No campo da salvaguarda cultural, as atribuições da gestão da conservação do patrimônio adquiriu proporções complexas quando, a partir dos anos de 1960, os conjuntos históricos e arquitetônicos passaram a ser objetos de proteção federal por meio do tombamento. Não eram apenas os desafios da preservação dos monumentos isolados, em pedra e cal, que estavam na pauta da gestão, mas as porções singulares de cidades, vivas e dinâmicas, que carregam consigo especificidades sociais, econômicas e culturais, importantes de serem salvaguardadas como um sistema de relações. Além disso, o tombamento de cidades históricas assumiu características distintas em cada região, não sendo, por vezes, acompanhado de um instrumento normativo mais preciso, nem mesmo uma estrutura gerencial aparelhada, capaz de lidar com as diversas variáveis em curso. Cabia, portanto, às superintendências regionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, instituírem suas próprias diretrizes normativas de proteção.
É nesse ponto crucial que se insere a experiência de proteção do Sítio Histórico de Olinda, porção antiga de colonização portuguesa no nordeste do Brasil, situado no litoral de Pernambuco, e que tem se estabelecido como Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade, desde 1982, pela Unesco.
Ainda que em Olinda houvesse ocorrido o tombamento federal isolado de algumas de suas igrejas barrocas, desde a década de 1930, seu sítio histórico veio a ser registrado como conjunto urbanístico e arquitetônico em 1968, pelo Iphan. No percurso da salvaguarda cultural teve a sensibilidade paisagística garantida nas legislações de proteção federal, em 1979 e 1985, simultaneamente ao início ao processo de descentralização das políticas patrimoniais, segundo indicou Vera Milet (1). Esse também foi o período de destaque da pioneira experiência de criação do Sistema Municipal de Preservação, quando foi instituído um conselho deliberativo, uma fundação executiva e um fundo de promoção das ações. Tais medidas de salvaguarda, aliadas aos títulos honoríficos conquistados por Olinda ao longo do tempo — Monumento Nacional (1980), Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade (1982) e Cidade Ecológica (1982), deslocaram a experiência preservacionista para uma posição de destaque no panorama nacional e latino-americano.
Não desvalendo a concatenação desse arcabouço normativo, o Sítio Histórico de Olinda adentrou o século 21 clamando por novas reflexões acerca do seu patrimônio cultural, bem como sua função para a cidade e para a sociedade, o que, consequentemente, demanda inferências sobre prospecções futuras quanto à preservação almejada. Isso porque a cidade histórica deve participar ativamente do desenvolvimento urbano e econômico, aliado à preservação dos valores culturais que lhe são peculiares. O intervalo de mais de cinquenta anos, contado desde o tombamento do conjunto urbano e arquitetônico até o tempo presente, sinaliza a necessidade de revisão da normativa federal, sobretudo quanto às novas demandas socioeconômicas, culturais e ambientais, de seus residentes, usuários, turistas e profissionais que atuam no local.
O incurso do trabalho abarca a identificação dos valores patrimoniais oficialmente atribuídos ao sítio histórico no tempo, bem como os atributos a eles relacionados, a fim de subsidiar reflexões acerca da necessidade de revisão da legislação federal de proteção desse sítio histórico.
Como recurso metodológico, a investigação no campo da história da preservação institucional se deu pelas contribuições dessa disciplina aos questionamentos formulados no tempo presente, por meio do olhar na reconstrução e encenação dos fatos do passado (2). Por meio da História, interliga-se a abordagem da identificação dos valores patrimoniais atribuídos a Olinda e o arcabouço legal em vigor, em busca de estabelecer uma conexão com o tempo presente.
Assim, o objetivo do presente trabalho consiste em demonstrar que o aporte metodológico da História, especialmente no incurso por fontes documentais institucionais primárias, possibilita inúmeras interpretações que podem constituir um conjunto inteligível para o direcionamento de uma revisão na normativa proteção federal do Sítio Histórico de Olinda. Nessa perspectiva, os documentos constituem os principais objetos de investigação, com o cuidado de serem coerentemente agrupados, analisados, conferidos a sua veracidade e interpretados, a fim de permitirem a construção de um sentido para os fatos históricos nele registrados. Para tanto, foram consultados os documentos relativos à proteção institucional de Olinda, como os dossiês e pareceres técnicos que instruíram seu tombamento e os que acompanharam a conquista dos títulos honoríficos de salvaguarda. A narrativa dos fatos foi oportunamente cotejada com o panorama político e cultural nacional e local, para que as devidas contextualizações fossem efetuadas.
Com a apropriação dos documentos, foi possível a delimitação do recorte temporal, cujo período corresponde ao momento da instituição do sítio como bem patrimonial, em 1968, até quando da revisão em sua normativa federal, em 1985. Além dos instrumentos normativos, a investigação também foi extensiva à conquista dos títulos honoríficos já mencionados.
Diante do exposto, o trabalho foi estruturado em três partes. A primeira parte abrange as legislações de proteção federal instituídas em Olinda no período em questão, as de 1968, 1979 e 1985. A segunda parte corresponde aos títulos de distinção conferidos ao sítio histórico. E, por fim, a última parte contém as reflexões em torno dos fatos narrados.
As legislações de proteção federal
A colina se torna sítio histórico: o tombamento (1968)
Nos anos de 1960, a preservação de sítios históricos passou a ser discutida, nacional e internacionalmente, ante às emergentes ameaças à sua integridade, especialmente quando o que estava em evidência era a acelerada urbanização e as consequentes ameaças de verticalização de centros históricos (3). A ânsia pelo desenvolvimento urbano estava intimamente relacionada às ideias de progresso, que, muito comumente, resguardavam atitudes hostis ante aos bens culturais testemunhos do passado. Estar em sintonia com as premissas de modernização significava favorecer intervenções em áreas históricas pouco concernentes com o caráter único do lugar, além de desvalorizar tais estruturas em detrimento da expansão da malha urbana, que então se mostrava mais sedutora à moradia. Segundo entendimento de Jorge Enrique Hardoy e Jorge Enrique Gutman (4), o crescente impacto da urbanização nesse período levou à quase destruição de muitos centros históricos, à perda de suas funções e às transformações.
Enquanto centros históricos no Brasil passavam por ações danosas, Rio de Janeiro RJ, Porto Alegre RS, Pelourinho BA, Recife PE, entre outros, Olinda também não ficou de fora e foi alvo de similar processo de desprestígio e de desvalorização — urbana, econômica, social. Por um lado, o aparente distanciamento do Recife, demonstrado pelas dificuldades de acesso (a principal via de ligação com Olinda ainda não era pavimentada e havia apenas uma faixa de rolamento em cada sentido), favoreceu a manutenção da integridade do acervo antigo olindense.
Também era fato uma maior atração aos interesses imobiliários exercida pelo Recife, onde a industrialização e urbanização eram latentes, cujos ecos de modernização ofereciam ameaças à permanência valorativa dos registros edificados do sítio olindense. Ainda que Olinda fosse pouco frequentada e relativamente distante do Recife, sendo mais procurada por artistas plásticos que nela pretendiam estabelecer moradia, pelo bucolismo característico de seu conjunto e pelo modo de vida tranquilo do lugar (5), foi no seio das preocupações ante às possíveis ameaças de transformações no sítio antigo, que se deflagrou a abertura do processo tombamento de Olinda, em 1962.
As justificativas apresentadas pelo arquiteto Augusto de Silva Telles, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Rio de Janeiro — Iphan RJ, destacavam as qualidades paisagísticas e urbanísticas do sítio: “o tombamento seria paisagístico e urbanístico, nele incluindo-se, principalmente, o traçado urbano existente e a vegetação, tanto pública, como particular” e complementou, em aparente tom de dúvida: “acham que não há possibilidade em ser Olinda tombada como conjunto arquitetônico em sua totalidade. Está ela, muito deturpada. Assim, só paisagístico” (6).
A descaracterização física do sítio antigo, alertada por Silva Telles, demandou consultas a especialistas quanto ao caráter arquitetônico do acervo em discussão, onde o arquiteto José Luiz da Mota Menezes, então diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Pernambuco — Iphan PE, concordou com as indicações ao tombamento. Ele propôs a extensão da valoração ao caráter artístico, ao reconhecer atributos arquitetônicos no casario antigo, especialmente os situados nas ruas 27 de Janeiro, Prudente de Morais, Amparo, 13 de Maio e Bernardo Vieira de Melo — consistiu em um posicionamento técnico orientado pela identificação de qualidades urbanísticas, arquitetônicas e paisagísticas, a merecerem registro nos Livros do Tombo do Iphan.
No curso dos estudos para o tombamento de Olinda, destaca-se o depoimento de Michel Parent, consultor internacional da Unesco enviado ao Brasil, quando declarou:
“Olinda é uma jóia do Brasil [...]. Nela se reúnem admiravelmente a paisagem marinha e a cidade de arte, com uma riqueza de vinte igrejas barrocas e um grande número de casas antigas pintadas em vivas cores. [...] Em Olinda a arquitetura surge dentre os esplendores da natureza tropical. [...] Essa feição esparsa do tecido urbano deve ser absolutamente preservada. Olinda não é uma cidade: é um jardim entremeado de obras-primas de arte” (7).
O parecer final de Silva Telles, então, foi favorável ao tombamento artístico, histórico e paisagístico do sítio de Olinda, cujas justificativas reconheceram:
“A cidade aparece, ainda hoje, imersa e envolvida em densa arborização que a enfeita e lhe confere graça excepcional. [...] são poucas as construções irrecuperáveis para um plano geral de restauração. Existem algumas, mas essas se perdem entre as de boa origem, não chegando a comprometer o conjunto. Mesmo na área litorânea, a zona nova, os prédios possuem, no máximo três pavimentos. Cremos, por isto, que ainda é tempo de salvar-se Olinda, e urge que isto se faça rápido, antes que a febre imobiliária a descubra e a desfigure por completo” (8).
Para além da mudança de postura do arquiteto quanto ao tombamento arquitetônico do conjunto, fica evidente a aplicação do instrumento jurídico tanto para atestar a relevância do acervo cultural de Olinda, como para exercer o controle sobre as futuras intervenções nesse sítio antigo.
O resultado desse processo foi a Notificação n. 1004/68 de 21 de março de 1968, que descreveu os limites do polígono de proteção, em uma configuração bastante rígida e pouco adaptada à topografia e ao urbanismo, somando 1,2 km² de área: era a instituição do Sítio Histórico de Olinda. O registro como acervo arquitetônico e urbanístico se deu em três Livros do Tombo: o Histórico, o de Belas Artes e o Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, com destaque para os conjuntos urbanísticos e arquitetônicos das ruas 13 de Maio, Amparo e Bernardo Vieira de Melo.
As diretrizes de proteção referiam-se à manutenção dos gabaritos, do caráter plástico do casario histórico e a preservação da cobertura vegetal, fixando restrições às novas construções. Em linhas gerais, essa normativa ainda vigorou por dezessetes anos, quando foi revisada e atualizada para um novo instrumento normativo, que demonstrou sensibilidade à manutenção de uma área de entorno do sítio histórico, a ser explorado na sequência do artigo.
A delimitação do Polígono de Preservação (1979)
Os anos de 1970 renderam a Olinda a elaboração e implantação de planos, programas e projeto governamentais de relevância na preservação do acervo cultural (9). A conjugação de esforços das três esferas no campo da política cultural — federal, estadual e municipal — ilustrou o caráter inovador e descentralizado que estava se configurando no Brasil.
Em Recife, esse período também deflagrou obras de urbanização, especialmente as de pavimentação que contribuíam nos deslocamentos entre cidades, inclusive Olinda. Na ocasião, a precária rede de acessibilidade que ligava esses dois centros foi alargada e pavimentada, dando origem ao conhecido Complexo Rodoviário de Salgadinho, que passou a permitir um intenso fluxo regional de veículos pelo território pernambucano.
Se por um lado essa iniciativa objetivava o desenvolvimento urbano das duas cidades, por outro, permanecia alarmada como ameaça às colinas históricas de Olinda. Intelectuais do campo da preservação, como Luiz Delgado, membro do Conselho Estadual de Cultura, solicitaram a elaboração de um plano de preservação para a área do Complexo Rodoviário, para a proibição de construções no local, quando o que estava em foco era a visibilidade de monumentos ou áreas históricas tombadas (10). Temendo as interferências à percepção do Sítio Histórico de Olinda à distância, Luiz Delgado destacou: “não faltarão [no Complexo Salgadinho], dentro em breve, os aterros e as construções impedindo aquela visão do conjunto olindense — colina, casas e vegetação — que os renomados técnicos reputam digna de ser absolutamente protegida” (11).
Suas palavras foram corroboradas pelo consultor internacional da Unesco J. B. Perrin, que visitou e analisou a situação de Olinda nos anos de 1970, e constatou ser o sítio “objeto de sérias ameaças”. Para justificar o argumento, Perrin defendeu a condição do sítio histórico em acumular duas especificidades conflitantes: “participar do louvável desenvolvimento do Recife e conservar seu próprio caráter primitivo” (12). Sobre a visibilidade da colina histórica de Olinda, Perrin alertou a preservação: “a visão que dela se pode ter do exterior, do mesmo modo que a perspectiva que dela se tem para o exterior, sobretudo para o mar, devem ser objeto de uma proteção absoluta” (13).
Nesses termos, o parecer de Luiz Delgado foi pela delimitação de uma zona não edificante no entorno do sítio histórico, cuja preocupação centrava-se no controle ao adensamento construtivo: “permitindo que a velha cidade [...] seja apreendida pelo visitante em sua beleza total e complexa” (14). Estava, portanto, instituído o interesse por uma zona de transição entre as duas cidades, também corroborado pelo sociólogo Gilberto Freyre, então presidente do Conselho de Cultura, que reconhecia o conflito entre os limites da preservação e do desenvolvimento urbano, sinalizando um alerta sobre a urbanização rodoviária: “que, possuindo a mais alta importância, não deixará, no entanto, de suscitar interesses capazes de desfigurar a paisagem magnífica” (15).
No dossiê de instrumentalização da delimitação da área de entorno de Olinda, constava o parecer do arquiteto José Luiz da Mota Menezes:
“A sua visão a distância, considerando conceitos de visibilidade de conjunto, numa visão da cidade emergente, na visão serial, e todos aqueles aspectos novos que Cullen analisa em seu tratado de estética urbana. Deste modo, se vislumbrou o conjunto histórico em uma perspectiva até então somente possível àqueles que de barco penetrassem os mangues ou se situassem em atitude subjetiva” (16).
Em seus argumentos, ainda mencionou a “silhueta de grande magnitude” de Olinda, como uma admiração do conjunto à distância, e identificou possíveis riscos ao recomendar a preservação da “flora típica do mangue, que, sucessivamente, estava desaparecendo sob aterros constantes e desorganizados” (17). Com tais observações, constata-se que não apenas o conjunto urbano e arquitetônico antigo de Olinda estava submetido à proteção, como havia uma consciência preservacionista dos elementos naturais e ecossistemas componentes de seu entorno e de seu perfil urbano.
Como consolidação das discussões, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico — Fundarpe, órgão estadual de salvaguarda cultural, propôs a delimitação de um polígono envolvente às colinas históricas, endossado pelo Iphan, por meio da Notificação Federal n. 1.155 de 04 de junho de 1979, que inscreveu no Livro do Tombo Etnográfico, Histórico e Paisagístico o Acervo Urbanístico, Paisagístico e Arquitetônico da Cidade de Olinda como extensão do "Conjunto Arquitetônico e Paisagístico", tombado no ano de 1968 (18).
A delimitação do “entorno” do sítio histórico ampliou para 10,4 km² a área de proteção de Olinda, o que corresponde a 1/3 do território municipal, e significou a sensibilização institucional à visibilidade, tanto do Recife para as colinas, como destas para o entorno, promovendo, ainda, a preservação dos atributos naturais, em razão do possível adensamento construtivo em curso. Fisicamente, abarcou a área do Complexo de Salgadinho e foi extensiva aos mangues e ecossistemas do entorno, recebendo a denominação de Polígono de Preservação, mas garantindo a manutenção do polígono de proteção instituído em 1968, com as mesmas normas e critérios, passando à denominação de Polígono de Tombamento.
O recém-criado Polígono de Preservação foi subdividido em nove setores, estabelecidos com distintos níveis de proteção e parâmetros de intervenção. Os critérios utilizados para o zoneamento foram direcionados pelas características físicas e ambientais do lugar, que ditaram o controle do adensamento construtivo, determinando taxas de ocupação e gabaritos. Embora configurando um importante marco no processo da salvaguarda do sítio histórico de Olinda, tal instrumento normativo logo foi revisado, em função de demandas não devidamente contempladas nesses discussões.
A revisão do Polígono de Preservação (1985)
A década de 1980, foi marcada pela elaboração e implantação do Projeto Piloto Olinda — PPO, que consistiu em um desdobramento do Programa de Recuperação e Revitalização de Núcleos Históricos, do Iphan, mas se comportando como uma iniciativa pioneira na recuperação do patrimônio habitacional, por se basear na participação dos moradores em diversas etapas do projeto.
A grande demanda pela recuperação e restauração do casario histórico de Olinda garantiu ao PPO a viabilidade de sua execução. No entanto, ao mesmo tempo em que a estrutura técnica, financeira e administrativa do programa permitia avanços, o respaldo normativo de controle das intervenções arquitetônicas mostrava-se ainda aquém da capacidade de gestão: a análise técnica dos projetos no casario esbarrava-se em lacunas da normativa federal, cujo Polígono de Tombamento ainda era aquele de 1968. A ausência de parâmetros mais precisos nesse instrumento configurava uma ameaça à manutenção dos valores patrimoniais do acervo protegido.
Além das lacunas, ainda foram identificados conflitos de jurisdição com a normativa municipal de proteção do sítio histórico, instituída em 1973, quando de sua setorização, cujos critérios eram essencialmente distintos daqueles que nortearam a lei federal, o que causava divergências nos processos de aprovação dos projetos e na execução das obras de recuperação no casario. Na tentativa de equacionamento dos conflitos e garantia de preservação dos atributos específicos de Olinda, o órgão de proteção federal melhor detalhou o Polígono de Tombamento, na medida em que as obras no casario ocasionavam maiores pressões nas vias seculares.
Os esforços empreendidos resultaram na revisão do instrumento normativo de proteção federal, sendo instituído como Rerratificação da Notificação Federal n. 1.155/79, aprovada em 1985. Com a revisão, o Polígono de Preservação permanecia com mesma delimitação, mas passava a se denominar “Entorno” do sítio histórico e com nova setorização e distintos parâmetros de controle das intervenções urbanas e arquitetônicas. O Polígono de Tombamento é que recebeu uma nova delimitação, mais adaptada ao relevo acidentado do sítio histórico, e uma nova setorização, norteada segundo o caráter tipológico e cronológico do casario.
No Polígono de Tombamento, as diretrizes de intervenção foram detalhadas em função da volumetria, gabarito, ocupação, ampliações, materiais construtivos, uso de equipamentos e das instalações no casario antigo, bem como visando a manutenção dos quintais e da cobertura vegetal, com níveis distintos de intervenção. Até então, esse instrumento normativo tem permanecido como principal referência aos processos de intervenção física no casario. No entanto, passados quase quarenta anos, acredita-se que novas demandas em sítios históricos podem não estarem sendo devidamente contempladas.
Os títulos honoríficos de salvaguarda
No curso das discussões acerca da preservação de Olinda, o sítio histórico conquistou, em 1980, o título de Monumento Nacional, em consequência de campanha organizada pelo historiador Luiz Vital Duarte e apoiada pelo deputado federal Fernando Coelho, a qual resultou no Projeto de Lei n. 1.440, de 1975.
Dentre as justificativas ao pleito, Fernando Coelho mencionou o título já conquistado por outras cidades — Ouro Preto MG (1933), Parati RJ (1966), Cachoeira BA (1971) e Porto Seguro BA (1973) —, situando Olinda como uma lacuna a ser sanada, por igualmente possuir qualidades urbanísticas, arquitetônicas e paisagísticas de relevância (19). Coelho também enlevou os atributos físicos, históricos, artísticos e paisagísticos de Olinda, referenciou a influência dos artistas plásticos que complementam o panorama histórico e os atos heróicos do povo olindense, mas também mencionou os fatores de depredação ao sítio.
Várias manifestações de apoio foram identificadas, principalmente de entidades e personalidades pernambucanas e brasileiras — o prefeito Germano Coelho, o Senador Marcos Freire, o ex-Ministro Eduardo Portella, o designer Aloísio Magalhães, os deputados Jairo Magalhães, Jorge Cury, José Maria de Carvalho e Daso Coimbra, e o Senador Aderbal Jurema. Embora os adversários políticos ainda tenham prorrogado o intuito da ação, a conquista do título foi homologada pela Lei n. 6.863, de 1980, e significou uma esperança no pleito ao título de Patrimônio Cultural de Humanidade, da Unesco, com vistas a garantir recursos futuros à preservação do sítio histórico.
Para a inscrição de Olinda na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, a municipalidade e a instância federal, o Iphan, por meio de Germano Coelho e Aloísio Magalhães, respectivamente, exerceram um papel primordial, sobretudo pelas relações afetivas e de pertencimento para com o sítio histórico (20), quando apenas Ouro Preto (1980) detinha tal condição no Brasil.
O dossiê de Olinda reuniu a descrição dos atributos relevantes do sítio histórico e a delimitação do polígono de tombamento de 1968. Fotografias ressaltavam a beleza da paisagem, assim como onze litogravuras artísticas de visadas desse acervo cultural, produzidas por Aloísio Magalhães (21), também acompanharam o dossiê, juntamente com um volume da obra de Gilberto Freyre, o “2º Guia Prático, Histórico e Sentimental da cidade” (22).
Uma vez destacadas as qualidades do sítio histórico, sua condição de deter o Sistema de Preservação, desde 1979, o título de Monumento Nacional, de 1980, e ainda sua condição de palco de movimentos instituídos pelos moradores em favor da preservação, foram prerrogativas fundamentais no despertar de sua visibilidade no contexto internacional da salvaguarda cultural.
O papel da população residente em sua relação de pertencimento ao lugar e na manutenção das expressões culturais, como atributos identificadores da paisagem, também foi ressaltado no dossiê:
“Profundamente arraigada, sua população tradicional conserva pela cidade, relação de amor e posse. E isto se torna compreensível, não somente pela atenção para a importância de seus bens patrimoniais, mas também pela manutenção das velhas tradições, tais como as procissões, o carnaval e o artesanato. Numa terra que se identifica pela grandeza da religiosidade, pela festa e pela arte, Olinda chega a se fazer identificar exatamente graças a estas manifestações” (23).
Tais registros demonstram a relevância do acervo cultural olindense conferida pelas instituições nacionais e internacionais na busca pelos títulos honoríficos. Ainda que identificadas as ameaças ao acervo edificado, seus atributos físicos, a beleza da paisagem, a preservação da malha urbana e o caráter associativo e atuante dos moradores do Sítio Histórico de Olinda não deixaram de ser reconhecidos e exaltados.
O pedido de inclusão apresentado por Aloísio Magalhães na reunião Comitê do Patrimônio Mundial, em Veneza, foi aprovado por unanimidade, em 1982, passando a constar na Lista do Patrimônio Mundial como “centro histórico”. O entendimento de sítios ou centros históricos pela Unesco, como categoria na qual foi incluída Olinda, de acordo com Bernard M. Feilden e Jukka Jokilehto, refere-se a sua significância no contexto mundial: “obras produzidas pela mão do homem, ou pela combinação da mão do homem com a natureza, e áreas, incluindo lugares arqueológicos, que tenham um destacado valor universal excepcional desde os pontos de vista históricos, estéticos, etnológicos ou antropológicos” (24). Nessa perspectiva, o Sítio Histórico de Olinda correspondeu aos critérios 2 e 4 estabelecidos pela Unesco, que qualificam seus valores, seu conjunto arquitetônico e paisagístico.
A descrição do sítio contida na Lista do Patrimônio Mundial fez jus aos seus atributos singulares, mas também expôs a ameaça latente à visibilidade da colina histórica pelo desenvolvimento urbano da cidade vizinha do Recife. Por este motivo, foi exposta a preocupação do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios — Icomos no adiamento do pedido de inscrição, até que o Brasil providenciasse um posicionamento responsável diante de tal ameaça — algo que não impediu o reconhecimento oficial do sítio histórico.
Outra titulação também acumulada por Olinda, ainda em 1982, foi sua elevação à Cidade Ecológica, merecida pela significância de seus elementos naturais. No Diário Oficial de Olinda (sem data), o ecólogo Vasconcelos Sobrinho apontou as três exigências atendidas pela cidade para a obtenção desta qualificação: 1. não aspirar à condição de cidade industrial, que se entende oposta à concepção de cidade ecológica, 2. o comportamento dos seus habitantes, tendo o sítio como local de repouso e de respeito às suas áreas verdes e, por fim, 3. seus atributos geográficos e orográficos singulares, que configuram sua fisionomia natural. E lhe conferem um caráter único na paisagem.
Diante do exposto, percebe-se que esse sítio acumula uma ampla gama de arcabouço técnico e normativo, instituído pelas distintas esferas do poder, como uma condição propícia à garantia da salvaguarda do acervo.
Considerações gerais
Passados mais de cinquenta anos desde o tombamento do Sítio Histórico de Olinda, quando a ele foram atribuídos os valores artístico, histórico e paisagístico, reacende-se a demanda pela atualização dos parâmetros da normativa vigente, que ainda é a de 1985, haja viso que essas áreas sofreram, em diferentes medidas, transformações e hoje novos interesses e atores estão em questão.
Nesse sentido, retoma-se que o sítio histórico constituiu-se objeto de proteção federal em fins dos anos de 1960, por pressões exógenas e endógenas de desenvolvimento urbano. A ausência de uma lei restritiva e controladora das intervenções nesse acervo, consequentemente, poderia ocasionar perdas irreversíveis quando a ideia era salvaguardar os testemunhos do passado. A interpretação dos documentos relativos ao pedido de tombamento do sítio revelou como elementos de destaque no conjunto, o traçado urbano, o casario antigo, os monumentos religiosos e, mais recorrentemente exaltada, a paisagem, que inclui a cobertura natural, a topografia e o acervo construído. Ainda que seus parâmetros de proteção tenham sido delineados em termos gerais, foi possível a atuação na preservação do acervo, já que naquele momento o sítio não era alvo de maiores intervenções urbanísticas e arquitetônicas.
Em fins dos anos de 1970, o acervo tombado de Olinda foi contemplado com uma área envolvente, que marca a transição com a cidade do Recife e com os investimentos imobiliários que ameaçavam se proliferar nessas fronteiras. Com a instituição do Polígono de Preservação, não apenas a percepção e a visibilidade das colinas históricas foi alvo de salvaguarda, como também os elementos naturais do entorno do sítio, buscando garantir sua sobrevivência. Assim, a legislação de proteção patrimonial também foi direcionada ao equilíbrio do ecossistema que lhe é característico. O zoneamento proposto para o entorno teve o cuidado de controlar, de modo diversificado, o adensamento construtivo e a proteção do local.
A atualização dessa normativa, datada de 1985, evoluiu no detalhamento dos parâmetros, tendo em vista a boa condução da tarefa de análise dos projetos de intervenção arquitetônica no casario do sítio histórico. A necessidade de salvaguardar os valores oficialmente atribuídos até então, incluído o valor universal de destaque que o título de Patrimônio Mundial da Unesco contemplou, foi uma constante.
A investigação por meio da História da preservação institucional do Sítio Histórico de Olinda demonstra que, desde o momento de seu tombamento como conjunto, os valores patrimoniais têm permanecido sob salvaguarda. Ainda que a tarefa da preservação tenha se caracterizado como um desafio e que tenham sido identificados vestígios de descaracterização no acervo, esse permaneceu sob os mesmos cuidados de proteção. As legislações que sequenciaram o tombamento se desenvolveram na perspectiva de se aprofundar os parâmetros de intervenção e de controle urbano.
A revisão da legislação federal ora realizada buscou fortalecer os instrumentos de proteção para que os valores e atributos físicos do Sítio Histórico de Olinda sejam preservados de modo cada vez mais eficaz. Para tanto, no que se refere ao Polígono de Tombamento, que é a porção de proteção rigorosa de Olinda, o trabalho de revisão do corpo da lei se desenvolve na perspectiva da manutenção dos valores então identificados. Nesse sentido, a natureza residencial do sítio histórico tem sido um aspecto fundamental a ser considerado, haja vista as novas condições de habitabilidade impostas pela modernidade, o que, consequentemente, entra em conflito com a estrutura antiga do casario lá existente. Permitir bons níveis de conforto, ao mesmo tempo em que se assegura a ambiência peculiar do sítio, é um dos principais desafios da consolidação do novo corpo da lei. Para além da normativa específica sobre o casario, também passam a ser contemplados parâmetros urbanísticos e arquitetônicos sobre os espaços públicos do sítio histórico, na tentativa de minimizar as perdas de atributos importantes de serem salvaguardados e de deter respaldo legal no controle das intervenções nessas áreas, que também são alvo de proteção.
Na área de entorno ao polígono de tombamento, os parâmetros legais foram revisitados a partir de três critérios balizadores: a configuração morfotipológica atual dos setores; a existência de pontos de divergências ou conflitos entre os índices e parâmetros das normas municipais e federais; as tendências de transformação/ consolidação existentes no local e as demandas postas pelas diferentes esferas governamentais.
Considerando o exposto, pode-se afirmar que sem o aporte com a História, não teria sido possível conduzir o processo de revisão da Rerratificação Federal 1155/79 com base na compreensão dos valores atribuídos ao Sítio Histórico de Olinda ao longo do tempo, valores estes que garantiram a sua preservação. E, sem esse aporte, não teria sido possível captar, em todas as suas faces, a significância desse sítio histórico e o que, de fato, importa nele ser salvaguardado.
notas
1
MILET. Vera. A Experiência de Gestão e Proteção ao Sítio Histórico de Olinda. In ZANCHETI, Sílvio (org.). Estratégias de intervenções em áreas históricas. Recife, Editora Universitária, 1995, p. 66–72.
2
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo, Editora Unicamp, 1996.
3
Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília, Sphan/Pró-Memória, 1980.
4
HARDOY, Jorge Enrique; GUTMAN, Margarita. Impacto de la urbanizacion em los centros históricos de Iberoamérica. Madri, Mapfre, 1992, p. 43.
5
Com a ditadura, em 1964, a perseguição aos artistas plásticos e aos intelectuais, no Recife, era contundente — fato que os levou a ver Olinda como lugar de refúgio e de qualidades bucólicas, em BARRETO, Juliana Cunha. De Montmartre nordestina a mercado persa de luxo: o Sítio Histórico de Olinda e a participação dos moradores na salvaguarda do patrimônio cultural. Dissertação de mestrado. Recife, PPGEDU UFPE, 2008.
6
DET/DPHAN. Processo n. 674–T–62: Proposta de Tombamento do acervo paisagístico — urbano — arquitetônico da Cidade de Olinda, Pernambuco. Rio de Janeiro, DET/Dphan, 1962. Grifo das autoras.
7
DELGADO, Luiz. Parecer. Recife, Sala das Sessões do Conselho Estadual de Cultura, 18 jun. 1974.
8
DET/DPHAN. Op. cit.
9
Plano de Desenvolvimento Local Integrado (1972), Programa de Cidades Históricas (1973), Programa de Complementação Urbana para Recuperação Acelerada (1977), Plano de Preservação dos Sítios Históricos (1978) e Sistema Municipal de Preservação do Sítio Histórico de Olinda (1979).
10
O entendimento de visibilidade fundamentava-se na percepção dos bens tombados à distância, de modo que nenhuma construção ou intervenção urbana em seu entorno viesse a suprimir sua perspectiva monumental.
11
DELGADO, Luiz. Op. Cit.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
16
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Proposta de preservação do núcleo Urbano de Olinda. Recife, Iphan, 1978.
17
DET/DPHAN. Op. cit.
18
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Bens móveis e imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 4ª edição. Rio de Janeiro, Minc/Iphan, 1994.
19
COELHO, Fernando. Olinda Monumento Nacional. Recife, Comunicarte, 1982.
20
COELHO, Germano. Olinda Patrimônio Mundial. Jornal do Commercio, Recife, 17–18 jan. 2008.
21
Essas litogravuras foram confeccionadas na Oficina Guaianases de Gravura, no Mercado da Ribeira, e atualmente estão depositadas no acervo da Fundarpe.
22
FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA. Centro Histórico da Vila de Olinda — Pernambuco, Brasil — Proposta para sua inclusão na Lista do Patrimônio Mundial. Olinda, Prefeitura Municipal de Olinda, 1982, p. 12.
23
Idem, ibidem, p. 15.
24
FEILDEN, Bernard M.; JOKILETHO, Jukka. Manual para el Manejo de los Sitios del Patrimonio Mundial Cultural. Roma, Iccrom/Unesco/WCH/Icomos, 1998, p. 31.
sobre as autoras
Juliana Cunha Barreto é doutoranda em Arquitetura na Universidade de Lisboa e professora no curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário UNIFBV, em Pernambuco, com pesquisas desenvolvidas no campo da preservação cultural e história urbana, com ênfase no restauro.
Flavia Barreto Lira é doutora em Desenvolvimento Urbano (MDU UFPE, 2010) e professora na Universidade de Brasília, com pesquisas desenvolvidas no campo da preservação cultural, com ênfase em autenticidade dos bens culturais.