um canal de popularização, como se pode ver pelos textos de divulgação editados pela editora alemã Gestalten (The Age of Collage). Mas, parece hoje necessário, pela difusão da hibridização que o mundo contemporâneo encampa (não só da imagem, como se percebe na mixagem ou o sample, por exemplo), que voltar sobre as relações entre as representações arquitetônicas (especialmente a dos anos 1920, quando da procura de um questionamento da forma se fez presente), e essas “técnicas de vanguarda”, que são a colagem e a fotomontagem, podem permitir “ver o iluminado” (2). Isto é, no caso em tela, a arquitetura, com um pouco mais de clareza, sem, contudo, querer esgotar o tema.
Vale salientar, contudo, que ainda reconhecendo quanto arquitetos como Wright, Behrens, Berlage, ou Tessenow e Mendelsohn, entre muitos, têm produzindo inovações fundamentais para as mudanças de direção da arquitetura no início do século 20, esses artistas nunca transcenderam as formas tradicionais de representação, e por essa razão estão fora de nosso escopo de trabalho, uma vez que nosso tema não é a arquitetura como projeto (por trás de uma construção), mas é o das formas representacionais e suas transformações e como elas afetaram o pensamento arquitetônico.
O cubismo: escapando da superfície
O cubismo valorizou a descaracterização da visão perspectivada e se abriu para outros modelos de representação da realidade, abolindo a compreensão mimética dos objetos apresentados. São modelos que exigem uma nova contextualização da mimese e do naturalismo, vinculada a uma experiência estética afastada da imitação da natureza (uma habilidade manual sem valor artístico). Contudo, uma mimese que deveria ser entendida em sua acepção mais antiga, a de “encarnação” (3), que aqui poderíamos definir como “incorporação”, tanto no sentido de “juntar” ou “incluir” como no de “dar corpo”.
O cubismo procurou uma nova liberdade expressiva e de valores. Essa condição que se impôs (liberdade artística, inovação plástica, desconstrução da perspectiva e questionamento da mimese) permitiu a investigação de métodos e práticas numa sequência dialética cujos resultados conseguiram gerar mudanças significativas na forma de produzir as obras subsequentes, num ciclo constante de alterações estilísticas, formais e temáticas, mas sobretudo mentais, que vão de 1907 (Les Demoiselles d’Avignon) até praticamente o fim dos anos 1930 (Guernica). A fragmentação de planos, a abertura para múltiplas interpretações do sentido dos temas pintados e as soluções formais para a pintura desses temas permitem — e em alguns casos exigem — a exploração de técnicas diversificadas dentro do plano bidimensional, a tela, para atingir as novas intenções plásticas e expressivas.
Mas a mudança que mais nos interessa destacar é a apropriação de materiais considerados não convencionais no campo da pintura (como no caso da Nature-morte à la chaise cannée, Picasso, 1912), pois com eles se estabelece uma nova gama de possibilidades que põe em questão a suficiência comunicacional das formas feitas desde a Antiguidade apenas com materiais tradicionais (óleo, tinta ou carvão). Delineiam-se, então, novas maneiras de incorporar e sobrepor diversos elementos fragmentados numa superfície: nasce a colagem como proposta plástica e expressão da vanguarda.
A colagem remete a uma lógica visual da incorporação dialética, no sentido que lhe dá Theodor W. Adorno (4), que tenta fugir da representação naturalista da perspectiva (uma abstração visual que, após séculos de domínio da forma narrativa da arte, se considerava natural) através dos objetos. A colagem propõe uma espacialidade objetiva em relação ao objeto (não-perspectiva), que descarta a abstração da profundidade de campo (trompe-l’oeil, um truque de perspectiva). Vale salientar que na realidade não há “truque”, pois, como mediação natural do mundo exterior, a perspectiva alcançou uma profunda penetração na psique ocidental, domesticando tanto artistas como observadores, induzindo uma aceitação dócil da interposição de um dispositivo ótico abstrato (mais que um sistema perceptivo, um sistema geométrico) como simulacro consensual da visualização da realidade objetiva.
A colagem restabelece a condição objetiva daquilo que é representado, pela sobreposição de elementos do mundo real que comparecem com sua materialidade própria, diferenciando-se do suporte (não só a tela, mas também a pintura) e surgindo uma hibridização, uma conciliação entre pintura e escultura, um algo “existindo no limite entre duas e três dimensões”, um procedimento para investigar as “potencialidades do plano tridimensional em um meio bidimensional” (5).
A novidade da materialidade da pintura, pelo uso de elementos corpóreos, tridimensionais (no início, quase planos) é a superação da convenção da espacialidade pictórica (bidimensional), que dá à pintura novos estratos de significação espacial real. Alguns artistas no século 19 tinham tentado sair da tela usando densas camadas de pintura (Van Gogh), mas, apesar do efeito volumétrico, escultórico, em nada se comparam às obras realizadas com a técnica cubista da colagem.
Voltando à Nature-morte à la chaise cannée, perceberemos que a palhinha (do “assento da cadeira”) não é realmente palha, mas um pedaço de oleado com uma estampa em forma de palhinha. Tampouco temos um “assento de cadeira” (muito menos uma “cadeira”), salvo pela sugestão do título da obra e pela reverberação da estampa do oleado, que remete à trama do assento de uma cadeira de palhinha. Nem a natureza morta é, de fato, uma natureza morta, salvo também pelo que indica o título. Talvez o único real seja a corda que emoldura a obra, apesar de ser uma corda, e não uma moldura tradicional, pois ela atua como o que é, uma moldura.
Obras como essa constroem outra dimensionalidade, não mais pela profundidade de campo pictórica, pela espessura da massa da tinta ou pela perspectiva, mas pela materialização física do objeto do mundo real (ainda que simbólico, alegórico ou simplesmente analógico), que desloca a imagem da superfície e destrói o espaço e a espacialidade (pictórica, visual, ótica, perspectiva). A obra de Wilhelm Worringer (6), que podemos considerar contemporânea, já levantava essa questão da irreconciliável relação entre a abstração e o espaço: “Portanto, o espaço é o maior inimigo de todos os esforços de abstração e teve de ser imediatamente suprimido da representação”.
A pintura se contamina de uma materialidade não pictórica que transcende o campo da analogia, da mimese como imitação. Esse foi um salto gigantesco para a concepção e para a prática artística, que exigiu um importante esforço e tempo de adaptação não tanto dos artistas, mas sobretudo do público (em que incluímos os arquitetos). Contudo, o esforço evidenciou que:
“Enquanto o cubismo de 1911 é o momento mais fecundo da história da arte moderna, a colagem é a mais importante invenção da arte moderna. No cubismo de 1911, o equilíbrio na fusão de coisas e espaços proporciona uma troca de aspectos entre o que é sólido e o que é vazio. O espaço ganha solidez e as coisas se especializam. O contorno interrompido, e que possibilita a fusão, tem algo de uma incisão que marca o terreno para a entrada em cena dos recortes das colagens” (7).
Aparentemente, Alberto Tassinari contradiz Worringer, mas, poderia estar concordando, se pensamos que quando o “espaço ganha solidez”, desaparece como tal (pois vira volume). E quando uma coisa se espacializa, entendemos que sua expansão sobre o espaço também o elimina. O centro da questão é a coisa, não o espaço. E a colagem produz justamente esse efeito, o de chamar a atenção para a coisa, para o objeto, por meio da abstração e da supressão do espaço da representação (“o contorno interrompido”).
O “quadro” (Bild), objeto que resulta da ação artística (de pintar), começa com esse deslocamento vagaroso, mas constante, um percurso que o levará a um novo campo expressivo (formal, mas objetivo): o da “obra” (œuvre). Parece uma questão meramente semântica, mas não é. O quadro dominou o panorama da arte por séculos, não só adaptou a forma de trabalhar dos artistas, criando gêneros e mesmo um tipo de artista específico, o de cavalete, como formou o gosto da classe dominante, que se especializou criando um tipo específico de pessoa, o colecionador (de pinturas). Os museus não são outra coisa, ou pelo menos não foram durante muito tempo, que um repositório desse tipo de arte.
A obra abriu o campo da produção de “objetos”, que começaram a saltar das paredes para o lugar do observador e para o campo da arquitetura. Obras como as de Tatlin (contrarrelevos, 1914-15) foram o começo, mas prontamente apareceram as instalações, como as de El Lissitzky (Proun, 1919, e especialmente Proun Raum, 1923), ou de Huszár (Intérieur, 1924). Só aí, no caminho da abstração e da objetividade, surge uma relação direta com a arquitetura (moderna). As propostas cubistas dos anos 1910 germinaram na Rússia czarista (Larionov e Goncharova, mas também Tatlin e Malevich) e se desenvolvem na União Soviética dos anos 1920, de onde impregnaram o mundo cultural germânico, que estava adubado pelos recursos conceituais e práticos oferecidos por De Stijl, Neue Sachlichkeit e Dadá. Mas, foi pela abertura de possibilidades instauradas pelo cubismo como espaço para a livre investigação no campo artístico (abstrato) que os grupos avant-garde da arquitetura passaram a explorar novos meios de representação e novas materialidades.
Representação arquitetônica na experiência moderna: hibridação e outras práticas
As técnicas empregadas pelas vanguardas pós-cubistas, fortemente evidenciadas em suas vertentes russas (suprematismo, elementarismo e construtivismo), modificam os meios de experimentação para enfatizar os aspectos comunicacionais e as manifestações sociais por meio das artes. Incluem-se aí não só a fotografia e a colagem, mas também as artes gráficas e o cinema. O caso soviético é diferente do europeu, claro, pois o país não tinha um mercado de arte, mas o Estado se portou como um instigador da produção artística, ainda que com a finalidade de satisfazer suas necessidades de propaganda. As imagens produzidas por esses artistas privilegiam as formas híbridas, com geometrias abstratas (Malevich) misturando-se com fotografia e diferentes tipos de colagem e textos (Rodchenko e Maiakovski). A inovação gráfica e formal ajuda a produzir obras de diferentes tipos, destacando-se, por exemplo, as artes aplicadas e gráficas (peças de propaganda), a escultura e a produção de objetos, que encontram nessa nova temática fontes de inspiração muito atraentes (Gabo, Kobro, Popova, Stepanova, entre outros). A Rússia soviética tinha também abolido, por condicionamento ideológico marcado por uma forte convicção política, o historicismo e o decorativismo, considerados partes consubstanciais da concepção burguesa da arte e da vida. A separação entre as artes tampouco tinha sentido para aqueles revolucionários que procuravam novas formas de se relacionar com o mundo. O ensino da arquitetura também era altamente motivador e muito experimental, como sabemos pelos trabalhos desenvolvidos nos Vkhutemas, antes da Bauhaus, mas também pelos agrupamentos de jovens arquitetos como a Associação de Novos Arquitetos — Asnova e a União de Jovens Arquitetos — OMA.
Nos mesmos anos 1920, na Alemanha e na Holanda, também se consolida uma tendência fundamentada na necessidade da revisão dos princípios que regem a arte (e a arquitetura), sem influências historicistas ou plásticas (decorativas) do passado, com base na razão e na liberdade da expressão (da composição ao projeto) e que sugerem cada vez mais a pureza formal (geométrica) e a desconstrução dos princípios estéticos de origem acadêmica (ornamentais e compositivos), que até então prevaleciam na Europa. Nesse caso, o condicionamento é igualmente ideológico, mas se desenvolve dentro da chave interpretativa de um ponto de vista estético, ainda que o foco da crítica também seja o mundo burguês (especialmente no aspecto comportamental).
É interessante perceber que todos esses artistas procuraram novas formas de representação, pois consideravam-nas necessárias à produção artística: colagem, fotografia, cinema, design gráfico, instalações etc. Inclusive, migram de um campo a outro: da pintura para a arquitetura (Van Doesburg) ou vice-versa (El Lissitzky); incorporam várias práticas artísticas diferentes, como pintura e escultura (Malevich) ou subvertem uma e outra (Schwitters, Tatlin); integram várias formas artísticas, como escultura e arquitetura (Kiesler, Schwitters); introduzem o movimento e acompanham a técnica da montagem cinematográfica (Richter, Kuleshov, Eggeling). Um caso interessante para nosso tema é Theo Van Doesburg. Artista muito versátil que, através do De Stijl, impulsionou com sua pregação teórica e ação plástica o principal salto qualitativo no entendimento do que poderiam ser a nova arte e a nova arquitetura (vários artistas e arquitetos o seguiram nesse caminho, como Oud ou Rietveld, mas também Mies van der Rohe e El Lissitzky). Sua produção foi muito mais revolucionária que as provenientes das elucubrações de Le Corbusier e mais ainda que as oriundas da Bauhaus, que, fundada em 1919, continuava expressionista em 1923. Foi também um excelente interlocutor das experimentações soviéticas da época, especialmente por seu relacionamento com El Lissitzky, mas também dos artistas alemães mais comprometidos com a nova sensibilidade, entre eles, Hans Richter, que era membro do Novembergruppe e editor da revista G (Material zur Elementaren Gestaltung). A maior contribuição de Van Doesburg à teoria da arquitetura e à transformação da arquitetura foi, sem dúvida, a destruição da caixa arquitetônica com suas axonometrias e suas contraconstruções (8). Além disso, inventou a divisória, como afirma o crítico Yve-Alain Bois (9). Porém, coerente com sua pesquisa plástica, não ultrapassou o desenho (ou a pintura), mas revolucionou a arquitetura a partir do campo da pintura, talvez — ou justamente — porque pensava que a “arquitetura une, vincula”, mas a “pintura se solta, dissolve” (10). No livro de Bois (11), a frase do holandês foi traduzida como: “[a] Arquitetura incorpora e une — a pintura solta e liberta”. Embora com alguma licença poética, a tradução é interessante por incluir a ideia de liberdade (vrijheid), que, no entanto, não está no texto original: “De bouwkunst voegt aaneen, bindt. De Schilderkunst maakt loss, ontbindt”. Finalmente, o que devemos destacar é que uma se subordina à forma (a arquitetura), e outra permite sua libertação (a arte, ainda que se refere à pintura).
O que era preciso para dissolver a forma no campo da arquitetura? Essa é uma pergunta central, se pretendemos refletir sobre a similitude de objetivos e metas entre as vanguardas artísticas do início do século 20 e a arquitetura do mesmo período. Contudo, grandes arquitetos “não vanguardistas”, como Wright ou Berlage, não podem ser avaliados nesta chave interpretativa, pois estavam alheios a este tipo de intenções, o que não indica nenhum menosprezo por suas obras. Assim estamos perante uma questão difícil, porque a forma (dos elementos de arquitetura) sempre foi a base da concepção da (e até da invenção na) arquitetura. Veja-se a insistência na preeminência da forma de artistas como Le Corbusier e Gropius. Mas a arte de vanguarda exigia esse esforço dos artistas e movimentos que aderiram a ela. O cubismo já havia mostrado esse caminho. Assim, a arquitetura da vanguarda centro-europeia e soviética percorreu essa senda com trabalhos desenvolvidos nessa direção: a desmaterialização, levada adiante por De Stijl (ainda que só devêssemos dar o crédito a Van Doesburg); a abstração proveniente do suprematismo; a experimentação do construtivismo; os novos meios expressivos usados pelo elementarismo; e o ambiente da Neue Sachlichkeit germânica, que os brindou a todos com um campo fértil.
Foi justamente esse ambiente da Nova Objetividade que permitiu uma aproximação entre abstração e imagem que favoreceu a adaptabilidade da arquitetura às novas práticas. Trabalhos de fotógrafos como Renger-Patzsch ou Gorny, que exploram os limites do visível dentro de uma temática compositiva abstrata, ainda que dando grande peso aos materiais, foram fundamentais. A fotografia não entra nessa chave interpretativa por razões meramente estéticas, mas porque foi um grande apoio para a consolidação de uma arquitetura objetiva, não mimética (historicista), mas factual, isto é, resultado de um Zeitgeist que tinha grande apelo na época. Cabe lembrar que, “como prática de alta arte, a fotomontagem só foi ‘inventada’ depois da Primeira Guerra Mundial, pelo círculo dos dadaístas de Berlim” (12).
Curiosamente, a crítica da época não captou essas sutilezas. Basta analisar o famoso diagrama de 1936 do historiador estadunidense Alfred H. Barr Jr. (13) para os movimentos da vanguarda artística e sua relação mútua, em que coloca a arquitetura moderna em relação com (ou influenciada) pelo purismo, pelo neoplasticismo e pela Bauhaus, descartando as relações diretas e necessárias com o construtivismo e o suprematismo (que, segundo Barr Jr., só aparecem porque afetam a Bauhaus). Causa estranheza que neste diagrama não haja um campo para a Nova Objetividade ou o elementarismo, assim como que não existam relações diretas, contato (se não influências), entre Dadá, De Stijl e os suprematistas. Que diriam desta ausência artistas tão destacados e muito bem relacionados entre si como Richter, Van Doesburg e El Lissitzky?
Junto ao trabalho desses artistas, vale mencionar a experiência visionária de Ludwig Mies van der Rohe, pois pode ser considerada a que mais se aproxima dos trabalhos inovadores, herdeiros diretos do cubismo (contemporâneos da Neue Sachlichkeit e do Dadá): a da colagem e a da fotomontagem. Não só porque ao longo de toda a sua vida utilizou essas técnicas como metodologia de projeto e formas de representação avançadas — e ainda misturando-as em fotocolagens –, mas porque essas experimentações realmente afetaram sua forma de pensar e de projetar. Como afirma o curador Martino Stierli (14), Mies entendeu que a “arquitetura trata principalmente de representação, mas que do espaço”. Ainda que não conceituais, extraídas do elementarismo soviético e holandês (El Lissitzky e Van Doesburg, respectivamente) e do dadaísmo germânico (Richter, Hausmann), suas influências visuais emergem nas características de suas apresentações: a manipulação do espaço (bi e tridimensional), a integração de suas obras em cenários (fotomontagens), a construção de texturas e perspectivas que não se podem combinar apenas com a técnica do desenho tradicional (colagens). Não porque não domine a técnica tradicional do desenho, pois foi exímio desenhista, mas porque percebia que algumas questões, sobretudo de materialidade, exigiam outras formas de representação.
Os trabalhos em que se adotam técnicas híbridas, aproveitando processos típicos da criação artística (que solta e liberta), como procedimentos de representação visual de obras de arquitetura, como os acima mencionados, se caracterizam por algumas invariantes bastante precisas: uma intenção plástica que recorre às ilusões ópticas entre as diversas realidades espaciais dos objetos que a compõem (fotomontagem), um jogo de abstração e figuração e de cruzamento entre suas diversas materialidades (colagem), e um favorecimento da dimensão comunicativa da massificação (tipografia, propaganda). Alguns arquitetos, nos anos 1920, os mais atentos ao mundo das artes, aproveitaram um momento em que os limites entre esses campos ficaram indefinidos para explorar (descobrir, procurar, tirar proveito, percorrer) novas técnicas adequadas à uma sensibilidade nascente, a da modernidade, que abriria as portas para a invenção e a conceitualização teórica da arquitetura na era da máquina. A experimentação plástica (formal, mas também material e de técnicas de reprodução) foi uma atitude que se identificou, de maneira bastante precisa, com a formulação de uma arquitetura revolucionária que se constitui nos anos 1920, para depois se diluir numa volta à representação tradicional (Le Corbusier, J. J. P. Oud, Neutra e praticamente toda a produção do International Style). O ascenso de poderosas forças reacionárias (representadas por líderes como Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, Pétain) no seno da sociedade europeia foi responsável não só pela Segunda Guerra Mundial, mas pela retração desse espírito libertário que a arte, e a arquitetura, através do questionamento da figura e da forma, propunham-se a desenvolver. O mundo teve que esperar mais de 30 anos até que outros arquitetos e outros movimentos — os dos anos 1960 — renovassem o arcabouço projetivo e representacional da arquitetura voltando a usar métodos híbridos, ainda que com outras intenções.
Considerações finais
Desde o tempo de Leon Battista Alberti representar é uma condição mental; o desenho é uma forma instrumentalizada de pensar que requer imagens e imaginação por meio das quais se podem comunicar ideias (não necessariamente formas, ainda que se realizem por elas). A arquitetura nasce justamente dessa necessidade de comunicação. Sem essa imposição do elemento comunicacional entre diferentes atores tradicionais (cliente, arquiteto, construtor, usuário) que se instaura no século 15, os desenhos nunca teriam deixado o ambiente fechado, hermético da guilda. O sistema representacional composto a partir da planta e da elevação principal, recebendo depois o corte e, muito mais adiante, a perspectiva, aquilo que chamamos de sistema diédrico, é uma abstração que deve ser decodificada e demanda intermediação técnica, mas que se aperfeiçoou por séculos.
Assim, chama a atenção que um sistema tão resiliente, construído com tanto esforço social, cultural e profissional por gerações de arquitetos tenha, em poucos anos, incorporado alterações (híbridas) tão significativas, incitando um questionamento bastante profundo da forma de pensar a arquitetura. Como resultado das relações que arquitetos e artistas estabeleceram na Europa (na década de 1920), podemos inferir que alterações oriundas do campo das vanguardas artísticas (plásticas) foram responsáveis (e produziram) uma mudança conceitual de enorme significação cultural, não só para a prática da arquitetura, mas também para a teoria, como resulta dos textos de El Lissitzky, Mies ou Van Doesburg, por exemplo.
O resultado dessa alteração conceitual e comportamental que se orquestra no Ocidente, a partir da Europa, no início do século 20, mas que se alastra por todo o mundo, alcançando novas manifestações férteis e de grande personalidade e identidade, inclusive fora dos grandes centros de produção cultural (notadamente Estados Unidos e Europa), permitiu o surgimento de processos tão ricos e importantes como o brasileiro, que em meados do século foi certamente um dos mais empolgantes e promissores produtores de obras de arquitetura moderna no planeta (Paulo Mendes da Rocha chegou a afirmar: “acreditamos ser a arquitetura a mais importante contribuição brasileira para o conhecimento universal”). (15). Ainda que esses movimentos posteriores prescindiram dos procedimentos mais disruptivos que as vanguardas experimentaram nos anos 1920, não se pode negar que foi graças a eles que se consolidaram as bases mentais (teóricas e conceituais) da nova arquitetura.
O surgimento do Movimento Moderno, em todas as suas esferas, pode ser assumido como o lugar (e o tempo) em que aconteceu a ruptura com os meios tradicionais de representação, o que culminou não apenas na liberdade conceitual (a saída das academias e do ensino erudito), mas a desconstrução das barreiras entre os campos artísticos. O que na arquitetura significou a abertura para as experimentações visuais, como forma de demonstrar o “novo espírito da época” (embora essa época tenha ficado congelada talvez nos anos 1920).
Colagens e montagens fotográficas mostram a superação do plano do desenho (ou ao menos uma mediação entre esse e outros planos possíveis). “O duplo caráter da arte como autônoma e como fait social” (16) introduz o valor individual do objet trouvé no processo de construção da imagem. Uma imagem que como mass media quer comunicar. Arquitetura como imagem, como amálgama conceitual entre o mundo real (o dos objetos) e a própria representação arquitetônica (uma abstração), que utiliza as técnicas de reprodução industriais (fotografia) e artísticas (colagem) introduzindo uma materialidade inédita nas representações. Essa forma experimental de comunicação questionou os limites da arquitetura, permitindo (e estimulando) a aparição de um novo meio de reprodução, deixando uma semente fértil para futuras discussões (utópicas) que, amparadas na possibilidade de inventar o irrealizável, germinaram na metade do século 20, numa nova realidade política, social, cultural, econômica e sobretudo filosófica e estética.
As práticas vanguardistas dos anos 1960 — tanto as mudanças dentro do desenho (herdeiras dos experimentos de Van Doesburg) como as das representações híbridas — encontraram na preocupação com o futuro um tema que também estava em pauta nos anos 1920-1930, mas, dessa vez regado com questionamentos existenciais (Archigram, Superstudio, Archizoom, Friedman, Constant). Um caminho que leva aos trabalhos de outros visionários e teóricos que alteram a forma de entender a arquitetura e o urbanismo.
Não é exagero situar no uso da colagem, nas montagens fotográficas e na adoção de axonometrias desmaterializadas uma parte importante da origem dessa grande mudança que se evidencia na maneira como percebemos o mundo, como o construímos e como nos apropriamos dele. A colagem significou para os arquitetos uma alteração das regras compositivas; a fotomontagem, uma interiorização do mundo objetivo; e a desmaterialização, o constante questionamento da forma da arquitetura. Sucedeu a essas alterações uma mudança total no entendimento e na concepção da arquitetura que desde o Renascimento guia os arquitetos. Devemos isso ao cubismo, claro, mas também aos arquitetos dos anos 1920 que alteraram as normas do fazer, fazendo o que nunca se havia feito antes no campo da arquitetura, mas que existia no das artes. Como as representações nos apresentam o mundo, mas também nos permitem modificá-lo, as contaminações figurativas provenientes do mundo da arte, que a arquitetura experimentou no início do século 20, conseguiram não só movimentar o ciclo das invenções arquitetônicas, mas incentivá-lo, criando uma nova forma de entender e de fazer arquitetura através da imaginação.
notas
1
GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. São Paulo, Ática, 1996, p. 68. Grifo do original.
2
ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In Notas de Literatura I. São Paulo, Editora 34, 2003, p. 15.
3
CANALES, Giovanni Gutiérrez. Sobre el concepto de mímesis en la Antigua Grecia. Byzantion Nea Hellás, n. 35, Santiago de Chile, 2016, p. 99. Tradução dos autores.
4
ADORNO, Theodor W. Teoría estética. Barcelona, Orbis, 1983.
5
SHIELDS, Jennifer. A. E. Collage and Architecture. New York, Routledge, 2014, p. 2. Tradução dos autores.
6
WORRINGER, Wilhelm. Abstraktion und Einfühlung. 11th ed. München, R. Piper & Co., 1921, p. 51. Tradução dos autores.
7
ASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo, Cosac Naify, 2001, p. 38. Grifo dos autores.
8
RAMOS, Fernando Guillermo Vázquez. 1921 1/2: Van Doesburg e (é) o vento que varre a Bauhaus de Weimar nos anos 1920. In FUNDAÇÃO ATHOS BULCÃO (org.). Arte e arquitetura: balanço e novas direções. Brasília, Fundação Athos Bulcão/Editora UnB, v. 1. 2010, p. 59.
9
BOIS, Yve-Alain. A pintura como modelo. São Paulo, Martins Fontes, 2009, p. 141.
10
VAN DOESBURG, Theo. Aanteekeningen over monumentale kunst. De Stijl, v. 2, n. 1, Leiden, NL, nov. 1918, p. 11 <https://bit.ly/3wCINTK>. Tradução dos autores.
11
BOIS, Yve-Alain. Op. cit., p. 137.
12
STIERLI, Martino. Mies Montage. AA Files, n. 61, London, 2010, p. 61. Tradução dos autores <https://bit.ly/3GifV6z>.
13
BARR Jr. Alfred H. Cubism and Abstract Art. New York, The Museum of Modern Art, 1936.
14
STIERLI, Martino. Op. cit., p. 61. Tradução dos autores.
15
ROCHA, Paulo Mendes da. Depoimento. Acrópole, v. 29, n. 342, São Paulo, ago. 1967, p. 15 <https://bit.ly/3lyJMxU>.
16
ADORNO, Theodor W. Op. cit., p. 15. Tradução dos autores.
sobre os autores
Fernando Guillermo Vázquez Ramos é docente permanente e coordenador do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. Foi coordenador do Núcleo Docomomo São Paulo (2018-2020) e coeditor da revista eletrônica arq.urb (2010-2019). Doutor arquiteto (U.P. Madrid, 1992); magister (Inst. de Estética y Teoria de las Artes, Madrid, 1990); técnico em urbanismo (INAP, Madrid, 1988) e arquiteto (UNBA, 1979).
Cristina Silveira Melo é professora do Centro Universitário Eniac e mestre em Arquitetura e Urbanismo, pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu (2021). É arquiteta e urbanista (2016), designer de Interiores (2013) e designer gráfica (2010), todos pela Universidade Cidade de São Paulo.