A reviravolta imposta pela suspensão das atividades universitárias presenciais e, muito particularmente, das aulas de projeto em cursos de graduação em arquitetura e urbanismo, em função da pandemia do novo coronavírus, trouxe à tona duas questões historicamente sensíveis na área: 1. a relevância de se priorizar meios digitais como suporte do processo de projeto, e 2. a pertinência de se ensinar projeto de arquitetura e urbanismo à distância, via Internet. Este artigo visa contribuir para a discussão sobre a revisão do ensino e aprendizagem de projeto de arquitetura e urbanismo envolvendo meios digitais, renovada pela experiência de ensino remoto imposta pela pandemia de coronavírus, em 2020 e 2021. Nossa reflexão apoia-se em um tripé metodológico composto pelo exame dos virtual design studios, realizados no início dos anos 2000, os resultados da primeira fase da pesquisa Remote Design Studios, conduzida pelo Núcleo de Estudos de Habitares Interativos da Universidade de São Paulo — Nomads.usp (1), em julho de 2020 — portanto, ao final do primeiro semestre de aulas remotas na pandemia —, com docentes de cursos do Brasil e da América Latina, e a experiência acumulada na exploração de processos digitais de projeto em disciplinas e pesquisas, no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — IAU USP, nos últimos vinte anos.
Essas referências têm em comum uma atitude acolhedora em relação à integração do digital às disciplinas presenciais, que precisa ser considerada ao se planejar o futuro dessas disciplinas. Tal integração significaria a constituição de práticas didático-pedagógicas híbridas, apoiadas por meios analógicos e digitais e combinando ações presenciais e remotas. Em estudo na área da Educação há, pelo menos, quinze anos (2), o chamado blended learning corresponde a inúmeras definições, que variam em função das controvérsias sobre quais aspectos do processo devem ser remotos, quais devem ser presenciais, em que medida, de que maneira e por que razões. Conhecida no Brasil como ensino híbrido, essa modalidade vem se tornando também um produto comercial oferecido, principalmente, a instituições de ensino superior privadas, como uma possibilidade de reduzir seus custos e aumentar sua margem de lucro. Adotamos aqui a definição formulada pelas pesquisadoras Gilmara Barcelos e Silvia Batista, que designa
“uma modalidade de ensino formal na qual ocorrem atividades presenciais e online, de forma integrada e personalizada, com o objetivo de melhorar a construção de conhecimentos sobre o tema em estudo. Nessa proposta, o aluno deve ter alguma oportunidade de fazer escolhas (hora de estudar, tempo gasto no estudo, seleção e adaptação de materiais pesquisados) desenvolvendo assim sua autonomia no processo de ensino e aprendizagem com apoio das tecnologias digitais” (3).
Para além das questões técnicas e logísticas, interessam-nos especialmente dois objetivos propostos pelas autoras, quais sejam: ampliar as camadas informacionais de alunos e professores no processo de ensino e aprendizagem de projeto, e estimular os alunos a desenvolver sua autonomia, amparados pelos meios digitais. Ambos coincidem com objetivos da formação em projeto de arquitetura e urbanismo, que visa, em última instância: treinar futuros profissionais arquitetos a reunir, organizar e processar grandes quantidades de informação na elaboração de projetos, e também a desenvolver segurança e autonomia em processos de tomada de decisão.
De fato, o grande desafio que nos aguarda na volta às aulas presenciais é conseguir extrair lições do período em modo remoto, de maneira a não perdermos a intimidade com o digital adquirida nesses quatro semestres, a termos mais clareza sobre suas potencialidades e limites, e a combinarmos esses meios com desenvoltura em atividades presenciais e online. Mais do que respostas a essa questão, este artigo busca problematizar aspectos estimulantes e inibidores, identificados no atual estágio de experimentações definido pela pandemia, examinando simultaneamente desenvolvimentos passados e procurando antecipar o futuro.
Como chegamos até aqui
Em dezembro de 1994, quando a Portaria n. 1.770 introduziu nos currículos de todos os cursos brasileiros de Arquitetura e Urbanismo a disciplina Informática Aplicada à Arquitetura e Urbanismo, os professores das disciplinas de Projeto pertenciam, via de regra, a gerações de arquitetos que não apenas nunca haviam aprendido a projetar com computadores, mas também que reputavam o desenho à mão — técnico ou livre — como modo de expressão por excelência do raciocínio projetual. Tal condição pode ajudar a explicar por que o uso de meios computacionais em processos de projeto foi, desde então, sistematicamente desqualificado em ateliês, reuniões de docentes, congressos e publicações, sendo com frequência relegado a assunto da área tecnológica, raramente de projeto ou teoria e história.
Não é demais lembrar que este mesmo ano de 1994 abrigou, ainda, dois eventos importantes, na breve linha do tempo que enreda projeto de arquitetura e meios computacionais: o lançamento da versão 13 do programa AutoCAD, que contribuiu para popularizar seu uso em escritórios, e a ampliação do acesso público à Internet, até então dominado por militares e pesquisadores da Ciência da Computação (4). No Brasil dos anos seguintes, a crescente informatização das práticas profissionais continuou distanciando o cotidiano dos escritórios e a formação em projeto nos cursos de graduação. As razões desse distanciamento foram várias. Além da já mencionada resistência acadêmica a uma cultura digital nascente, citaremos o alto custo de dispositivos, redes e programas computacionais; a cultura tecnológica herdada do último governo militar que, em 1984, estabelecera a reserva de mercado de informática, freiando o desenvolvimento de novas tecnologias computacionais no país; a necessidade de as escolas contratarem técnicos em informática capazes de operar equipamentos e programas conjuntamente com alunos e professores; e, ainda, o fato de ser preciso esperar vários anos até que fossem formados os primeiros professores reunindo conhecimentos de projeto e informática.
Tampouco se pode esquecer da dificuldade, até 2002, de se ampliar o corpo de funcionários e requalificar o espaço físico das universidades públicas, durante os oito anos de um governo federal neoliberal que, desde 1994, procedeu a diversos cortes e bloqueios nas instituições federais e agências públicas de fomento à pesquisa, ao mesmo tempo em que tratou com condescendência as centenas de instituições privadas cujo surgimento ele estimulou (5). Em tais condições, como cumprir a exigência — expressa no artigo 5º da Portaria n. 1.770 — de instalação, em todas as escolas, de laboratórios de informática operados por técnicos especializados, iniciando, assim, a formação de novos quadros profissionais e acadêmicos capazes de integrar o conhecimento de informática às práticas, debates e reflexões críticas em Arquitetura e Urbanismo? Aquilo que deveria ter sido uma grande política pública nacional de adequação do ensino de arquitetura e urbanismo a novos patamares internacionais, frente a demandas emergentes, teria resultado em uma profunda transformação nas rotinas de projeto e no perfil dos novos profissionais.
As Diretrizes Curriculares Nacionais de 1994 foram revisadas doze anos mais tarde pela Resolução n. 6, de fevereiro de 2006, que elencou treze competências e habilidades esperadas do futuro arquiteto e urbanista. Uma delas era "o conhecimento dos instrumentais de informática para tratamento de informações e representação aplicada à arquitetura, ao urbanismo, ao paisagismo e ao planejamento urbano e regional” (6). Limitada à função de representação do projeto, a informática (aplicada à Arquitetura e Urbanismo) permanecia como um tópico à parte, não conectado ao domínio de processos de projeto. Isto significou, na prática, que infraestruturas de redes e equipamentos computacionais não seriam concebidos, nem dimensionados, levando em conta demandas de processos digitais de projeto. A introdução, no início dos anos 2010, do ensino e emprego de Building Information Modeling — BIM nas disciplinas de projeto, em alguns cursos, evidenciou o equívoco que a decisão de 2006 constituiu.
De fato, os processos de projeto em BIM pressupõem a colaboração entre profissionais trabalhando à distância, via Internet, sobre um mesmo modelo gráfico tridimensional e seus metadados (7). Este procedimento é cada vez mais comum em países do Norte Global, chegando a envolver simultaneamente profissionais de diferentes países e áreas do conhecimento em projetos de maior complexidade, como bem documentou Elza Miyasaka (8). No Brasil, já apontavam Marcelo Tramontano, Varlete Benevente e Sonia Marques os motivos para prepararmos nossos alunos para participar de processos digitais remotos de projeto são, ainda hoje, vários:
“Distâncias continentais, escassez de recursos, raras reuniões científicas, claras especificidades regionais são apenas algumas das muitas razões que, combinadas, justificam amplamente esforços para a organização de trabalhos conjuntos à distância” (9).
Foi exatamente essa habilidade de produzir “trabalhos conjuntos à distância” via meios digitais, que a suspensão das aulas presenciais provocada pela pandemia, em 2020, exigiu compulsoriamente de alunos, professores e profissionais de arquitetura e urbanismo. Mais do que empregar o digital como meio de representação, ao se verem obrigados a discutir projetos e produzir peças gráficas em tempo real e de forma colaborativa, como ocorre em encontros presenciais, muitos não encontraram, no repertório aprendido, mecanismos para rapidamente afrontar a nova situação.
Ateliês virtuais de projeto, um presságio
No artigo de 2007, Tramontano, Benevente e Marques referiam-se à realização dos primeiros ateliês virtuais de projeto no Brasil, ou Virtual Design Studios — VDS na literatura internacional. Assim eram chamadas as iniciativas de reunião de alunos e professores de diferentes instituições, geograficamente dispersos, visando o desenvolvimento colaborativo de um mesmo projeto de arquitetura e urbanismo, via Internet. A contribuição dos VDS foi inestimável do ponto de vista do aperfeiçoamento de processos digitais de ensino-aprendizagem de projeto. Aquele que parece ter sido o pioneiro foi realizado em 1993, e encontra-se amplamente descrito e analisado no livro Virtual Design Studio, de Jerzy Wojtowicz (10). No Brasil, o International Design Studio data de 2002, organizado pelo professor Osamu Ishiyama, da Waseda University, Tokyo, com grupos da Chung Yuan Christian University, em Taiwan, da Bauhaus Universität, em Weimar, da University of Oregon, em Eugene, e dois grupos da Universidade de São Paulo — um da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e o outro, do atual Instituto de Arquitetura e Urbanismo(11).
Naquele início de século, em que o acesso a informações sobre as várias culturas do país era ainda mais limitado do que atualmente, Tereza Araújo, Angela Rossi e José Kós viram na proposta coletiva e colaborativa dos VDS um meio de superar preconceitos e contribuir para a tecitura de unidades nacionais: "Fomentar o contato entre estudantes de diferentes culturas, credos e costumes", escreveram, "lhes permite descobrir diversos pontos de identidade com o outro" (12). Para garantir que estudantes de diferentes cursos e cidades efetivamente trabalhassem juntos via rede, a estratégia utilizada nos primeiros VDS brasileiros foi a criação de equipes mistas — compostas por alunos territorialmente dispersos —, avaliada da seguinte maneira por Tramontano, Benevente e Marques:
“Obviamente enriquecedora, tanto do ponto de vista do embate de idéias com pessoas de formação distinta, quanto pela necessidade de rigor e objetividade nas posições pessoais, a participação em equipes mistas é, no mínimo, um desafio para os alunos. Cada reunião de equipe demanda uma logística não existente em reuniões presenciais; a troca de esboços gráficos para a produção do projeto precisa ser otimizada e é preciso, sobretudo, uma grande disposição da parte de cada membro para compreender as dificuldades dos demais, em todos os níveis. Nesse sentido, equipes mistas podem funcionar como vetores de minimização de intolerâncias e disputas que, muitas vezes, atrapalham o trabalho de equipes presenciais” (13).
É interessante notar a atualidade desses comentários, que poderiam muito bem referir- se ao trabalho coletivo à distância de alunas e alunos de projeto, durante a pandemia de 2020–2021. Em especial, aqueles que ingressaram nos cursos de arquitetura e urbanismo nesses anos experimentaram pouco ou nenhum convívio presencial já a partir de março de 2020. Certamente, foi nos grupos de trabalho remoto que eles descobriram "pontos de identidade com o outro"(14), mas seu principal desafio foi iniciar sua formação em projeto de arquitetura via Internet. De fato, até o momento de redação deste artigo, nenhum desses alunos terá produzido, nem aprendido a produzir projetos de arquitetura em modo presencial, o que os torna a primeira geração de arquitetos brasileiros desenvolvendo projetos unicamente à distância.
O grande interesse do Nomads.usp(15) em explorar o uso de meios digitais em processos de projeto à distância estimulou a realização de diversos VDS nos anos 2000, em parceria com professores de outras universidades brasileiras, que posteriormente também organizaram novos ateliês virtuais (16), agindo como multiplicadores. O novo Governo Federal, empossado em 2003, retomou os investimentos nas universidades, promovendo a renovação de equipamentos, ampliação de quadros técnicos e melhoria nas redes e conexões. Ainda assim, um dos desafios dos ateliês virtuais era o modo como as instituições procuravam limitar o acesso dos alunos aos laboratórios de informática, sob diversos pretextos. Consolidava-se uma cultura em que o digital figurava como um acessório, desconectado do ensino de projeto. Afora as disciplinas optativas, nas quais os VDS se alojaram, raras eram as disciplinas regulares de projeto que priorizavam a exploração de meios digitais, o que certamente contribuiu para uma desimportância do desenvolvimento de redes e atualização de equipamentos computacionais nas escolas. O reflexo tardio dessa prática se fez sentir durante a atual pandemia, em instituições com instalações computacionais defasadas, alunos e professores sem equipamentos adequados, muitos ainda discutindo se computadores deveriam ou não ser usados em processos de projets (17).
Quase duas décadas mais tarde, algumas lições aprendidas nos VDS teriam sido de enorme valia para enfrentar demandas que se apresentaram na realização de aulas remotas durante a pandemia. Por exemplo, a compreensão de se estar participando de uma classe que transcende os limites físicos da escola ou deles prescinde. A súbita necessidade de se combinar a comunicação via Internet e o situar-se em localizações geográficas dispersas, que consistiam uma prerrogativa inicial dos VDS, pode ter dificultado a assimilação dessa "nova noção de classe, territorialmente dispersa, hierarquicamente relativizada, em que os limites físicos do ateliê [...] pouco significavam” (18) por alunos e professores, durante a pandemia.
Excetuadas poucas iniciativas isoladas, o formato VDS deixou gradativamente de atrair o interesse de professores e pesquisadores, possivelmente por demandar maior esforço para sua organização, realização e avaliação quando comparado ao ateliê presencial local. Dessa perspectiva, é uma surpresa a escolha da Asociación de Escuelas y Facultades de Arquitectura Públicas de América del Sur — Arquisur(19), de organizar, a partir de 2012, ateliês virtuais anuais envolvendo centenas de alunos e professores advindos de dezenas de escolas do continente e da Europa. De fato, o Taller Virtual en Red Arquisur (Ateliê Virtual em Rede Arquisur, em tradução livre) é, além de tudo, um locus de exploração de relações entre projeto de arquitetura e meios digitais, fundamentado na colaboração à distância entre alunos e professores de projeto. Seu website informa que, neste ateliê virtual, três processos se entrelaçam:
“El proceso de enseñanza-aprendizaje que transitan docentes y estudiantes de la región; el proceso vincular de construcción de conocimiento proyectual en clave colaborativa, y el proceso de diseño propio de cada grupo participante” (20).
Nos três casos, o computador é necessário tanto nas instâncias de comunicação interpessoal e troca de dados via Internet, quanto de desenvolvimento de projeto, simultaneamente. É certo que as condições tecnológicas se alteraram muito desde o início dos VDS até o Taller do Arquisur e as aulas remotas de projeto durante a pandemia. Além do evidente aumento da capacidade de processamento dos dispositivos, constituem uma enorme mudança as atuais possibilidades de videoconferência através de conexões de rede mais robustas e de aplicativos como Zoom, Google Meet e Microsoft Teams, por exemplo, e os meios para desenho colaborativo em tempo real, via aplicativos como Miro e Google Jamboard, entre outros. A combinação desses meios permite que a experiência das sessões presenciais de produção e orientação de projeto seja parcialmente recuperada, em especial no que se refere à comunicação interpessoal.
De outra natureza é a comunicação oferecida por programas computacionais de base BIM, que possibilitam a colaboração e comunicação entre integrantes de um mesmo grupo, no interior do aplicativo de projeto. Uma vez que o modelo digital e seus metadados são o principal suporte das informações compartilhadas pelos participantes, e que elas são acessadas via Internet, as disciplinas de projeto em que esses recursos já eram utilizados antes da pandemia puderam adequar-se mais rapidamente às limitações do modo remoto (21). No IAU USP, o emprego de programas BIM em disciplinas obrigatórias de projeto iniciou-se em 2010, estimulando os alunos a utilizar o maior número possível de recursos e ferramentas, especialmente o trabalho coletivo à distância, em worksets. Essa escolha demandou diversas alterações de rotinas, tanto didático-pedagógicas, quanto nos processos de projeto, contribuindo para a construção de uma cultura de desenvolvimento de projeto à distância. Ela visava formar profissionais abertos à colaboração entre escritórios e com colegas remotos, mas mostrou-se muito relevante e eficaz diante das condições de ensino e aprendizagem impostas pela pandemia.
Para onde ainda podemos ir
Um conjunto de lições e possíveis caminhos a percorrer nos tempos por vir emergem das práticas desenvolvidas antes e durante a pandemia. Às reflexões possibilitadas pelo resgate da experiência dos virtual design studios e de disciplinas de projeto presenciais, vêm somar-se as informações disponibilizadas por centenas de professoras e professores ao projeto Remote Design Studios — RDS, de 2020. Sem outra escolha a não ser comunicar-se com seus alunos e colegas via Internet — graficamente, oralmente, textualmente, gestualmente —, estes docentes se interessaram, muitos pela primeira vez, a refletir sobre como integrar o uso de meios digitais a processos de ensino e aprendizagem de projeto. Dois trabalhos anteriores(22) reúnem leituras detidas sobre os muitos resultados do projeto RDS, mas vamos aqui apenas buscar relacionar alguns deles com as questões discutidas neste artigo.
No que concerne ao uso de aplicativos computacionais para a produção de peças gráficas, comunicação e discussão de projetos à distância, priorizaram-se os aplicativos online e, preferencialmente, gratuitos. Aplicativos desenvolvidos inicialmente por demanda da práxis empresarial pré-pandêmica, alguns deles testados por pesquisadores do Nomads.usp (23), contribuíram para alterar tanto os modos de comunicação aluno-aluno e professor-aluno, quanto as próprias rotinas didáticas usuais do modelo presencial tradicional, uma vez que as disciplinas online demandam planejamento mais preciso e procedimentos mais rígidos do que as disciplinas presenciais. Aplicativos como Miro, Concept Board, Draw.Chat e programas de base BIM passaram a situar-se no centro do quotidiano das disciplinas, não apenas como suporte de intercâmbio de expressões gráficas, mas estimulando os alunos a desenvolver habilidades de síntese, organização da informação, conversação e colaboração. Dito de outro modo, tais habilidades, que, antes da pandemia, já compunham práticas vigentes no mundo profissional e empresarial, são agora também familiares a alunos — e professores — que acostumaram-se a reuniões de trabalho e processos de tomada de decisão à distância, mediados digitalmente.
O relatório final do RDS também mostrou que, ao iniciar o período de ensino remoto online, em março de 2020, a maioria das instituições representadas na pesquisa não procurou mapear as condições de trabalho dos alunos em suas casas, transferindo tacitamente aos professores esta responsabilidade (24). É verdade que, nos meses seguintes, sob pressões diversas, ações variadas de apoio institucional passaram a visar o bem-estar do corpo discente. Mas hoje, passados quase dois anos, não temos informação de instituições que tenham mostrado a mesma preocupação em relação aos seus docentes, e menos ainda que, visando apoiá-los, tenham revisto os termos de seus deveres e obrigações. Há, sim, informações sobre instituições de ensino dos estados de São Paulo(25), Goiás (26), Minas Gerais (27) e Distrito Federal (28) que, aproveitando-se da dispersão dos professores e da possibilidade de adotar o formato de ensino à distância conhecido como EAD, decidiram unilateralmente rescindir o contrato de uma parcela expressiva de seu corpo docente. Ações como estas contrastam com a riqueza da ampla experiência de ensino e aprendizagem desenvolvida, e evidenciam a urgência de se produzir documentos que a valorizem e sistematizem.
O oferecimento das aulas em modo remoto via Internet, durante um período tão longo, representa um imenso experimento e uma profunda ruptura em relação a processos anteriores de ensino e aprendizagem, de cuja dimensão muitos docentes e discentes — e não apenas aqueles de projeto de arquitetura e urbanismo — talvez ainda não tenham se dado totalmente conta. Antes da pandemia, muitos tinham pouquíssima familiaridade e interesse em relação ao uso de aplicativos computacionais, excetuados editores de texto e apresentações de slides. Subitamente, todos nos vimos obrigados a buscar maneiras de continuar nos comunicando, de continuar produzindo conhecimento coletivamente, muitas vezes sem apoio técnico algum. Entendemos que a essa inédita reinvenção pessoal e coletiva dos modos de ensinar e aprender deva corresponder uma ampla reflexão, na volta às atividades presenciais, em um processo de discussão que nos sirva a todos como um reinício, procurando compreender o que vivenciamos. Da mesma forma, acreditamos ser necessário um olhar ao futuro, a como então prosseguir, promovendo um debate sobre o que se depreende dessa longa, densa, involuntária, mas, sem dúvida, inovadora experiência.
Considerações finais
Questões como aquelas enunciadas no início desse artigo sobre o digital e o ensino de projeto, que, desde bem antes de 2020, já vinham sendo discutidas nos círculos restritos dessa sub-área, precisam ser problematizadas e tornadas pontos de uma pauta a ser enfrentada de forma sistemática e determinada. Procuramos demonstrar, neste trabalho, que o apoio a esta pauta não é opcional. Se, durante o confinamento, o meio acadêmico teve que valer-se extensivamente do digital para continuar formando profissionais, tanto mais o fizeram os escritórios para continuar trabalhando, e assim acentuando rotinas e práticas já em curso anteriormente, como vimos. Em grande medida, estamos de volta ao dilema de 1994, pois, por um lado, temos a opção de nos afastarmos novamente de demandas profissionais emergentes, em nome da mesma resistência aos meios digitais, repaginada. Mas também podemos considerar que nem tudo foram perdas neste ano e pouco, que os alunos e professores que passaram por essa experiência saem dela transformados, detentores de um conhecimento e de habilidades que seus antecessores não desenvolveram, e que muito do que aprendemos das práticas remotas pode vir a enriquecer nossa maneira de ensinar e aprender.
Na base dessas convicções, está a noção de ensino híbrido enunciada por Barcelos e Batista (29). Ela nos permite antever ricas combinações de atividades presenciais e remotas, com a contribuição à distância de pesquisadores e profissionais de instituições externas, não apenas da área de Arquitetura e Urbanismo e afins. Da mesma forma, ela nos impele a tentarmos explorar, uma vez mais, a integração de saberes dentro dos cursos, promovendo agora o trabalho colaborativo de professores de diferentes disciplinas e diferentes sub-áreas no interior dos processos de projeto, via aplicativos computacionais. Híbrido também seria acolhermos contribuições de atores não-acadêmicos, de grupos e parcelas da sociedade, servindo-nos do digital para aproximar futuros arquitetos urbanistas das comunidades e do corpo social que, em fim de contas, demandam e subvencionam sua formação, especialmente na universidade pública. De fato, talvez agora estejamos mais aptos a formular novos ateliês virtuais, em que a participação e colaboração de todos esses atores externos à universidade podem ocorrer no próprio processo de projeto, mesclando-os a arquitetos, estudantes e professores em equipes verdadeiramente híbridas e transdisciplinares. Essa compreensão ampliada do que pode vir a ser um ensino híbrido de projeto de arquitetura e urbanismo nos sugere, por fim, a revisão dos espaços de aprendizagem atuais, permitindo-nos entrever práticas intrinsecamente ligadas às dinâmicas urbanas, ao espaço público, à esfera pública. Pois, ao provocar um confinamento generalizado, a pandemia evidenciou a compreensão de que o locus per se e inegociável onde formar profissionais que visam entender a cidade para, em seguida, nela intervirem, deve ser — sempre — a própria cidade.
Precisamos também continuar o debate crítico e fundamentado sobre o entrelaçamento entre o digital, a arquitetura e o urbanismo. Em um momento em que mais e mais reuniões científicas da área incluem a Inteligência Artificial em seus temários, é urgente reconstruir discursos teóricos sobre processos digitais de projeto e seus produtos. A experiência das últimas décadas e, sobretudo, a inclusão do BIM e da modelagem paramétrica associada à fabricação digital no fazer arquitetônico, demonstraram que, para ser reconhecido pela área como um tema próprio a ela, processos de projeto auxiliados por tecnologias computacionais precisam ser objeto de crítica e debate para além dos círculos restritos e estanques de projeto, tecnologia ou representação. E neste tópico, seria necessário incluir uma reflexão igualmente profunda e cuidadosa sobre o lugar ocupado, na história da arquitetura no Brasil e, por consequência, em seu ensino, pelas arquiteturas de formas complexas, hoje produzidas via modelagem paramétrica e viabilizadas com apoio da fabricação digital. É possível encontrar diversos pontos de contato entre essas formas e várias arquiteturas brasileiras, tanto vernaculares quanto projetadas. Este estudo, ainda por ser feito, trará fundamentação e motivação à pesquisa e, certamente, ao ensino de projeto.
Esperamos que essas notas breves sejam úteis ao debate, e façam jus ao valor e à dimensão do imensurável trabalho de pesquisa produzido por todos os envolvidos em disciplinas de projeto de arquitetura e urbanismo ministradas de modo remoto via Internet, durante a pandemia do novo coronavírus. A eles, nossa admiração, nosso profundo respeito e sinceros agradecimentos.
notas
NE — Este artigo é uma versão revista do texto apresentado no 10º Seminário Internacional Projetar Lisboa, em novembro de 2021, no qual o autor foi membro do Comitê Científico.
1
Núcleo de Estudos de Habitares Interativos do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — Nomads.usp <https://bit.ly/3NjOX0d>.
2
GRAHAM, Charles R. Blended Learning Systems: Definition, Current Trends, and Future Directions. In BONK, Curtis J.; GRAHAM, Charles R. (org.). The Handbook of Blended Learning: Global Perspectives, Local Designs. San Francisco, Pfeiffer, 2006, p. 3–21.
3
BARCELOS, Gilmara Teixeira; BATISTA, Silvia Cristina Freitas. Ensino Híbrido: aspectos teóricos e análise de duas experiências pedagógicas com Sala de Aula Invertida. Renote, v. 17, n. 2, Porto Alegre, UFRGS, 2019, p. 60–75 <https://bit.ly/2Sg3lQR>. Grifo do autor.
4
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
5
Como notam Tatiana Lima e Mauro Cunha, baseados nos dados do Censo da Educação Superior dos anos entre 1995 e 2002: "No período considerado, o quantitativo de instituições privadas passou de 684 para 1.442, representando um crescimento de 110,8%. No que se refere ao setor público, as instituições passaram de 210 para 195, o que correspondeu a uma redução de –7,1%". LIMA, Tatiana; CUNHA, Mauro. A educação superior no Brasil contemporâneo (1995–2016): uma análise dos Governos de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Jornal de Políticas Educacionais, v. 14, n. 28, Curitiba, 2020 <https://bit.ly/3butJzJ>.
6
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n. 6, de 2 de fevereiro de 2006. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, 03 fev. 2006, p. 36–37.
7
SUCCAR, Bilal. Building Information Modeling Maturity Matrix. In ISIKDAG, Umit; UNDERWOOD, Jason (org.). Handbook of Research on Building Information Modeling and Construction Informatics: Concepts and Technologies. Hershey, IGI Global, 2010, p. 65–103 <https://bit.ly/2S8P3RK>.
8
MIYASAKA, Elza. Projeto para produção de superfícies complexas. Tese de doutorado. São Paulo, IAU USP, 2017.
9
TRAMONTANO, Marcelo; BENEVENTE, Varlete; MARQUES, Sonia. Habitar a cidade: Algumas lições de uma experiência de ensino. In DUARTE, Cristiane Rose de Siqueira; RHEINGANTZ, Paulo Afonso; AZEVEDO, Giselle Arteiro Nielsen; BRONSTEIN, Lais (org.). O lugar do projeto . No ensino e na pesquisa em arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2007, p. 287–294.
10
WOJTOWICZ, Jerzy (org.). Virtual Design Studio. Hong Kong, Hong Kong University Press, 1995. Este VDS envolveu grupos de cinco universidades — University of Hong Kong, University of Washington, Harvard University, Massachusetts Institute of Technology e University of British Columbia — sob a liderança de Jerzy Wojtowicz, da University of British Columbia. A partir de 1994, os VDS se multiplicaram e o tema passou a ser explorado em artigos apresentados em reuniões científicas da área, como eCAADe e Acadia e, posteriormente, Sigradi, Caadria, entre outros. Muitos destes trabalhos estão disponíveis em open access na base Cumincad <https://bit.ly/3Oq4cpU>.
11
TRAMONTANO, Marcelo; LOSCHIAVO SANTOS, Maria Cecília. International Design Studio 2002: exercício de projeto. Anais do 1º Seminário Projetar 2003, Natal, UFRN, 2003 <https://bit.ly/3uYcOJE>.
12
ARAUJO, Tereza Cristina Malveira de; ROSSI, Angela Maria Gabriella; KÓS, José Ripper. Pluralismo, educação e arquitetura. Anais do 8º SIGraDi, Porto Alegre, Unisinos, 2004, p. 437–438 <https://bit.ly/3xUS898>.
13
TRAMONTANO, Marcelo; BENEVENTE, Varlete; MARQUES, Sonia. Op. cit.
14
ARAUJO, Tereza Cristina Malveira de; ROSSI, Angela Maria Gabriella; KÓS, José Ripper. Op. cit., p. 437–438.
15
Os primeiros virtual design studios realizados no Brasil, mencionados no texto, foram iniciativas de pesquisas promovidas pelo Núcleo, conduzidas pelo autor do presente artigo.
16
KÓS, José Ripper; ARAUJO, Tereza C. Malveira; CABRAL FILHO, José S.; SANTOS, Eduardo Mascarenhas; TRAMONTANO, Marcelo. Low-tech remote collaborative design studios. Anais do 10th Caadria, New Delhi, 2005, p. 415–425 <https://bit.ly/3ikh4k5>; SANTOS, Eduardo Mascarenhas. A disciplina habitar a cidade e o conceito de ateliê virtual de projeto. Anais do SIGraDi, Porto Alegre, Unisinos, 2004, p. 439-440.
17
TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo. Remoto online, ensino de projeto. Lições de uma pandemia. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 247.05, Vitruvius, dez. 2020 <https://bit.ly/2RITzGB>.
18
TRAMONTANO, Marcelo; BENEVENTE, Varlete; MARQUES, Sonia. Op. cit.
19
Asociación de Escuelas y Facultades de Arquitectura Públicas de América del Sur — Arquisur. Criada em 1992, a Arquisur reunia, em 2020, vinte e oito escolas de arquitetura de seis países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
20
Taller Virtual en Red Arquisur + Cátedra Unesco “Ciudad y Proyecto”, edición 2020. Arquisur <https://bit.ly/3iyguzx>.
21
TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo. Remoto online, ensino de projeto. Lições de uma pandemia (op. cit.).
22
TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo Cazentini. Projeto Remote Design Studios: relatório final. V!RUS, n. 21, São Carlos, IAU USP, 2º sem., dez. 2020 <https://bit.ly/3u3YxxH>; TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo. Remoto online, ensino de projeto. Lições de uma pandemia (op. cit.).
23
TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo Cazentini. Projeto Remote Design Studios: relatório final (op. cit.).
24
TRAMONTANO, Marcelo; VALLEJO, Mario; SILVA FILHO, Maurício José da; MEDEIROS, Danilo. Remoto online, ensino de projeto. Lições de uma pandemia (op. cit.).
25
SinproSP recorre à Justiça contra demissão em massa na Unicsul. SinproSP, São Paulo, 01 jul. 2020 <https://bit.ly/3EdtjXs>.
26
Nota de repúdio. Demissão em massa no Sesc Cidadania. Sinpro Goiás, Goiânia <https://bit.ly/3jHMfFV>.
27
Sinpro Minas repudia demissões em massa de professores do Grupo Ânima. Sinpro Minas, Poços de Caldas <https://bit.ly/3pIozVR>.
28
Mais de 600 professores podem ser demitidos até o fim de janeiro. Sinproep, Brasília, 12 jan. 2021 <https://bit.ly/311QxBr>.
29
BARCELOS, Gilmara Teixeira; BATISTA, Silvia Cristina Freitas. Op. cit.
sobre o autor
Marcelo Tramontano é arquiteto, mestre, doutor e livre-docente em Arquitetura e Urbanismo, com pós-doutorado em Arquitetura e Meios Digitais pela Ecole Nationale Supérieure d'Architecture de Paris Malaquais. É professor associado do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, coordena o Núcleo de Estudos de Habitares Interativos — Nomads.usp e é editor-chefe da revista V!RUS.