Em 1986, quando venceu o concurso para o Museu Brasileiro da Escultura — Mube, Paulo Mendes da Rocha tinha quase sessenta anos. Formado na metade dos anos cinquenta, rapidamente havia se estabelecido como uma das figuras mais promissoras da arquitetura paulista; depois do Golpe Militar de 1964, e sobretudo da sua radicalização em 1969, terminou porém por ser relegado a segundo plano. A vitória do concurso do Mube, que não por acaso ocorreu imediatamente após o retorno do Brasil à democracia, assinalava portanto a volta em cena de Mendes da Rocha (que no mesmo ano foi também eleito presidente do Departamento Paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil — IAB SP); e, ainda mais, inaugurava o processo que o levaria a se impor como figura de primeira grandeza a nível nacional no início, e em seguida mundial. Isto, em todo caso, ocorreria posteriormente. No seu tempo, o Mube era uma espécie de novo começo de carreira. Era a ocasião para retomar o fio de um discurso interrompido — no ano anterior, além do mais, falecera o seu antigo mestre João Batista Vilanova Artigas — e portá-lo adiante.
Apesar do nome, o Mube não é um museu: não nasceu da necessidade de abrigar uma coleção de obras de arte (1). O concurso foi promovido pelos moradores de um elitista bairro jardim de São Paulo ao fim de uma história sobre a qual apenas agora se começa finalmente a jogar luz (2). Tudo havia começado nos anos setenta, quando habitantes do Jardim Europa, receosos de que o bairro perdesse o seu caráter residencial (3), se mobilizaram para impedir que no terreno no qual surgiria o Mube — então de propriedade do empresário Alexander Kliot — fosse construído um shopping center com projeto de Júlio Neves e no qual “seriam vendidos objetos de arte e roupas finas” (4). O empreendimento havia obtido a aprovação da prefeitura, mas os moradores, liderados por Marilisa Rathsam e em parceria com a Sociedade de Amigos do Jardim Europa e Paulistano — Sajep, iniciaram uma longa batalha em defesa do caráter residencial do bairro. Não é este o lugar para narrar a história completa, ainda repleta de lacunas. O certo porém é que em 1986, pouco antes do lançamento do concurso do qual Mendes da Rocha sairia vencedor, já se havia elaborado o projeto para um certo “Espaço Ecológico Escultura” a ser realizado precisamente entre a avenida Europa e a rua Alemanha, aprovado inclusive pelo presidente José Sarney. O autor era o arquiteto Sérgio Prado e, segundo Marilisa Rathsam, em 10 de novembro de 1986 o então prefeito Jânio Quadros chegou a lançar a sua pedra fundamental depois de ter desapropriado o terreno e de tê-lo declarado de utilidade pública. Mas os rumos da história estavam destinados a mudar rapidamente: pouco depois, em 5 de novembro, para o terreno já à disposição da Sociedade dos Amigos dos Museus — SAM seria lançado um concurso fechado, com prazo de entrega de apenas dez dias (5). Mendes da Rocha venceria. E mesmo com mil dificuldades (a obra duraria quase um decênio) o Mube seria construído.
Ainda que muito dessa história mereça ainda ser aprofundado, deve-se sublinhar que levar em consideração as razões pelas quais acabou-se por construir o Mube naquele terreno, como acabamos de fazer, pode ser útil para compreender algumas das suas peculiaridades. Para os habitantes do Jardim Europa era preferível ter como vizinho um espaço expositivo em vez de um centro de compras. Isso, entretanto, não significa que eles fossem movidos por um articulado projeto cultural. Até mesmo a destinação pretendida para a obra — que inicialmente deveria ser dedicada à ecologia e à escultura, com a primeira porém que já havia desaparecido no momento da inauguração, em 1995 — era vaga. Não devemos nos surpreender, então, se por muito tempo o Mube carecerá de uma programação adequada.
Na falta de uma coleção permanente, o Mube, em vez de um museu, é uma ampla sequência de espaços expositivos concebidos especificamente para a exibição de esculturas. Uma importante decisão de Mendes da Rocha sobre o modo ideal para expô-las foi evidente desde o primeiro momento: na análise do arquiteto — mas a indicação estava já contida no edital do concurso — o cenário ideal para a sua mostra era ao aberto; não faltarão espaços expositivos internos, mas serão complementares àqueles ao ar livre.
Para se compreender o projeto, deve-se partir da premissa que o interesse de Mendes da Rocha era, antes que a exibição de obras de arte, a realização de um modelo de assentamento urbano. Não por acaso, as principais características do Mube derivam de uma tomada de posição anterior ainda ao arquiteto pegar no lápis. Para Mendes da Rocha se tratava, em primeiro lugar, de estabelecer qual ideia de cidade negar-se a aderir com o projeto. Foram imediatamente descartadas as duas soluções mais óbvias: de um lado, o Mube como um volume ou uma série de volumes, uma massa plástica de forma mais ou menos livre; do outro, o Mube como um invólucro em volta de um pátio ou de uma série de pátios. Em ambos os casos o Mube se colocaria como um cheio entre os cheios da cidade; e além disso, no segundo caso, destinaria às esculturas um espaço separado.
Identificar o que Mendes da Rocha não queria com o seu projeto é decisivo para compreender as suas intenções. O Mube deveria ser um jardim a céu aberto, um espaço que se prestasse à exibição de esculturas, mas que pudesse ser também — e sobretudo — um lugar aberto para a cidade. Por isso era para se descartar a ideia do pátio. Mas o Mube não deveria nem mesmo se impor como uma presença imponente ou espetacular em si mesma. Aquilo a que Mendes da Rocha aspirava era, ao invés, um vazio, suscetível a ser preenchido em modo sempre diverso com esculturas casuais e visitantes casuais: o Mube, em resumo, como o teatro de imprevistos e imprevisíveis encontros entre arquitetura e escultura, entre escultura e pessoas, entre pessoas e arquitetura — mas também entre escultura e escultura e entre pessoa e pessoa. Para que isso ocorresse, naturalmente, o projeto deveria ser o mais permeável possível em relação ao entorno. Para Mendes da Rocha, aquele terreno de esquina de forma trapezoidal e com uma sensível inclinação deveria ser atravessável e desfrutável nos mais variados modos. Como era de se supor, o contratante — como veremos mais adiante — pensava diversamente.
Falamos do Mube como um vazio. A expressão ajuda, mas não é exata. A planta apresentada no concurso não mostra à primeira vista qualquer construção. E de fato em todo o lote não surge qualquer edifício propriamente dito. No entanto, um elemento de forte presença caracteriza o Mube: uma grande viga de cerca de sessenta metros de vão (6). De acordo com declarações do arquiteto, seria uma “pedra no céu”, inspirada em uma célebre pintura de René Magritte, Les idées claires. Não é claro o quanto se deve confiar em afirmações do tipo. Certo é que se trata de uma viga cujos cabos de protensão estão protegidos dentro de uma caixa de concreto moldado no local. O elemento mais revelador é o apoio em cada uma das duas extremidades, na medida em que mostra o interesse de Mendes da Rocha pela estrutura e a sua capacidade de fazer dos problemas construtivos questões de projeto: eis o arquiteto a introduzir uma fresta entre os apoios e a viga, de modo a destacar visualmente a “pedra no céu” em relação aos pilares, mas também a inserir juntas de neoprene, a fim de consentir — em um dos lados — o deslizamento horizontal da viga. Para que tal solução ganhasse eloquência faltava porém um toque, e este consistiu em fazer a fresta entre apoios e viga com a mesma altura dos macacos hidráulicos que, no decorrer dos anos, deveriam ser introduzidos para sustentar a viga durante a substituição do neoprene. Uma solução completamente coerente, esta, com um arquiteto que costumava repetir que se pode imaginar apenas aquilo que se sabe construir. Com a mesma combinação de senso prático e de gesto programático, além disso, Mendes da Rocha decidiu construir a viga ainda antes de movimentar o terreno, de modo a usar a seu favor o perfil do solo para nele apoiar o cimbramento da estrutura (7).
No conjunto da obra, a viga tem função essencial. É imprescindível do ponto de vista expositivo: é esta, no fundo, a dar escala às esculturas expostas no Mube, assim como a tornar comparável a sua grandeza com aquela das mansões unifamiliares do entorno (8). Como no caso do projeto para o concurso para a Biblioteca Pública (atual Biblioteca Parque Estadual) do Rio de Janeiro (1984), é o único elemento propriamente arquitetônico a emergir claramente acima do solo (9). É ela também a sombrear, ou seja a torna agradável o caminhar pelos áreas abertas, e sobretudo a criar espaço. Mas a viga é ainda e sobretudo uma demonstração das intenções do arquiteto: nos fornece, de fato, a chave para a leitura da intervenção como um todo.
A viga não é entendida como um ato de virtuosismo técnico, mas como uma exibição das virtudes da técnica (10); para Mendes da Rocha, são duas coisas completamente diversas. Através da viga, ele pretende exibir a potência intrínseca aos instrumentos de que dispõe e dos quais o Mube no seu conjunto, como estamos por ver, é uma demonstração. O erro mais grave diante desta obra seria de fato identificar na relação entre a viga e o solo a representação de uma contraposição. Mendes da Rocha não almeja de forma alguma aludir a uma harmonia obtida através do contraste ou do conflito entre elementos diferentes, como ao invés acontecia, por exemplo, nos planos de Le Corbusier para Rio de Janeiro e São Paulo. O Mube, pelo contrário, atua no estrito diálogo entre a horizontal perfeita da viga e aquela do terreno. No caso do Mube, entretanto, o terreno é um complexo sistema de planos, por sua vez resultantes de um vasto processo de redesenho do lote. Não por acaso, com exceção de uma rampa, à qual parece assinalada a tarefa de comunicar visualmente a fluidez dos espaços às diversas cotas do museu, os planos são todos horizontais, fruto — isto — de uma intensa obra de movimentação de um terreno que inicialmente apresentava uma dupla, ainda que irregular, inclinação (11). A viga e o solo, uma vez articulado em platôs, vêm assim a constituir não tanto elementos contrapostos, mas momentos diversos de um mesmo processo. Não temos a técnica e o artifício — isto é, a viga — contrastados à natureza — isto é, o solo —, mas duas formas diferentes de construção de uma realidade que não existia antes: também o solo é um artefato, não menos do que a viga. Aquilo que normalmente está agrupado em um edifício, em outros termos, aparece aqui desmontado e rearticulado em um novo conjunto: de um lado um elemento suspenso, do outro o solo remodelado, ambos atuando — afirmou certa vez Mendes da Rocha — para “modificar a terra em um modo inaugural”.
Isto posto, é impossível entender o Mube sem nos darmos conta de que na sua base não está uma ideia de arquitetura como algo dentro de — e menos ainda sobre a — um lote, mas de arquitetura como resultado de um trabalho de transformação do lote e do terreno ao fim do qual eles mesmos são arquitetura na sua forma suprema de reconfiguração do território e de nova geografia (12). O objetivo de Mendes da Rocha com o Mube era realizar concretamente o modelo de uma ideia de arquitetura sem dúvida muito peculiar. Arquitetura e edifício, para ele, não coincidem absolutamente. A arquitetura pode assumir a forma de um edifício, mas esta é apenas uma possibilidade entre tantas. Arquitetura é outra coisa: é uma transformação total da natureza, que obviamente pode ser realizada apenas um passo por vez, a partir de lugares específicos (13). E aqui chegamos ao frequentemente incompreendido caráter radical do Mube: é grande arquitetura sem que do chão emerja um verdadeiro e autêntico edifício (o fato de não possuir nenhuma fachada é apenas uma das tantas consequências de tal escolha) (14).
O efeito geral é de certo modo inquietante. Nas extremidades, o lote é amplamente destinado a jardim — aliás desenhado por Roberto Burle Marx — ou ocupado por um espelho d’água (15); e da rua, ou das bordas do terreno, a grande presença tectônica da viga se impõe como uma imagem icônica. Adentrando-se porém pelos platôs do Mube, acaba-se por mergulhar em uma paisagem artificial, na qual vão progressivamente desaparecendo quaisquer pontos de referência e na qual dominam as diversas nuances de cinza das paredes e da viga de concreto armado moldados no local e dos pavimentos de blocos de cimento. Desaparecem as pontas agudas, quase afiadas, do espelho d’água e ainda mais as dos muros do bar, que acolhem o visitante no acesso pela praça abaixo; desaparecem também os blocos de pedra da pavimentação no nível inferior. Penetra-se sempre mais em uma paisagem telúrica e sem ponto focal, feita de ligeiras mudanças de cotas e de leves diferenças cromáticas e de texturas, em meio as quais despontam, como espécies de hieróglifos, os traços nítidos e elegantes dos magníficos parapeitos (16).
Além dos espaços abertos que são a essência do projeto, o Mube — como dito — possui também ambientes expositivos internos. Ao se entrar no lote pela cota mais baixa, em certo momento pode-se escolher entre subir ao nível superior através de uma rampa ou de escadas, ou penetrar através de duas aberturas feitas nas paredes de concreto, descer um pouco e acessar os espaços expositivos internos; e se a escolha é pela segunda opção, acaba-se literalmente por embrenhar nas entranhas da terra, em um espaço escuro e dilatado, comprimido sob a praça superior do Mube, que atua como cobertura de tais ambientes (17). Estes, em um certo sentido, acabam sendo percebidos como escavados. O Mube no seu conjunto é, de resto, obra de movimentação do solo, e enquanto tal demonstração de que redesenhar a topografia — construir uma nova geografia — é arquitetura, e na sua forma mais pura (18).
Embarcar em uma abrangente transformação do solo terrestre a partir de um único lote é todavia um paradoxo: como transcender, de fato, os limites de um terreno urbano? A esta pergunta o projeto de Mendes da Rocha parece oferecer uma dupla resposta. A primeira consiste no caráter exemplar por ele assinalado ao projeto. A segunda é mais diretamente arquitetônica. O Mube representa para o arquiteto uma obra concreta realizada em um lugar específico, mas também e sobretudo o modelo de uma ideia de cidade e de convivência de valor universal (ou, para dizer com as suas próprias palavras, um “discurso”), e como tal transponível para outros lugares. Os principais planos em que é articulado o espaço externo do Mube são concebidos de maneira a estarem sempre nivelados com as ruas que delimitam o lote. Em outros termos, de qualquer ponto do perímetro que se entre na área expositiva encontra-se já no nível justo, ou seja em uma das diversas praças concebidas tanto para expor as esculturas quanto para passar o tempo. Essa solução visa claramente incentivar o uso dos espaços abertos e, assim fazendo, enfatiza-se a permeabilidade da obra ao resto da cidade. Entre uma e outra se pressupõe uma absoluta continuidade de fruição, o que entretanto corresponde a uma alteridade igualmente marcante: aquela de um lugar que, como vimos, aspira a acolher vivências dos espaços urbanos impossíveis de existir na cidade como ela é. O lote, em resumo, tem um tamanho limitado, mas a sua abertura o destina a expandir para a cidade o experimento arquitetônico e social nele realizado e, em um certo sentido, a acometê-la do impulso, do estímulo que nele é exercitado pontualmente.
É por isso que o Mube é muito mais do que um museu: não apenas e não tanto porque para Mendes da Rocha a questão da exposição de obras de arte nunca se apresentou como uma verdadeira e própria especificidade (19), mas também e sobretudo porque extrapola isto: enfrenta o tema da cidade na sua acepção de lugar da vida em comum, de polis. Não eram da mesma opinião os diretores do Mube, que decidiram gradeá-lo. Provavelmente temiam que os generosos espaços abertos se transformassem à noite em abrigo de moradores de rua. Nada indica, de toda forma, que tivessem em algum momento compartilhado aquela ideia de cidade inclusiva da qual o projeto era o veículo: a própria escolha por realizar um museu em vez de um centro comercial, como vimos, era fruto da ambição dos moradores do bairro de manter os seus privilégios mais do que do desejo de realizar um projeto cultural para a cidade. Certo é que, com o seu forçado isolamento em relação aos fluxos urbanos, o Mube imaginado por Mendes da Rocha perde força; contudo, é com os recursos dos contratantes que o arquiteto conseguiu criar — esta era a sua intenção desde o início — uma demonstração daquilo que poderia e deveria ser a cidade. A esse respeito, aliás, não deixa de chamar a atenção o fato do museu ter sido inaugurado no mesmo ano em que um arquiteto sagaz — mas de postura muito diversa daquela de Mendes da Rocha — como Rem Koolhaas enfatizava o fim da milenária história da cidade: “Modernity”, escrevia, “has destroyed the city as we know it” (20). Se enquadramos o Mube em tal contexto, fica evidente o seu caráter trágico, ainda mais do que utópico.
Com a sua concepção da arquitetura como um ato de transformação do território que objetiva propiciar a convivência humana, e com a demonstração dos êxitos capazes de ser obtidos com tal concepção, o Mube é um dos máximos feitos da carreira de Mendes da Rocha. Em torno a tais questões ele estava refletindo há tempos e teria continuado a fazê-lo até o fim. O projeto com o qual o Mube apresenta a analogia mais próxima é provavelmente aquele para o Pavilhão do Brasil para a Expo’70 de Osaka (21). Se o Mube regulariza um terreno em pendência, o Pavilhão ondulava artificialmente um plano. Em ambos os casos, contudo, o objetivo era o mesmo: obter, entre o terreno remodelado pela intervenção humana e a grande estrutura de concreto armado protendido da cobertura, um espaço para a convivência. Como em São Paulo, também em Osaka era a sombra da cobertura projetada sobre o terreno ondulado a definir tal espaço sem delimitá-lo. Para além da relação entre os dois projetos — atestada além do mais por um esboço do Mube, uma espécie de devaneio no qual a sustentar a grande viga é o inconfundível suporte em arcos cruzados do Pavilhão — o que o Mube nos permite perceber na sua forma mais paradigmática é a poética de Mendes da Rocha.
Da convivência com o pai, engenheiro de portos e de pontes, ele construiu uma concepção heróica das possibilidades inerentes à obra humana e da necessidade de delas valer-se transformando a “natureza intocada” (e a cidade abandonada aos piores desejos da especulação imobiliária) naquela que ele chamava de “cidade para todos”.
Homem de imaginação ardente, acreditava na necessidade de tê-la sob controle ao fazer arquitetura. Não se tratava, a seu ver, de exibir os próprios dotes ou as próprias preferências com obras espetaculares, mas de incidir o solo, de quando em quando, com a modéstia, a precisão e a inteligência do técnico (não ao acaso, do ponto de vista projetual ele “pensava em corte”: o tipo de representação adequado a quem pretende intervir no corpo do planeta para modificá-lo) e com um gesto tanto seguro quanto delicado. Certo, para embarcar em tal aventura era preciso saber pensar não apenas como um engenheiro, mas também como um intelectual. O que disso derivava era a possibilidade de elaborar um projeto como o Mube, raríssimo caso daquilo que deveria ser a arquitetura: um pensamento que é encarnado em uma obra e que não poderia ser dito diversamente de como o é naquela obra.
A inteira produção do arquiteto, a bem ver, é permeada pela preocupação que apontamos no Mube. Se, por exemplo, o tema de um notável projeto dos anos setenta como aquele do concurso para o Centro Pompidou (1971) consistia na proposição de espaços expositivos — pensados sobre planos levemente inclinados — em total continuidade com o espaço público urbano, uma obra dos anos noventa como a praça do Patriarca (1992–2002) atua como uma articulação visual entre as diversas escalas da metrópole e como o veículo de uma relação infraestrutural entre os diversos percursos e níveis.
Se os temas que atravessam estes e outros projetos de Mendes da Rocha podem ser comparados com aqueles afrontados no Mube, a diferenciar este último é o quanto longe ele avança no experimentar uma ideia de arquitetura coerente com as premissas e os objetivos aos quais almeja. O Mube nos fala, em primeiro lugar, de uma extraordinária habilidade de questionar o sentido não apenas e não tanto do museu (ou do espaço expositivo), mas da arquitetura. Demonstra, por exemplo, que o corrente, unânime vínculo entre arquitetura e edifício é devido, se não à preguiça mental, à incapacidade de se repensar radicalmente e coerentemente o sentido da profissão (22). O Mube está ali a nos dizer que, em certas condições, arquitetura pode ser não um objeto localizado em um lote, mas o próprio lote moldado na sua totalidade. Nos fala portanto que a rigor da lógica, a partir de outras premissas e com outros objetivos, talvez fosse possível pensar a arquitetura de outras maneiras, mas de modo igualmente radical e estimulante.
Se isso não representa um jogo com fim em si mesmo, todavia, é porque conscientemente está imerso em um quadro muito mais amplo. Mendes da Rocha era lúcido e honesto demais para ignorar que sozinha, restrita a si mesma, a arquitetura era e é uma prática de interesse duvidoso. A urgência da questão ecológica, o drama da segregação urbana, a angústia por uma humanidade que navega na rota do desastre, a menos que não mude de direção: este é o sangue que corre nas veias do Mube e, mais em geral, nos seus projetos. Como todo grande arquiteto, sabia que o único modo de falar de tais temas passa inevitavelmente pela própria arquitetura. Certo, com a condição de repensá-la radicalmente e de estar disposto a questionar muito daquilo que se pensa saber.
notas
NE — Uma versão menos completa deste texto foi publicada em inglês e em japonês com o título “The Mube, or Architecture as Construction of an Artificial Landscape”, em PISANI, Daniele; GOUVÊA, José Paulo (org.). Paulo Mendes da Rocha, número monográfico de A+U, n. 615, dez. 2021, p. 4-13. A tradução do artigo para o português foi feito por Evelise Grunow.
1
A mais ampla bibliografia a respeito do Mube se encontra em PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha: Complete Works. New York, Rizzoli International, 2014, p. 368–369. Entre os textos aqui mencionados, ver ao menos SPERLING, David. Museu Brasileiro da Escultura, utopia de um território contínuo. Arquitextos, São Paulo, ano 2, n. 018.02, Vitruvius, nov. 2001 <https://bit.ly/3cNF7qX>; GARCIA DEL MONTE, José María. De las posibilidades arquitectónicas del pretensado. Técnica y proyecto en la obra de Paulo Mendes da Rocha. Tese de doutorado. Madrid, Etsam, 2006, p. 116–117, 123–124, 138, 179–180. Das publicações saídas após a finalização de Paulo Mendes da Rocha: Complete Works, e portanto ausentes dos textos aqui indicados, ver ao menos RATHSAM, Marilisa. Museu Brasileiro da Escultura Marilisa Rathsam: da criação a 2008. São Paulo, Editora Bússola, 2013.
2
Me refiro à pesquisa que está sendo realizada por Fernando Delgado Páez, que na sua tese de doutorado pela PROARQ UFRJ procura reconstruir a história do terreno do Mube, sobretudo a partir do início dos anos setenta, e as vicissitudes que antecederam a escolha do projeto de Mendes da Rocha.
3
Como tantos outros bairros-jardim de São Paulo, o Jardim Europa foi criado para a elite paulista. Ver por exemplo FELDMAN, Sarah. Os bairros-jardim em São Paulo: tombamento, zoneamento e valores urbanos. Revista CPC, vol. 13, n. 26, out./dez. 2018, p. 94–115. As ações dos habitantes do Jardem Europa nos anos setenta e oitenta em relação ao terreno do Mube, portanto, não foram senão a tentativa de preservar uma condição privilegiada. Não por acaso, na metade dos anos oitenta, os moradores não se opuseram à transferência do Museu da Imagem e do Som — MIS para o terreno contíguo àquele do futuro Mube: uma instituição museológica não desvalorizaria os terrenos do entorno.
4
A informação se encontra nos jornais da época ou relativos a eventos de então. Ver por exemplo: Desapropriações originam pedido de intervenção. Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 abr. 1997; de onde provém os dados sobre a autoria do projeto e sobre o tipo de shopping center que se pretendia implantar no local.
5
Ao que se sabe — seria necessário verificar os documentos oficias da época, como por exemplo as atas do IAB SP — além de Mendes da Rocha foram convidados para participar do concurso: Ottoni Arquitetos; Croce Aflalo & Gasperini; Pedro Paulo de Melo Saraiva, José Carlos Ladovia e Miguel Juliano Junior; Siegbert Zanettini; Ubyrajara Gilioli e Cláudio Mattos; Paulo Bastos; Cândido Malta Campos Filho e Eduardo de Almeida; Marcos Acayaba; Clóvis Felipe Olga; Ruy Ohtake; Walter Makhohl e Cleber Machado; Newton Massafumi Yamato. Acredita-se que Lina Bo Bardi foi convidada mas se recusou a participar; também Oscar Niemeyer parece ter sido chamado, declinando porém o convite por falta de tempo. O júri era constituído por Fábio Penteado, João Walter Toscano, Salvador Candia, Jon Maitrejean e Décio Tozzi, além do secretário Municipal de Cultura (Jorge Yunes), de um representante do Ministério da Cultura (Fábio Magalhães) e de Marilisa Rathsam e Roberto Saruê, representantes respectivamente da SAM e da Sajep. Na elaboração do projeto, Mendes da Rocha foi acompanhado por Geni Takeuchi Sugai, Alexandre Delijaicov, Carlos Dantas Dias, Rogério Marcondes Machado, José Armênio de Brito Cruz, Vera Lúcia Domschke e Pedro Mendes da Rocha.
6
O cálculo estrutural da viga, e do Mube como um todo, é obra do engenheiro Mario Franco, com o qual ao longo dos anos Mendes da Rocha colaborou ocasionalmente, sobretudo na década de setenta, em projetos como Casa Dalton Macedo Suares e Casa Ignácio Gerber em Angra dos Reis (1973), Casa Arlindo Carvalho Pinto e Montepio Municipal de São Paulo (1974), MAC USP e Centro de convenções e manifestações culturais em Campos de Jordão (1975), Escola Jardim Fraternidade, Escola Vila Talarico e Instituto Cateano de Campos (1976), Casa Honoré Marie Thiollier Filho (1979), Edifício Aspen (1986) e — muito mais recentemente — Praça dos Museus da USP (2011).
7
Ver WALBE ORNSTEIN, Sheila Walbe; GOMES SERRA, Geraldo; ANDRADE ROMERO, Marcelo de. Avaliação do processo produtivo do edifício do Museu Brasileiro da Escultura (Mube), SP: Do projeto ao uso. São Paulo, FAU USP/Fapesp, 1990, p. 82. Nesta publicação se encontram também interessantes declarações do arquiteto e do engenheiro do Mube.
8
Ver MENDES DA ROCHA, Paulo. Cultura e natureza. PIÑÓN, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Romano Guerra, 2002, p. 28–29. Esta entrevista é repleta de esclarecimentos sobre as intenções do arquiteto com o Mube. O primeiro texto do arquiteto sobre o Mube é MENDES DA ROCHA, Paulo. Um museu no subsolo para reunir as esculturas da cidade. Projeto, n. 109, abr. 1988, p. 38–40.
9
No projeto para a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro foi a qualidade do entorno (o lote escolhido, entre a ampla avenida Presidente Vargas e a antiga rua da Alfândega, é central e vizinho à Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge) a sugerir a colocação do imenso volume dos depósitos do acervo de livros e das salas de leitura no subsolo, posição também favorável a uma climatização adequada; a solução retomava por sua vez a proposta para o concurso para o Beaubourg, exceto pelo fato de que na biblioteca do Rio quase nada despontaria acima do solo. Já ao projeto para a biblioteca do Rio remonta assim a exigência, central no Mube, de assinalar a existência de uma instituição importante através de uma presença capaz de aflorar em escala urbana — tema que retornará na reorganização da praça do Patriarca — mas sem impor-se sobre o entorno. E exatamente como no Mube, tal elemento era constituído na biblioteca por uma enorme viga, nesse caso em forma de “T”, com mais de cem metros de comprimento e disposta ao longo da avenida Presidente Vargas. A viga, em resumo, era entendida como a emergência monumental de uma intervenção que atuava sobre a relação com o contexto e a construção de lugares públicos e de percursos em um local nevrálgico da cidade.
10
Ver por exemplo SILVA TELLES, Sophia. A casa no Atlântico. AU, vol. 10, n. 60, jun./jul. 1995, p. 70; PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha (op. cit.), p. 175–190 em particular.
11
Algumas filmagens muito interessantes das movimentações de terra na obra do Mube se encontram em: FAU USP. Mube 2. Canteiro de obra e movimento da terra. YouTube, San Bruno, 19 dez. 2019 <https://bit.ly/3BqsYCn>. Imagens produzidas em 1992 sob coordenação acadêmica de Sheila Walbe Ornstein.
12
Esta leitura se encontra amplamente desenvolvida — a respeito do Mube — em PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha (op. cit.), p. 218–235 e — mais em geral sobre a obra do arquiteto — em PISANI, Daniele. Uma genealogia da imaginação de Paulo Mendes da Rocha. Lições de Veneza. Porto, Dafne, 2017. Acenos nesta direção se encontravam já em SILVA TELLES, Sophia. Museu da Escultura. AU, vol. 6, n. 32, 1990, p. 45; SEGAWA, Hugo. Arquitetura modelando a paisagem. Projeto, n. 183, mar, 1995, p. 38.
13
Se trata, como o arquiteto assinalou em outras oportunidades, de uma tarefa urgente no continente americano, com a sua opressiva herança colonial. Ver PISANI, Daniele. Inverter e desviar: o Novo Mundo por Paulo Mendes da Rocha. Contravento, n. 7, 2016, p. 24–51.
14
A partir de considerações como essa, aliás, é que se deveria começar a observar a obra de Mendes da Rocha, e a arquitetura brasileira no geral, em um contexto ao menos subcontinental, em vez de isolá-las como se fossem uma ilha dentro da outra. Nesse sentido, poderia ser esclarecedora a comparação do próprio Mube com obras como — por exemplo — o Museo Rufino Tamayo, projetado pelos arquitetos Abraham Zabludovsky e Teodoro González de León no Bosque de Chapultepec na Cidade do México e inaugurado em 1981, poucos anos antes do Mube. Não se trataria, naturalmente, de individuar genealogias ou “influências” de uma obra na outra; ou pelo menos, isto seria apenas uma pequena parte do trabalho. Seria suficiente, e necessário, dar os primeiros passos para uma consideração de ambos os museus lado a lado, questionando-se ao mesmo tempo sobre as bases das evidentes analogias entre obras tão inconfundíveis e peculiares, dentro de carreiras focadas em temas em boa parte diversos e pertencentes a culturas arquitetônicas elas também fortemente distintas (mas não por isso incomparáveis e de todo independentes) como a mexicana e a brasileira. Sobre o Museo Tamayo, conferir ao menos Museo Tamayo. México DF, Arquine/Consejo Nacional para la Cultura y las Artes/Dirección General de Publicaciones, 2015.
15
Não é esta a única — mas é a última — colaboração entre Mendes da Rocha e Burle Marx, que haviam trabalhado juntos ao menos ainda nos projetos para o restaurante na cobertura do Edifício Itália (1966), no Centro de convenções e manifestações culturais em Campos de Jordão (1975) e na reforma da Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema para sede do Centro Nacional de Engenharia Agrícola — Cenea (1976); como atesta uma anotação em um croquis de Mendes da Rocha, outra colaboração foi cogitada para desenvolver o projeto da Casa Severo Gomes, em Brasília (1975). Ver PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha (op. cit.), p. 368. No Mube a contribuição do paisagista não foi porém particularmente relevante, mesmo porque o museu, que inicialmente deveria ser dedicado tanto à ecologia quanto à escultura, acabou depois — como vimos — por ser dedicado apenas à segunda. A este propósito, falta igualmente acrescentar que, como está pesquisando Fernando Delgado Páez, a contribuição de Burle Marx foi gradualmente diminuindo uma vez eleito o projeto de Mendes da Rocha para o Mube.
16
A descrição do projeto feita pelo arquiteto no portfolio “Memorial. Concurso para provimento de cargo Professor Titular. Grupo de Disciplinas de Projeto de Edificações”, elaborado para a obtenção do título de professor titular na FAU USP em 1998, atesta que a coexistência de uma dimensão tectônica (a viga) e uma telúrica (as escavações) era totalmente consciente.
17
O conceito era talvez mais evidente nos primeiros esboços do Mube, nos quais a articulação dos espaços abertos em platôs era muito simplificada e o projeto se resumia a uma viga (com a sua sombra) e a um terreno em duas cotas, uma das quais como que dobrada sob a outra.
18
A grande exceção seria representada pelo anexo (destinado a abrigar oficinas, ateliês, um depósito climatizado do acervo e um pátio de carga e descarga das obras) que os dirigentes do museu pediram para Mendes da Rocha desenhar em 1990 e que talvez exatamente por isso — ou seja por ser uma adição a um complexo já de todo determinado — trai ao menos em parte os princípios do projeto. Deve-se considerar porém o fato que, estando posicionado no fundo do terreno, o anexo teria deixado intactos grande parte dos espaços abertos do Mube e preservado a relação destes com a avenida Europa e a rua Alemanha. Em tais termos, parece legítimo estabelecer uma relação entre a versão do Mube com o anexo e um projeto ao qual o arquiteto se dedicava nos mesmos anos, aquele do concurso para a biblioteca de Alexandria do Egito (1988): nela, as salas de leitura e o depósito do acervo de livros eram colocados em duas torres implantadas externamente à área do projeto, de modo a consentir a apropriação da península contígua, de resto deixada intocada. Tanto no Mube com o anexo quanto na biblioteca de Alexandria, grandes volumes aptos a responder ao programa, abrigando tudo aquilo que na biblioteca do Rio de Janeiro — como vimos — se propôs a colocar no subsolo, serviam portanto exatamente para deixar o mais livre possível e utilizável o terreno de que se dispunha.
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Ver PISANI, Daniele. O museu na obra de Paulo Mendes da Rocha. Projeto Design, n. 395, jan. 2013, p. 90–97.
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Entre as várias declarações de Rem Koolhaas neste sentido, mencionamos aqui duas, ambas extraídas de S, M, L, XL. A primeira provém do ensaio “Atlanta”: “A modernidade é um princípio radical. É destrutiva. Destruiu a cidade como a conhecíamos. Habitamos agora ‘o que costumava ser a cidade’”. A segunda, do ensaio “What Ever Happened to Urbanism?”: “A urbanização difusa modificou a própria condição urbana, tornando-a irreconhecível. ‘A’ cidade não existe mais. Enquanto o conceito de cidade é distorcido e tensionado como nunca antes, toda insistência em sua condição primordial — em termos de imagens, regras, fabricações — conduz irrevogavelmente, via nostalgia, à irrelevância”. Ver OFFICE FOR METROPOLITAN ARCHITECTURE; KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. New York, The Monacelli Press, 1995, p. 856; 963. A tradução do segundo texto, feita por Ana Luiza Nobre, foi tirada de KOOLHAAS, Rem. O que aconteceu com o urbanismo? Prumo, vol. 1, n. 1, 2015, p. 130–131.
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Isso foi observado muitas vezes pelo próprio arquiteto. Ver ao menos MENDES DA ROCHA, Paulo. Entre as águas e as pedras de Veneza. Entrevista por Dalma Thomaz. Revista D’Art, n. 7, set. 2000, p. 7.
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Repensar portanto não exclui, ao contrário pressupõe, o apelo — jamais literal — ao passado. E assim, por exemplo, o gesto atemporal de apoiar um elemento horizontal (as vezes chamado de “monolito”) sobre dois elementos verticais, encarnado pela viga do Mube, foi descrito tanto pelo arquiteto quanto pelo engenheiro enquanto referência a Stonehenge. Ver a esse respeito, entre outros, o depoimento do arquiteto em YÁZIGI SABBAG, Haifa. JKMF. Julio Kassoy e Mario Franco. Escritório tecnico. São Paulo, C4, 2007, p. 6.
sobre o autor
Daniele Pisani é arquiteto e urbanista (2000) e doutor (2006) em História de Arquitetura e Urbanismo pela Università IUAV di Venezia. Professor de História e Teoria da Arquitetura no Politecnico di Milano, na Itália. Publicou Paulo Mendes da Rocha: obra completa (Electa, 2013), Uma genealogia da imaginação de Paulo Mendes da Rocha: lições de Veneza (Dafne, 2017) e O Trianon do MAM ao Masp: arquitetura e política em São Paulo (1946–1968) (Editora 34, 2019).