Segundo Mary Del Priore (1) “o século 21 será das mulheres! [...] Elas estão em toda a parte, cada vez mais visíveis e atuantes. [...] Hoje trabalham, sustentam a família, vêm e vão, cuidam da alma e do corpo, ganham e gastam, amam e odeiam”. A autora sugere que antes da mulher se tornar esse ser “autônomo” e “independente” ela se inseria em um contexto sociocultural que atribuía a elas o matrimônio e o cuidado com os filhos como principal objetivo de vida.
As relações de poder se reproduziam na vivência marido e mulher, uma vez que a elas cabia o preparo de alimentos, os cuidados com a casa e os filhos e servir ao marido. Suas atividades domésticas eram, majoritariamente, centralizadas no ambiente da cozinha e o trabalho fora de casa e instrução eram consideradas tarefas essencialmente masculinas, pois “o padrão que se fixou no mundo ocidental-europeu, de Atenas até [...] o início do século 20, foi este: a cidade, é espaço masculino; a casa, é espaço feminino” (2).
Esse pensamento começa a ser modificado a partir da década de 1940, quando as mulheres são chamadas a integrar a força tarefa das fábricas e abandonam seus postos de trabalho — o lar, uma vez que os homens estavam envolvidos com atividades da Segunda Guerra Mundial (3). De certa forma, a casa, “ocupa o centro das atenções e atividades das mulheres brasileiras” (4); porém é possível perceber, através dos discursos da mídia da época, que questionamentos importantes sobre o status quo, começam a surgir, indicando outras formas de ser da mulher (5), ou seja, criou-se uma imagem da mulher forte e independente, que começava a perceber que poderia ir além do que se delimitava a ela.
Na década de 1950, no período pós-guerra, com o crescimento urbano e a industrialização sem precedentes, houve um aumento das possibilidades educacionais e profissionais para as mulheres, contudo, não houve grandes mudanças em relação a mentalidade da época que ainda via o trabalho feminino cercado de preconceitos e acreditava que era necessário que “as mulheres voltassem para os seus afazeres domésticos, deixando mais empregos para os homens” (6). Para a concretização desse feito, uma “nova imagem” da mulher foi construída pelas mídias, uma mulher domesticada, equipada, porém moderna, e a indústria e o design começaram a investir em produtos e artigos voltados para o consumo feminino e que as mantivessem em casa: “geladeiras, televisões, sabões que lavam mais branco e chocolates solúveis” (7), entre outros.
Essa nova imagem contribuiu para o fortalecimento de antigos estereótipos de gênero conforme citado anteriormente. Esses padrões serviram ainda para que ocorresse o fenômeno de feminização de algumas profissões, entre elas o magistério e a enfermagem, pois eram naturalmente educadoras e cuidadoras; e contribuiu para que seus salários fossem inferiores aos masculinos, uma vez que seu trabalho era considerado transitório, uma fatalidade (8).
Mais adiante, nas décadas de 1970 e 1980, as mulheres adentraram definitivamente no mercado de trabalho, tomaram pílula e “queimaram sutiãs” em prol de seus direitos (9), iniciando um caminho sem volta em busca de igualdade, embora ainda se percebem traços do passado no presente.
No âmbito das atividades domésticas, a cozinha recebe maior atenção, uma vez que a maioria dessas tarefas são executadas nesse ambiente, de modo que sua organização passou a ser um desafio não apenas para as mulheres, como também para os arquitetos e designers de ambientes.
Em vista disso, este artigo busca discutir a questão do design enquanto elemento influenciador a partir do desenvolvimento e disseminação de produtos e propagandas que reforçam estereótipos de gênero que aprisionam a mulher, em especial de classe média, no ambiente do lar por meio da idealização da imagem da “dona de casa moderna”. Estereótipos estes, que são percebidos na atualidade, uma vez que as mulheres se encontram à frente dos cuidados com o lar face a pandemia do Covid-19.
Dessa forma, foi realizada uma pesquisa bibliográfica acerca do gênero feminino e sua participação na esfera privada, abordado na seção 1; assim como, sobre a história da cozinha residencial no Brasil do pós-guerra, na seção 2, a fim de compreender melhor, de que forma o design pôde e pode ser utilizado como ferramenta influenciadora e estimuladora do consumo de itens residenciais na sociedade moderna.
A vida doméstica feminina: as décadas de 1940–1950
A contribuição para o fortalecimento da ideia de que a mulher deveria ser confinada à vida privada do lar é originária da cultural de dominação masculina, “enraizada no sistema patriarcal, [...] base da maior parte das sociedades humanas por séculos” (10).
Em função disso, sua educação era voltada aos cuidados com a casa e a família, fato este que mudaria apenas anos mais tarde, a partir das Reformas Pombalinas ocorridas no século 18, que permitiu sua admissão nas salas de aula. Toda e qualquer atividade por ela desenvolvida fora do ambiente doméstico era percebida como um risco ou fatalidade, mesmo aquele desenvolvido por jovens de camadas mais baixas nas fábricas, comércios ou escritórios que, embora indispensável para sua sobrevivência, poderia ameaçá-las como mulher. “O trabalho deveria ser exercido de modo a não as afastar da vida familiar, dos deveres domésticos, da alegria da maternidade, da pureza do lar” (11).
Por ser considerado provisório ou transitório, o trabalho feminino era admitido apenas para as moças solteiras ou viúvas, pois o sustento do lar cabia ao homem, o que contribuiu para que o salário feminino fosse inferior. Essa ideia perdurou durante todo o século 18, uma vez que o trabalho da mulher deveria ser invariavelmente doméstico.
Ainda nesse período, era muito comum a publicação de panfletos, revistas e livros que determinavam o comportamento feminino adequado, o que serviu como maneira de encorajar as mulheres a adotarem esse novo papel privado, visto como especificidade da elite. Eram estimuladas a ler livros de aperfeiçoamento, como a Bíblia e trabalhos históricos, o que também “provocou o aumento do número de mulheres cultas que passaram a olhar além dos confins da vida doméstica” (12).
No século 19, conforme os países se industrializaram, as mulheres passaram a trabalhar também fora de casa (nas fábricas), o que acabou por aumentar ainda mais o abismo entre as mulheres de classe média e as de classe trabalhadora, uma vez que, embora ambos os grupos fossem oprimidos, suas reivindicações eram completamente diferentes.
“Enquanto as mulheres da classe média, excluídas de uma função econômica nas novas indústrias, faziam campanha por uma melhor educação, pelo acesso a trabalhos significativos e pelo direito ao voto, as mulheres de classe trabalhadora que contribuíam para a renda da família trabalhando nas usinas e fábricas, eram menos ouvidas e estavam mais preocupadas em melhorar o pagamento e as condições de trabalho” (13).
No início do século 20, com a ascensão da classe média, ampliaram-se, sobretudo para mulheres das classes alta e média, as possibilidades de acesso à informação, lazer e consumo, educação superior e oportunidades profissionais, o que não correspondia as oportunidades oferecidas àquelas de classe inferior (14), que na década de 1940, foram estimuladas a trabalhar nas fábricas, com o intuito de suprir a demanda por mão de obra, face ao afastamento dos homens que se dedicavam às atividades da guerra (15).
Fato este que mudou na década de 1950 onde “os filmes de Hollywood, a literatura e as revistas voltadas ao público feminino [...] contribuíram de forma significativa para a constituição desta feminilidade voltada para o lar” (16).
“As mulheres passaram de repente a aparecer na imprensa por toda parte. Vestidas com os modelos mais modernos importados do estrangeiro, enfeitavam as capas das muitas revistas ilustradas que surgiam, e instantâneos delas distribuíam-se pelas páginas internas. Os anunciantes usavam seus corpos para vender produtos e exploravam suas ansiedades para aumentar as vendas. Verdadeiro derrame de literatura normativa definia seus novos “deveres” como esposas, mães e donas-de-casa e forneciam instruções detalhadas de como satisfazer às exigências que aumentavam progressivamente” (17).
A indústria passou então a investir no desenvolvimento de projetos de produtos, orientada pelo design, onde a proposta era uma “eletromodernização”, ou seja, “entre as maneiras de obter essa aceitação, o design, com sua capacidade de fazer com que as coisas pareçam diferentes do que são, foi de extrema importância” (18).
“O mito da criada mecânica dava às pessoas [...] a ilusão de um substituto pelo menos tão bom quanto uma criada de carne e osso. Ele permitia que as donas de casa acreditassem que o que estavam fazendo não era, de modo algum, trabalho. Na realidade, ninguém poderia acreditar totalmente que máquinas de lavar ou aspiradores de pó fossem substitutos de criadas, mas a ilusão ajudava a mitigar o constrangimento que as pessoas poderiam sentir em relação a seu status na sociedade e tornava possível que quase todas as donas de casa, de todas as classes, acreditassem que eram as sucessoras da senhora servida por criadas do lar do século 19” (19).
Sendo assim, a criação de eletrodomésticos e artigos voltados ao consumo feminino, que as mantivessem em casa, de modo a facilitar seus afazeres domésticos, foi associado a uma nova experiência — uma mulher dona de casa e ao mesmo tempo moderna.
Nos últimos quarenta anos do século 20, o país sofreu intensas e rápidas mudanças do ponto de vista social, cultural, econômico e político. Essas mudanças impactaram vários setores da sociedade, inclusive as questões da vida doméstica. “As transformações nas formas de habitar e suas imagens, nesse caso, são integrantes de intensos processos de modernização social e cultural” (20). Nesse sentido é possível observar uma mudança no modelo de lar, aquela casa que antes era o centro das famílias, passa a ocupar o papel de casa dormitório, principalmente nos grandes centros do país.
Em pleno século 21 as mulheres apresentam crescimento contínuo na População Economicamente Ativa — PEA, iniciado na década de 1940, e ainda assim sofrem com a discriminação no mercado de trabalho e normas culturais que persistem em atribuí-las tarefas domésticas e os cuidados com os filhos (21), especialmente àquelas pertencentes as classes inferiores. Este fator trata-se de uma herança de séculos passados, onde se percebe diferenças entre as oportunidades educacionais e laborais em todas as classes.
“As mulheres instruídas das famílias de elite ingressavam nas profissões; nas décadas de 1920 e 1930, o Brasil apresentava uma minoria pequena, mas notável de médicas, advogadas, escritoras e artistas mulheres, e até mesmo algumas engenheiras e cientistas. Um número maior de mulheres de classe média assumia novos cargos bastante bons de escritório [...]. O emprego de mulheres da classe operária, começou a ser encarado como um mal antinatural e lamentável (ainda que necessário), que punha em risco a estabilidade familiar e a ordem social e política. [...] Permaneceram segregadas nas indústrias, em cargos menos qualificados e mais mal pagos, graças à associação entre preconceitos sociais a respeito das aptidões ‘naturais’ das mulheres e dos papéis apropriados para elas, e às oportunidades educacionais limitadas aos interesses econômicos dos empregadores [...] e à legislação protetora [...]. O serviço doméstico continuava a proporcionar a outra grande fonte de emprego para as mulheres pobres da cidade” (22).
Embora, em pleno século 21 já se percebam diferenças quanto a aceitação das mulheres no mercado de trabalho, o cenário atual de enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus, que vivenciamos desde o início do ano de 2020 no Brasil, trouxe à tona as desigualdades de gênero, que tendem a ser acentuadas, uma vez que é comum que recaia sobre as mulheres, especialmente aquelas de classe mais baixa, o trabalho doméstico, em especial o cuidado com as crianças em função do fechamento das escolas. Novamente confinadas em casa, essas mulheres estão mais vulneráveis ao abuso doméstico e a outras formas de violência provocadas pelo estresse do confinamento (23).
Para melhor compreender a relação da mulher com o ambiente doméstico, se apresenta um breve levantamento histórico da cozinha residencial propondo uma reflexão acerca das transformações que o ambiente sofreu e de certa forma, defendendo-o como um palco de rupturas sociais.
Uma breve história da cozinha: da Cozinha de Frankfurt à cozinha moderna
A abolição da escravatura em 1888 influenciou a sociedade impactando em uma mudança na vida doméstica, uma vez que a alimentação, os cuidados com a limpeza e as necessidades básicas da família passaram a ser de responsabilidade das donas de casa; que sem a ajuda da população escrava, assumiram a dianteira dos serviços cotidianos (24).
Diante desse cenário, os serviços domésticos passaram a ser o principal problema de tempo e organização das mulheres; dessa maneira, o ambiente da cozinha ganhou especial atenção e preocupação, pois foi necessário otimizar o trabalho e sua organização tornou-se um desafio tanto das mulheres como dos arquitetos e projetistas (25).
De acordo com João Luiz Máximo da Silva (26), “as donas-de-casa tinham que se deslocar muito, principalmente no tocante ao preparo das refeições”, uma vez que as cozinhas eram localizadas nos fundos das residências, afinal como uma herança do período colonial, por questões de higiene, as cozinhas ficavam do lado de fora das casas, em função inclusive do uso de fogões à lenha ou à carvão (27). Desse modo, a necessidade em desenvolver estudos que buscassem a otimização das atividades realizadas no “espaço profissional” da mulher, tornou-se urgente, da mesma maneira como acontece nas indústrias para os homens, “se assemelhando a uma linha de produção” (28).
Desse modo, a cozinha foi o destaque de muitos estudos da organização doméstica no início do Movimento Moderno, que focaram a funcionalidade e a eficiência, afinal é o ambiente onde a maioria das tarefas se realiza e onde a mulher, dona de casa, passa a maior parte do tempo (29).
Assim sendo, tem-se a Cozinha de Frankfurt como o início dos debates arquitetônicos sobre organização das tarefas domésticas no lar, afinal, os modernistas se esforçavam para manter a vida cotidiana mais racional e dinâmica (30).
A Cozinha de Frankfurt
Na década de 1920, a cidade de Frankfurt era o epicentro do pensamento social e arquitetônico da Alemanha, sendo a única em que as construções eram projetadas e controladas por arquitetos modernistas. Nesse cenário, destaca-se a arquiteta racionalista Grete Schütte-Lihotzky (1897–2000), cujos estudos levaram à mudança do modo de pensar, projetar e utilizar as cozinhas: foi responsável pelo projeto que ficou conhecido como Cozinha de Frankfurt, marco do design de interiores de cozinhas no período modernista.
Na Cozinha de Frankfurt, projeto de 1926, Schütte-Lihotzky apostou na eficiência, na racionalidade e na funcionalidade, o que permitiu que seu projeto se tornasse a primeira cozinha equipada e servisse de protótipo para outras cozinhas internas. Seu conceito se baseava nos princípios do Scientific Management da FW Taylor — sistema que analisava a maneira mais eficiente de realizar tarefas em casa e no local de trabalho —, e buscava um espaço suficiente para a dona de casa trabalhar, sozinha, pela diminuição do deslocamento entre os equipamentos principais de uso, com sua disposição pensada sob a lógica da usabilidade (31).
Esse projeto foi encomendado por Ernst May (1886–1970) e a ideia era que fosse pensado para um ambiente de 3,50m x 1,90m, um espaço modesto, porém confortável, onde se pudessem resolver todas as atividades domésticas, apropriado para apartamentos de classe média, passível de ser reproduzido em todas as unidades.
Nesse layout, as superfícies dos móveis e bancadas eram lisas, sem molduras e detalhes, evitando a retenção de sujeira e facilitando a limpeza. Por não haver geladeiras elétricas na época, foi projetado um móvel baixo e aberto por fora para manter a comida fresca. Os recipientes para armazenamento de mantimentos foram desenvolvidos em metal e dispunham de uma alça, que facilitava o manuseio e permitia colocar o produto direto na panela (32).
O planejamento do espaço se baseou nas ideias do taylorismo e da engenharia da eficiência, onde prevalecia um estudo racional dos movimentos e deslocamentos para a realização das tarefas. O usuário se tornou centro do processo de modo a otimizar o tempo e os movimentos realizados.
Esse projeto se tornou um marco de projeto para o design de interiores no começo do século 20 e culminou na mudança do pensamento sobre o espaço da cozinha na Alemanha, influenciando o mundo todo, inclusive o Brasil, uma vez que a Europa era sinônimo de modernidade (33).
A cozinha brasileira do começo do século 20
Na virada do século 19 para 20, o Brasil passava por um momento de transição, uma vez que vivenciava o início da República e sofria com o êxodo rural, o que culminou num grande crescimento demográfico, favorecendo o aparecimento de novos modelos de moradias a fim de racionalizar os espaços e acomodar todos os emigrantes oriundos de classes sociais diferentes (34).
No começo do século 20, as cozinhas, mesmo aquelas das residências mais abastadas, ainda seguiam os preceitos coloniais — localizadas no fundo das residências, sujas pelo uso do fogão à lenha na maioria das casas e pelo uso do fogão à carvão nas mais prósperas; a luz natural e a ventilação eram preocupações constantes nesses ambientes e os primeiros modelos de fogão a gás surgiriam apenas anos mais tarde, em 1935, produzidos pela empresa Dako (35).
Em 1938, o arquiteto Henrique Mindlin (1911–1971) apresentou um estudo que propunha um formato organizacional da cozinha, que envolvia três setores, com o objetivo de propor funcionalidade e praticidade ao espaço: a cozinha racional.
Entre as décadas de 1940–1950, com o surgimento dos primeiros arranha-céus, a cidade assiste à passagem do modelo de casa compacta unifamiliar para os primeiros projetos de apartamento como forma corriqueira de alojamento, o que significava o início de uma nova etapa dos modelos habitacionais, uma nova tradição na forma de viver, introduzida pela cultura moderna (36).
A verticalização foi um dos aspectos mais marcantes do planejamento urbano dos grandes centros, causando significativo impacto no uso e apropriação do espaço (37), o que propiciou o surgimento de novos ambientes, como a kitchenette — pequena cozinha, geralmente integrada à sala de jantar, que modificou o conceito de separação e isolamento do espaço.
Esse novo layout favorecia a aproximação da mulher com a família durante a execução de tarefas domésticas, uma vez que facilitava o seu acesso e diminuía o esforço exercido, pois não seriam mais necessários grandes deslocamentos para a execução de tarefas. Entretanto, houve a demanda por um embelezamento desse novo ambiente, que agora ficava exposto a área social da casa.
Desse modo, os modernistas propuseram novos modelos para cozinhas residenciais, o que culminou em uma mudança dos ambientes nas plantas de apartamentos modernistas: a cozinha moderna e racional (38).
A cozinha do pós-guerra
Enquanto na década de 1940 as mulheres foram estimuladas a trabalhar em fábricas, sobretudo as de classe baixa, face ao afastamento dos homens que se dedicavam às atividades da guerra; na década de 1950 ocorreu justamente o contrário, pois os empregos deveriam ser devolvidos aos homens que retornavam da guerra, e às mulheres cabia a retomada dos afazeres domésticos em uma tentativa “de redomesticação feminina [...] reafirmando o velho princípio machista: lugar de mulher é na cozinha” (39).
No rastro da mulher norte-americana, fortemente influenciada pelo “american way of life”, as mídias da década de 1950 construíram a imagem da mulher dependente, que voltava para casa, assumindo atividades domésticas, agora munidas de equipamentos elétricos como geladeira, fogão a gás, liquidificador, entre outros, projetados especificamente para o consumo feminino, muitas vezes frívolo, e que não tinham apenas a função de poupar-lhes o esforço, mas também de dar trabalho às mulheres que agora assumiam o papel de “rainha do lar” e também cuidavam da decoração do espaço com acessórios e armários coloridos (40).
O ponto forte do projeto dos ambientes era a integração da cozinha com o corpo da casa que, geralmente, era dividido por uma bancada mais alta onde eram realizadas as refeições rápidas como café da manhã. Esse compartilhamento, além de aproximar a família, permitia a mulher, mãe e esposa, acompanhar o dia a dia dos filhos. Seu modelo também permitia várias configurações que se ajustavam ao espaço (41).
Na virada da década de 1950 para 1960, os projetos de cozinha no Brasil seguiam uma composição triangular, marcado pela conexão dos três elementos principais de trabalho: geladeira, fogão e pia; e respondia a questões ergonômicas pelos princípios de otimização e racionalização das tarefas, conforme propunha a Cozinha de Frankfurt (42).
Nesse período, além dos armários coloridos e das cortinas estampadas, usava-se muito a azulejaria como revestimento decorativo para as paredes, estampados com motivos florais ou desenhos de utensílios de cozinha e alimentos, tais como bules, frutas e legumes, herança portuguesa que permaneceu até meados dos anos 1980 (43).
Ainda na década de 1960 surge nos Estados Unidos e na Europa, um novo modelo de moradia, o loft, que consistia no aproveitamento de velhos edifícios comerciais. Em sua maioria, esses lugares com amplo espaço e pé-direito alto favoreciam a criação de ambientes totalmente integrados, divididos apenas por mobiliário estrategicamente posicionado. Em alguns casos, por possuírem pé-direito duplo, propunha-se a construção de mezaninos que acomodavam os dormitórios, em sua parte superior, e as cozinhas, geralmente no modelo kitchenette, no espaço abaixo do mezanino, que eram totalmente integradas à sala e sua ambientação deveria valorizar o espaço como um todo.
Esses projetos inusitados originaram o estilo industrial de decoração, que, em conjunto com esse modelo de cozinha, foram difundidos pelo mundo, adaptados às realidades de cada localidade, e chegaram ao Brasil apenas na década de 1970, com o nome de cozinha americana (44).
Nos grandes centros do país havia um intenso crescimento populacional, o que aumentou a procura por imóveis, o que favoreceu a diminuição do tamanho das residências e o aumento do preço do metro quadrado, de modo que as novas moradias se adaptaram muito bem ao conceito de cozinha americana (45).
Com a entrada da mulher no mercado de trabalho e seu novo papel na sociedade, pelo desempenho de uma dupla jornada, dividida entre afazeres domésticos e profissionais, houve a diminuição das ações no espaço doméstico, que agora deveriam ser pensadas de maneira prática e funcional a fim de reduzir o tempo gasto em sua execução (46).
Na virada do século 20 ao 21 a conveniência passou a ser pré-requisito no dia a dia das pessoas, principalmente nos grandes centros: alimentos congelados, fast foods e delivery, culminaram no distanciamento entre as pessoas e suas cozinhas. Os eletrodomésticos assumiram um papel essencial não só pela função, mas também por sua estética, projetados com identidade e conceito para serem exibidos, de modo que ficou evidente que houve transformações quanto à cozinha e seu uso (47).
Nas residências de famílias menos abastadas, a maioria das atividades cotidianas era realizada no ambiente da cozinha, assim como na classe média as pessoas costumam se reunir ao redor do fogão conversando durante o preparo das refeições. Dessa forma, na década de 1990, a cozinha se torna também um espaço de socialização (48). No caso das residências de classe mais alta, a cozinha permaneceu distante do convívio da casa, entretanto, com a difusão da gastronomia, o que gourmetizou a sociedade, houve um crescimento dos espaços gourmet nas residências, o que favoreceu a entrada do homem na cozinha na virada do século 20 para 21 (49). A “alta cozinha” e a invenção eram consideradas características masculinas e, como toda arte “superior” deve ser exposta, supervalorizando o fazer masculino em detrimento das mulheres (50).
A partir dos anos 2000, percebe-se o surgimento das varandas gourmet ou espaço gourmet, uma espécie de minicozinhas de luxo, com acessórios de última geração e, na maioria das vezes, “pilotado” por homens. Essa nova cultura acabou por disseminar o gosto por cozinhar, a partir do lançamento de programas culinários, o que favoreceu o redescobrimento do prazer da gastronomia pelas mulheres, sem obrigação imposta, em meio a esse novo ambiente envolto de socialização e convívio (51).
Considerações finais
Em meio às mudanças culturais e sociais sofridas em torno da Segunda Guerra Mundial, um dos maiores impactos sofridos foi em relação à mulher; aquela que assistiu sua vida mudar de mulher submissa à mulher trabalhadora. Diante dessa nova realidade a guerra apresentou à mulher a possibilidade de sentir um pouco de liberdade e entender que a ela cabiam outros papéis que não somente o de “dona do lar”. Porém, essa liberdade lhe foi tomada quando conveniente, como se comprova no final do conflito, quando foram estimuladas a retornarem aos seus principais “postos de trabalho” — o lar.
A partir dessa análise, é possível compreender a maneira como a mulher foi influenciada no período industrial pela mídia e pela sociedade, tendo como palco principal o ambiente da cozinha, ou seja, a mulher era bombardeada por uma gama de propagandas, programas, manuais e anúncios que estimulavam o seu consumo e a representavam como a dona de casa perfeita, cercada pela família e por seus modernos equipamentos e utensílios domésticos, como se comprova em campanhas publicitárias da época.
De certa forma, o design também contribuiu para este fato, afinal também foi responsável pela disseminação da nova imagem da dona de casa moderna e contribuiu para a “eletromodernização” do ambiente da cozinha, a partir do desenvolvimento de produtos e artigos voltados ao consumo estereotipado feminino, o que impactou diretamente no seu comportamento, moldando-o.
Mas, ainda assim, por que a cozinha? Responder a essa questão é importante para entender a conclusão que aqui resultou. A importância desse ambiente é nítida, pois ficou claro que a cozinha é um símbolo de muitas rupturas sociais que vão desde a reorganização dos espaços de trabalho, passa pela reestruturação no modo de pensar o projeto e o ambiente, esbarra nas questões de gênero, na história do design e termina refletindo a transformação comportamental das sociedades.
Hoje fica ainda mais claro o papel da cozinha no contexto social e na vida das mulheres, uma vez que, mediante o cenário da pandemia da Covid-19, surge novamente uma forte relação com esse ambiente. Este, que já passava por transformações, assume agora o verdadeiro status de coração da casa, um espaço capaz de propagar afeto, afinal o ato de alimentar o outro é, de fato, uma demonstração de amor.
Entretanto, face a esse novo cenário a responsabilidade da maior parte das atividades domésticas, senão de todas, recai sobre as mulheres em parte devido à antigas construções sociais que se associam a estereótipos de gênero. Essas mesmas mulheres continuam acumulando uma dupla jornada de trabalho, especialmente aquelas de classe mais baixa, que desenvolvem trabalho remoto em casa e possuem filhos em idade escolar, pois os dois ambientes confundem-se e misturam-se sobrecarregando-as física e mentalmente, uma vez que agora devem trabalhar enquanto cuidam da casa e auxiliam os filhos simultaneamente.
notas
1
DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher: amor; sexo, casamento e trabalho em mais de duzentos anos de história. São Paulo, Planeta, 2014, p. 5.
2
RISÉRIO, Antonio. Mulher, casa e cidade. São Paulo, Editora 34, 2015, p. 67.
3
CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo, Blücher, 2008.
4
CARVALHO E SILVA, Joana Mello de. Gênero e domesticidade pelas colunas femininas de Clarice Lispector. In NASCIMENTO, Flávia Brito do; CARVALHO E SILVA, Joana Mello de; LIRA, José Tavares Correia de; RUBINO, Silvana Barbosa (org.). Domesticidade, gênero e cultura material. São Paulo, Edusp, 2017, p. 345.
5
Idem. Ibidem.
6
CARDOSO, Rafael. Op. cit., p. 162.
7
DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 72.
8
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 1ª edição. São Paulo, Contexto, 2018.
9
DEL PRIORE, Mary. Op. cit.
10
DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 14.
11
LOURO, GUACIRA LOPES. Op. cit., p. 453.
12
MCCANN, Hannah (org.). O livro do feminismo. Rio de Janeiro, Globo Livros, 2019, p. 24–25.
13
Idem, ibidem, p. 36.
14
BESSE. Susan K. Modernizando a desigualdade: Reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914–1940. São Paul, Edusp,1999, p. 8.
15
CARDOSO, Rafael. Op. cit., p. 162.
16
PEDRO, Joana Maria; SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Práticas de consumo e identidade de gênero: representações da dona de casa moderna na revista Casa & Jardim. ArtCultura, v. 11, n. 19, Uberlândia, jul./dez. 2009, p. 171.
17
BESSE. Susan K. Op. cit., p. 1.
18
FORTY, Adrian. Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 20.
19
FORTY, Adrian. Op. cit., p. 289.
20
BALLET, Anahi. A “casa jovem”: imagens da modernização do lar. In In NASCIMENTO, Flávia Brito do; CARVALHO E SILVA, Joana Mello de; LIRA, José Tavares Correia de; RUBINO, Silvana Barbosa (org.). Op. cit., p. 393.
21
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Pesquisa mostra tendência de crescimento na participação do brasileiro no mercado de trabalho. Ipea, Brasília, 22 mai. 2019 <https://bit.ly/3oIThfQ>.
22
BESSE. Susan K. Op. cit., p. 9.
23
CAETANO, Rodrigo. Covid-19: dupla jornada aumenta vulnerabilidade das mulheres, diz ONU. Exame, São Paulo, 23 mar. 2020 <https://bit.ly/3bkz0Kn>.
24
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. A ambientação da cozinha mineira: as interfaces entre a memória, história e o design. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, ED UEMG, 2020.
25
Idem, ibidem.
26
SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha Modelo: o impacto do gás e da eletricidade na cozinha paulistana (1870–1930). São Paulo, Edusp, 2008, p. 106.
27
VERÍSSIMO, Francisco Salvador et. al. 500 anos da casa do Brasil: as transformações da arquitetura e da utilização do espaço de moradia. São Paulo, Ediouro, 1999, p. 109.
28
RISÉRIO, Antonio. Op. cit., p. 130.
29
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 84.
30
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930–60). Rio de Janeiro, Zahar, 2006, p. 10.
31
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 86.
32
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 88.
33
LEMOS, Carlos. A casa brasileira. São Paulo, Contexto, 1989.
34
SILVA, João Luiz Máximo da. Op. cit., p. 97.
35
FARIAS, Claudio Lammas de; AYROSA, Eduardo, CARVALHO, Gabriela, ABRAMOVITZ, José; FRAIHA, Silvia. Eletrodomésticos: origens, história e design no Brasil. Rio de Janeiro, Fraiha, 2006.
36
PÉREZ-DUARTE FERNÁNDEZ, Alejandro; SOUZA, Talita Silvia. Niemeyer e o modelo do semi-duplex. Uma inovadora proposta habitacional na década dos cinquentas. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 196.05, Vitruvius, set. 2016 <https://bit.ly/3BpikMf>.
37
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 100.
38
HOMEM, M. C. Op. cit., p. 126.
39
RISÉRIO, Antonio. p. 129.
40
CARDOSO, Rafael. Op. cit., p. 163.
41
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 103–104.
42
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit., p. 105.
43
MACHADO, Maria Lucia. Interiores do Brasil: a influência portuguesa no espaço doméstico. São Paulo, Olhares, 2011.
44
AVELLAR, Luciana De Castro Maeda. Op. cit.
45
Idem, ibidem.
46
MACHADO, Maria Lucia. Op. cit.
47
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit.
48
MACHADO, Maria Lucia. Op. cit.
49
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit.
50
RISÉRIO, Antonio. Op. cit., p. 150.
51
AVELLAR, Luciana de Castro Maeda. Op. cit.
sobre as autoras
Larissa Albuquerque de Alencar é graduada em Desenho Industrial (Ufam, 2010), especialista em Engenharia de Produção (UEA, 2010) e mestre em Ciências Florestais e Ambientais (Ufam, 2013). Atualmente é doutoranda do curso de Design da UEMG, onde pesquisa sobre educação pública no ensino superior de design no Brasil e suas relações com a mulher enquanto docentes.
Luciana de Castro Maeda Avellar é doutoranda em Design (2020_), mestre em Design (2020) e graduada em Design de Ambientes (2002) pela UEMG. Bolsista Capes do PPGD UEMG nas linhas de pesquisa história do design, psicologia ambiental, neurociência e memória.
Marcelina das Graças de Almeida é historiadora (1989), mestre (1993) e doutora (2007) pela UFMG. Docente nos cursos de graduação e pós-graduação da Escola de Design UEMG.