Le Havre, na França, comumente conhecida pela sua reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, é hoje uma das três cidades modernas listadas pela Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco como Patrimônio Mundial juntamente com Brasília (1987) e Tel-Aviv (2003), em Israel. Le Havre guarda em sua história um passado que remete às suas origens no século 16, passando pela destruição em 1944, na Segunda Guerra Mundial, e o momento posterior de sua reconstrução baseada nos princípios da arquitetura moderna. A cidade francesa, reconhecida no ano de 2001 como “la ville d’art et d’histoire”, recebeu o título de Patrimônio Mundial em 2005.
O processo de candidatura de Le Havre a patrimônio teve seus aportes ainda na década de 1980, quando se discutia a necessidade de preservação da sua arquitetura moderna. Ao mesmo tempo, houve a preocupação em se buscar medidas que favorecessem uma efetiva apropriação da cidade por parte da população local. Essas duas questões representam temáticas caras ao campo da preservação de cidades modernas: uma diz respeito ao reconhecimento de que esses centros urbanos e sua arquitetura estão envelhecendo e necessitam de um tratamento adequado; outra corresponde à aceitação e à compreensão por parte de seus habitantes de como lidar com a expressão moderna.
Outra problemática levantada no caso de Le Havre diz respeito à condição de cidade reconstruída no pós-guerra e como isso implicou em ações urgentes para reerguê-la e acolher a população desabrigada. Cabe destacar, nesse caso, que a cidade passou pelo processo de reconstrução, não com o intuito de restaurá-la tal como antes, mas com a intenção de propor um novo modo de vida, associado aos ideais da arquitetura e do urbanismo modernos. É necessário, desse modo, observar como isso se reverteu para a candidatura à Unesco, nos anos 2000, tendo sido um diferencial em relação à Brasília e Tel-Aviv. Em Le Havre, tanto no momento da reconstrução, quanto no da candidatura, os governos local e nacional foram essenciais.
A identificação das circunstâncias em que Le Havre foi reconstruída e quando se tornou patrimônio levam aos objetivos deste artigo: revisitar o percurso que transformou a cidade destruída em um conjunto urbano preservado. Há a intenção de discutir os pressupostos gerais que tornaram esse movimento possível, atentando já de início que essa discussão não se limita a observar os dois momentos, cabendo análises mais específicas e detalhadas em outros debates.
A preservação de cidades modernas, sobretudo Brasília, parte do contexto brasileiro, se faz presente hoje nas mesas de discussões. Eleger Le Havre como objeto de estudo se justifica, porém, pela necessidade de ampliação desse debate, introduzindo outras cidades modernas que também são reconhecidas pela Unesco. Além de Brasília (1987), há que se estudar Tel-Aviv (2003) e Le Havre (2005). No presente artigo pretende-se olhar especificamente para Le Havre, lançando luz sobre essa cidade e seu processo de patrimonialização.
Em suma, pretende-se responder à seguinte questão: como o processo de reconstrução de Le Havre auxiliou para que a cidade se tornasse Patrimônio Mundial como um sítio moderno? Sendo assim, a abordagem aqui pretendida diz respeito a parte do processo, certamente possuindo outras possibilidades de discussão. A partir dessa proposta, o artigo se estrutura em duas etapas: uma discussão inicial sobre o período de reconstrução e o debate relativo ao momento de candidatura perante a Unesco, encerrando com as considerações finais.
Da destruição à reconstrução
O dia 5 de setembro de 1944 marcou a história de Le Havre como a data do início dos bombardeios que a arruinaram durante a Segunda Guerra Mundial. A destruição de grande parte do seu centro, fundado no século 16, trouxe a necessidade de reconstrução urgente de sua área urbana para abrigar cerca de 80 mil pessoas desalojadas após a guerra. A força-tarefa deslocada para o seu reerguimento fez com que o governo local, apoiado pelo nacional, realizasse os primeiros movimentos já em 1945, assim buscando um plano para a reconstrução que fosse rápido e eficiente para reerguer a cidade destruída (1).
Antes de prosseguir nesse percurso, é preciso levantar brevemente a discussão acerca do termo “reconstrução”. A Carta de Veneza (2), internacionalmente reconhecida, refuta essa intervenção, apenas a considerando como última hipótese. E nesse sentido, o guia de diretrizes operacionais da Unesco segue a mesma lógica:
“No que diz respeito à autenticidade, a reconstrução de vestígios arqueológicos, ou monumentos, ou bairros históricos só se justifica em circunstâncias excepcionais. A reconstrução só é aceitável se tiver por base uma documentação completa e pormenorizada, não podendo ser, de modo algum, conjetural” (3).
Um dos casos mais emblemáticos de reconstrução aceitos pela Unesco foi do Centro Histórico de Varsóvia, reconstruído também em função da Segunda Guerra Mundial. O seu projeto seguiu as referências do conjunto urbano existente antes da destruição. Esse exemplo na Polônia se diferencia de Le Havre exatamente pelo sentido do termo reconstruir, voltado à ideia de construir à semelhança do que foi destruído. No caso da cidade francesa, apesar da documentação referente ao processo de patrimonialização a identificar como uma cidade reconstruída, talvez essa intervenção esteja mais próxima de uma renovação urbana, por trazer princípios de uma nova arquitetura. Esse debate poderia ser incluído no espaço de outro artigo, porém, aqui o termo reconstrução será utilizado, mesmo essas ressaltas feitas.
Para acompanhar o processo de reconstrução de Le Havre é preciso ver que a cidade teve seus movimentos iniciais para reerguê-la associados ao Ministério da Reconstução e do Urbanismo — MRU, chefiado pelo ministro Raoul Dautry. Esse ministério teve a função de organizar as etapas necessárias para reerguer a cidade, definindo os papéis de cada agente. Segundo Claire Étienne-Steiner (4), a área de urbanismo seria responsável pelo plano de reconstrução e de urbanismo; os arquitetos cuidariam da “ordem arquitetônica”; e haveria o grupo responsável pela distribuição e parcelamento dos lotes.
Esse modelo de organização distinguiu os papéis de Auguste Perret, nomeado em 1945 arquiteto chefe da reconstrução de Le Havre, que acabou por ser responsável por toda a parte central da cidade, deixando a periferia aos cuidados de Félix Brunau, arquiteto local. O responsável pelo parcelamento foi Jacques Tournant, aluno de Perret. Além desses nomes principais, identificam-se duas “cooperativas de desastres”: François 1ere Agir. Cada uma delas possuía seus arquitetos e mestres de obras e cuidava de uma área específica da cidade. Além das cooperativas, o Estado ficou responsável por reerguer os imóveis sem uso individual — Isai, o que se entende como as edificações coletivas para habitação (5).
Essa distribuição de tarefas traz um panorama geral de como funcionaria na prática essa organização pretendida. Evidentemente o foco parecia estar na população desalojada, que ocupava instalações provisórias distribuídas pela cidade. Dessa forma, já no começo de 1946 as construções dos imóveis sem uso individual foram iniciadas pelo governo local. A ideia para essas habitações era de uma abordagem funcional, buscando o conforto da casa (6). Seguindo essa visão funcionalista, foram realizados estudos para as melhores condições de insolação e ventilação das edificações de habitação coletivas. Em 1950 começaram a ser entregues as primeiras unidades para a população.
Seguindo a cronologia da reconstrução da cidade, após a decisão dos planos urbanos e arquitetônicos entre 1945 e 1946, Le Havre se tornou um grande canteiro de obras. A partir de 1950 pôde se ver edificações e ruas concluídas, também trabalhos de restauração e reconstrução dos principais monumentos, como a Igreja de Notre-Dame e a Igreja de Saint-Joseph, obras de Auguste Perret e marcos arquitetônicos da cidade (7).
Segundo o dossiê de candidatura a Unesco, a Igreja de Notre-Dame passou por um processo de restauro, enquanto a Igreja de Saint-Joseph teria sido reconstruída (8). No caso da Igreja de Saint-Joseph, Étienne-Steiner (9), afirma que o projeto de Perret teria substituído a igreja anterior, o que leva à conclusão não tanto de uma reconstrução, seguindo as premissas da Carta de Veneza, mas da construção de um novo edifício no lugar do anterior. Ainda citando essa carta, para o termo restauração se entende:
“Uma operação que deve ter caráter excepcional. Tem por objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos” (10).
Foram quase quarenta anos desde o primeiro movimento para reerguer a cidade, tempo durante o qual boa parte do que foi edificado seguiu diretrizes da arquitetura moderna. Porém, em 1954, com o falecimento de Perret, o restante da obra foi assumida pelo seu assistente, Jacques Poirrier. Assim, em 1964 toda a população já havia sido realojada e 18 anos depois, em 1982, os últimos edifícios públicos foram entregues (11). Perret trouxe oito princípios que seriam aplicados na reconstrução:
“As grandes vias subsistentes, que criam com o Bassin du Commerce dois eixos ortogonais, servirão de base à trama geral;
A trama será constituída de duas grelhas perpendiculares de circulação principal formando malhas quadradas com 100 m de lado;
Cada malha poderá ser recortada por uma rede de circulação secundária;
O traçado das vias, a largura, as dimensões das ilhas e dos imóveis serão inscritos em uma trama geral invisível, tendo um módulo base de 6,24m;
A disposição dos volumes construídos em relação à rua deverá garantir a todos os apartamentos a insolação máxima, amplas visuais e proteção contra os ventos dominantes;
A disposição dos edifícios, uns em relação aos outros, dentro de uma mesma ilha, deverá considerar os mesmos imperativos;
A altura das edificações não será uniforme, sendo definidas localmente em função das condições particulares enunciadas nos itens 5 e 6;
Considerando a proximidade com o lençol freático, será desejável elevar a rede de vias de circulação” (12).
Esses princípios trouxeram diretrizes básicas para a reconstrução de Le Havre, mencionando soluções para o urbanismo e para a arquitetura. Mais uma marca do seu projeto se relaciona ao modo construtivo, pois a cidade foi a primeira no mundo construída com concreto armado, tornando-se um canteiro experimental, privilegiando a técnica construtiva e a estética. Isso foi possível através da pré-fabricação e dos estudos feitos pela equipe de Perret sobre o material (13). O concreto armado, marca da arquitetura moderna, trouxe características de “continuidade estática e adaptabilidade para as construções” (14).
Além da questão estrutural, houve a preocupação em seguir certos princípios de cidades modernas, como o higienismo, a relação com o meio ambiente, a interação entre veículos e pedestres e a organização do espaço urbano. Além dos aspectos sociais e econômicos como soluções para o pós-guerra (15). Essa visão permite observar referências à Carta de Atenas de 1933 (16), principalmente ao destacar a busca por uma qualidade de vida associada à necessidade de insolação, contato com o verde e a organização da circulação.
Outros aspectos destacados por Perret também remetem ao funcionalismo apregoado pela arquitetura moderna, como a ideia de propor um módulo de 6,24 metros, segundo o qual se organizaria a malha urbana; também a divisão em ilhas predeterminadas com 100 metros de lado. Adicionalmente ao modelo de habitação coletiva que levava em consideração a questão do conforto de seus habitantes, havia a preocupação com a relação entre os edifícios, suas alturas e a interação com a cidade (17).
Ampliando os aspectos já citados que são caros aos representantes da arquitetura moderna, a reconstrução de Le Havre perpassa a noção inicial de que o ponto de partida seria uma tábula rasa, ideia que no campo da arquitetura é comumente associada a uma condição do projeto em que se parte do zero. Na cidade francesa essa noção diz respeito aos 150 hectares destruídos na guerra. Essa visão foi reforçada no Dossiê de candidatura:
“A cidade reconstruída é, portanto, sobreposta à cidade destruída de acordo com dois modos simultâneos, virtual e concreto, que constroem, além da tábula rasa, sua real profundidade histórica. A Le Havre nova também cobre a Le Havre antiga (de uma forma muito emocionante) a partir de um aterro de um metro de altura feito de entulho nivelado dos prédios bombardeados” (18).
Apesar do Dossiê assumir essa noção, Perret buscou na cidade antiga referências ao seu traçado original como em:
“A tábula rasa é um efeito ilusório e Perret [...] teve pelo menos que restituir o traçado das vias principais, o ‘Triangle D’Or’, e reestabelecer a beira-mar para conter os ventos” (19).
Também contrapõe a ideia da tábula rasa algumas edificações que permaneceram, como a Catedral de Notre-Dame, a Maison de l’Armateur, o Hôtel Dubocage de Bléville e o Museu de História Natural. Todas passaram por restauros após a guerra, segundo o dossiê de candidatura, mas, de diferentes formas, se mantiveram de pé.
Um caso particular envolvendo a reconstrução de Le Havre é visto no Quartier Saint-François, um bairro que não seguiu o planejamento de Perret, e foi reerguido com base em sua concepção original do século 16. O espaço teve o projeto de um grupo de arquitetos locais seguindo a justificativa de que se encontravam ali edifícios dos mais importantes da cidade, alguns classificados como monumentos históricos (20) pela França (21). Além de contar hoje com uma aparência diferente do centro moderno de Le Havre, Saint-François é cercado pelos Bassin de la Barre e Bassin du Commerce, criando um ambiente particular, onde o traçado e as edificações parecem referenciar a Le Havre do passado.
A Le Havre do século 16 está presente não apenas no Quartier Saint-François, mas também nos bairros adjacentes à área central, principalmente por contarem com o trabalho dos arquitetos locais que conheciam a realidade anterior. Essa informação leva a compreensão de que a cidade hoje mistura elementos de seu passado e de suas referências à arquitetura moderna do pós-guerra. A reconstrução trouxe para o conjunto urbano não só um novo modo de vida, bem como outros olhares sobre a nova realidade. Essa nova Le Havre despertou o interesse externo pela sua reconstrução, pela sua arquitetura e urbanismo modernos e pelo que a cidade se tornou. A partir dessa visão será discutida a seguir como houve a transposição de uma cidade moderna reconstruída no pós-guerra para uma cidade reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco em 2005.
De cidade moderna a patrimônio
Cerca de duas décadas separam o término da reconstrução de Le Havre e seu título de patrimônio mundial. Em vinte anos a cidade se reconstruiu, sua população preencheu e se apropriou dos espaços, a arquitetura ganhou utilidade e o meio urbano se transformou. Normalmente os ambientes urbanos se constroem ao longo de décadas e séculos, mas, no caso de Le Havre, o seu renascimento começou entre os anos de 1945 e 1946 e pode se dizer que teve seus resultados finais por volta de 1982. É verdade que uma cidade não é passível de estar simplesmente completa em um dado momento, mas essas datas valem para compreender o seu processo de candidatura a patrimônio mundial.
Antes de analisar a candidatura, convém destacar o processo de patrimonialização iniciado antes do ano de 2005, quando Le Havre recebeu o título de patrimônio. Em se tratando de arquitetura, a primeira edificação classificada como monumento histórico após a guerra foi a Igreja de Saint-Joseph, em 1965, obra de Perret construída entre 1951 e 1958. Após esse começo, Maria Gravari-Barbas (22) destaca a década de 1970 a 1980 como um momento de desindustrialização e crescente desemprego, não propiciando as bases necessárias para iniciar o processo de patrimonialização da cidade. Já a década seguinte, entre 1980 e 1990, trouxe um ambiente em que se pôde ver as primeiras iniciativas de valorização de Le Havre com foco maior em um contexto patrimonial.
A participação do governo local foi fundamental para a iniciativa, principalmente ao identificar duas questões essenciais a serem debatidas. A primeira delas diz respeito ao entendimento de que a população deveria se reconciliar com a cidade reconstruída, lembrando que a arquitetura antes da destruição era do século 16, e que existiram grandes alterações no modo de vida com a chegada da arquitetura moderna. E a segunda questão se amparava no debate técnico, pois já se identificavam marcas de envelhecimento nas estruturas (23).
Voltando à primeira questão, segundo Gravari-Barbas (24), havia a necessidade de “criar um sentimento de pertencimento e de identidade local, de desenvolver as ligações ‘afetivas’ entre os habitantes e a reconstrução”. A autora ainda afirma que demoraram cerca de duas décadas para que a população “aprovasse” a cidade, e a justificativa dessa demora estava atrelada a um passado nostálgico em que se exaltavam a arquitetura e o urbanismo anteriores, associado a uma falta de compreensão e pertencimento à nova cidade com princípios modernos (25).
Ainda com relação ao papel da população, boa parte das pessoas que habitavam o centro de Le Havre antes da sua destruição foram realojadas em outras partes do conjunto urbano, isso é justificado no Dossiê de candidatura à Unesco como “reequilíbrio de densidades” (26). Nesse sentido, vê-se a necessidade de reaproximar a população de sua cidade, uma vez que foi excluída em boa parte do processo. Essa questão de reequilibrar as densidades parece uma justificativa fácil para a retirada da população desse centro mais nobre da cidade. Esse caso talvez represente um processo de gentrificação, algo que não será discutido no espaço deste artigo.
O segundo desafio levantado pelo governo diz respeito aos cuidados necessários a uma cidade que já envelhecia. Le Havre teve o seu centro reconstruído segundo os princípios modernos e mais especificamente utilizando a técnica do concreto armado, uma marca de Perret e do movimento moderno. Hoje diversos autores abordam os desafios de salvaguarda da arquitetura moderna, e uma das dificuldades é a questão material e seu envelhecimento. O concreto armado que foi utilizado nesse movimento trouxe não só questões estruturais, bem como a associação com a expressão estética, na medida em que se torna aparente nas construções (27).
A necessidade de manutenção (28) e restauro das edificações, além de iniciativas de intervenção por parte dos próprios moradores, levaram à criação da Zona de Proteção do Patrimônio Arquitetônico, Urbano e Paisagístico — ZPPAUP em 1995, conferindo um perímetro de preservação para Le Havre. Gravari-Barbas (29) argumenta que um dos objetivos da criação dessa zona era mostrar para a população que havia uma proteção oficial por parte do governo local e que o ponto de partida teria sido a busca por criar uma “identidade cultural” local. Entende-se com isso que a criação da ZPPAUP inicialmente lidava com as duas questões que mais se destacavam naquele momento, resolver os problemas decorrentes do envelhecimento da arquitetura, impondo um padrão para as intervenções e restauros, e ainda buscar o suporte da população através do incentivo à noção de pertencimento à cidade.
O primeiro passo oficial para tornar Le Havre um patrimônio foi através da criação dessa ZPPAUP, significando que o governo local, com o apoio do nacional, estavam à frente desse processo. Em seguida, a cidade foi inscrita na lista de bens franceses para submissão à Unesco em 2001. Também foi nesse mesmo ano que o Ministério da Cultura da França concedeu a Le Havre o título de “cidade da Arte e da História”. Através dessa iniciativa a cidade recebeu exposições e eventos com objetivo de divulgação. A condição de cidade portuária, somada ao título recebido, deram significância diferente ao centro reconstruído, atraindo investimentos e criando um circuito turístico em que se destacavam o urbanismo e a arquitetura de Perret (30).
Auguste Perret não apenas teve o papel de projetar a reconstrução da cidade, o arquiteto “transformou Le Havre em uma cidade-monumento, com espaços icônicos, capazes de serem comparados à grandiosa metrópole parisiense, tornando-a a porta de entrada para o oceano” (31). A ideia de ver essa parte moderna central como algo monumental é reportada no Dossiê de candidatura: “Embora se trate de um bem cultural recente, é conveniente levar em consideração as recomendações do Comitê Intergovernamental de antigos centros históricos cuja densidade e qualidade monumentais revelam um conjunto de grande interesse” (32).
A questão da monumentalidade levantada pelos autores e até pelo dossiê é algo associado à arquitetura moderna. Desde a concepção de projeto, existe a necessidade de buscar essa monumentalidade, como afirma Susan Macdonald (33). Isso se relaciona com alguns fatores elencados pela autora, dentre eles o papel da divulgação dessa arquitetura que ganhou o mundo; a ascensão da profissão do arquiteto; o engajamento dos próprios autores em suas obras; e ainda é possível ver como as reconstruções das cidades no pós-guerra tiveram o papel de mostrar ao mundo como esses países que mais sofreram, a exemplo da França, se reergueram.
A abordagem do Dossiê ainda levanta duas questões essenciais. A primeira delas é a busca por situar Le Havre em comparação com centros históricos antigos, na tentativa de atribuir-lhe valor de monumento histórico. Essa mesma estratégia já havia sido utilizada em Brasília ao justificar a sua candidatura colocando-a em comparação com cidades antigas, situação identificada por Jéssica Gomes da Silva (34) ao analisar o Dossiê da capital. Brasília teve o seu reconhecimento no ano de 1987, e na década de 1980 muito se discutia a preservação da arquitetura moderna, ainda mais considerando que a capital brasileira foi a primeira. Porém, se identificam ainda hoje dificuldades em lidar com essa expressão moderna, o que talvez justifique a necessidade de Le Havre, reconhecida em 2005, ter recorrido a esse recurso comparativo com cidades antigas.
Há outra discussão que envolve ver a cidade como um monumento. Esse debate pode ser acompanhado em A Alegoria do Patrimônio de Françoise Choay (35), que lançou luz sobre o processo de reconhecimento do ambiente urbano como algo monumental e consequentemente digno de preservação. Segundo a autora:
“A noção de patrimônio urbano histórico constituiu-se na contramão do processo de urbanização dominante. Ela é o resultado de uma dialética da história e da historicidade que se processa entre três figuras (ou abordagens) sucessivas da cidade antiga. Chamarei essas figuras respectivamente de memorial, histórica e historial” (36).
A autora acrescenta que essa figura memorial seria exatamente “a cidade antiga considerada como um todo que parece, pois, desempenhar, no caso, o papel de monumento histórico” (37). Entende-se assim a necessidade de confirmar Le Havre como um monumento para então poder alçá-la a patrimônio. Dessa forma, ao conferir valor de memória, não só entendendo o centro urbano como algo monumental, no sentido da sua estética e do próprio valor associado ao bem, mas também ao evocar o passado vivido durante a guerra, poderia ser legitimada a candidatura à Unesco.
Após a inscrição na lista de bens franceses para submissão à Unesco em 2001, já em 2002 encontram-se registros das primeiras versões do dossiê de candidatura de Le Havre. Esse documento, intitulado “Le Havre: a cidade reconstruída por Auguste Perret” (38), além de preencher os requisitos obrigatórios que constam na ficha de inscrição, traz detalhado panorama históricos no pré e pós-guerra. Isso serviu como um reforço para a sua inscrição na lista de bens da Unesco segundo os critérios 2 e 4. Também no dossiê houve a tentativa de inscrição sob o critério 1. Segundo consta na descrição da própria entidade os critérios correspondem a:
“1. representar uma obra-prima do gênio criativo humano, ou
2. ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores humanos durante um determinado período ou em uma área cultural específica, no desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, de planejamento urbano ou de paisagismo, ou [...]
4. ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias etapas significativas da história da humanidade, ou” (39).
A justificativa para a tentativa de inclusão do critério 1 faz referência ao trabalho de Perret e sua expressão com o concreto armado. Porém, segundo o Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), esse critério foi recusado pelos seguintes motivos:
“Critério 1: O centro da cidade reconstruído de Le Havre é caracterizado — mais do que por sua estética — pelo uso em larga escala de técnicas inovadoras de construção baseadas em concreto armado e um projeto modular. Embora reconheça a importância disso, o Icomos considera que, no caso de Le Havre, esses temas são cobertos de forma mais adequada pelos critérios 2 e 4” (40).
Essa é uma descrição um tanto quanto genérica e apenas descarta o critério sem maiores explicações. A Cidade Branca de Tel-Aviv também está inscrita sob os mesmos critérios de Le Havre, 2 e 4. Já Brasília foi listada pelos critérios 1 e 2, tendo como justificativa os trabalhos de Lucio Costa com o urbanismo e Oscar Niemeyer com a arquitetura. A discussão envolvendo a valoração de cada cidade poderia entrar em outro debate mais específico. Aqui cabe destacar que Le Havre foi reconhecida por trazer aportes da arquitetura moderna e ao mesmo tempo referências à arquitetura do século 16, também a questão da reconstrução no pós-guerra e os métodos construtivos considerados inovadores e eficientes para aquela situação (41).
Assim, no ano de 2005 Le Havre se tornou a terceira cidade moderna reconhecida pela Unesco como Patrimônio Mundial. Se considerar a década de 1980 como os momentos finais de sua reconstrução, cerca de vinte anos separam essas duas datas, o que significa ver na cidade um percurso para a sua valorização e reconhecimento.
Considerações finais
A trajetória de Le Havre, desde uma cidade destruída após a Segunda Guerra Mundial, até o momento de seu reconhecimento como patrimônio, implicou uma longa jornada de reconstrução e construção de edificações e de significados. Já nos primeiros momentos para reerguer a cidade, os governos local e nacional tiveram papéis essenciais ao organizar a situação e criar diretrizes claras para uma obra de tamanho porte. Ademais, foi necessário lidar com uma população desabrigada e em choque pelos anos de guerra.
Além do apoio e incentivo do governo, Le Havre teve como arquiteto escolhido Auguste Perret, responsável pelo planejamento do centro urbano e de algumas edificações mais importantes. O arquiteto, seguindo um estilo próprio, agregou a sua estética do concreto armado à arquitetura moderna pretendida para a cidade. Assim, houve associação de funcionalidade e estética, criando uma Le Havre única. A monumentalidade hoje vista no conjunto urbano, e que certamente foi uma das justificativas para a sua patrimonialização, já estava presente nos planos iniciais de Perret. Como discutido, o seu planejamento trazia vias largas, edificações pensadas para o conforto e a salubridade, além da intenção de valorização da condição de cidade portuária e, mais recentemente, o papel do turismo como forma de divulgação.
Assim como Brasília e Tel-Aviv, Le Havre já nasce com princípios e diretrizes que a tornaram um centro urbano diferente. Sua arquitetura moderna ao mesmo tempo traz semelhanças com essas cidades, e também apresenta traços únicos, por infinitos fatores. A partir dessa constatação, outras discussões podem ainda ser tecidas sobres essas cidades, de forma comparativa ou não, o que significa ver que não se encerra aqui esse debate acerca da preservação de cidades modernas que são patrimônio e especialmente o caso de reconstruções.
notas
NE — Este artigo é parte de um doutorado em andamento junto à linha de pesquisa Patrimônio e Preservação, área de Teoria, História e Crítica do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília e foi originalmente apresentado no evento 6º Enanparq. SILVA, Jéssica Gomes da; MEDEIROS, Ana Elisabete de Almeida. Le Havre. De cidade reconstruída a patrimônio moderno. Anais do 6º Enanparq, Brasília, FAU-UnB, mar. 2021
1
ETIENNE-STEINER, Claire. Le Havre. Auguste Perret et la reconstruction. Collection « Images du Patrimoine », éd. Connaissance du Patrimoine de Haute-Normandie, 1999.
2
CONSELHO INTERNACIONAL DE MONUMENTOS E SÍTIOS. Carta de Veneza. Veneza, Icomos, 1964 <https://bit.ly/2uzqb69>.
3
ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Património Mundial. Paris, Unesco, 2019, p. 31 <https://bit.ly/3BqThID>.
4
ETIENNE-STEINER, Claire. La demeure urbaine (1517–2017). Le Havre, Lieux dits, 2017.
5
Idem, ibidem.
6
ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Le Havre, La ville reconstruite par Auguste Perret. Proposition d’Inscription du Centre Reconstruit du Havre sur la liste du patrimoine mondial. Paris, Unesco, 2003 <https://bit.ly/3BllC3g>.
7
ETIENNE-STEINER, Claire. Op. cit.
8
ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Le Havre, Patrimoine Mondial, 2005. Lés étapes de la reconstruction. Paris, Unesco, 2014 <https://bit.ly/3PYwAj2>.
9
ETIENNE-STEINER, Claire. Op. cit.
10
ICOMOS. Op. cit. p. 2.
11
UNESCO. Op. cit.
12
ETIENNE-STEINER, Claire. Op. cit. Tradução das autoras.
13
PANTET, Anne. et al. Le chantier de la reconstruction de la ville du Havre. Troisième Congrés Francophone D’Histoire de La Construction, Nantes, 2017.
14
BENEVOLO. Leonardo. História da arquitetura moderna. 4ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2001. p. 325.
15
PANTET, Anne; ELETA-DEFILIPPIS, Roxana; SOLIGNAC, Philippe. Le Havre, habiter et vivre dans un patrimoine Unesco. Normandie Université, Centre de Recherches Interdisciplinaires Habitat- Bâtiment- Béton — CRIHBB de l’Université du Havre; Cerema, 2019.
16
CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA. Carta de Atenas. Atenas, Assembleia do Ciam, 1933 <https://bit.ly/2KDOfuV>.
17
ETIENNE-STEINER, Claire. Op. cit.
18
UNESCO. Op. cit., p. 63. Tradução das autoras.
19
ETIENNER-STEINER, Claire. Op. cit., p. 7. Tradução das autoras.
20
A lei de proteção dos monumentos históricos da França é de 1913. Mas antes, em 1887 foi criado o instrumento de proteção francês, conhecido como classement. Ver BRITO, Mariana Vieira. A política de Patrimônio Francesa: esboçando seu passado e presente. Revista CPC, v. 13, n. 25. 2018. p. 86–111.
21
Quartier Saint-François 2002. Docomomo France <https://bit.ly/3vlf3d6>.
22
GRAVARI-BARBAS, Maria. Patrimonialisation et réaffirmation symbolique du centre ville du Havre. Rapports entre le jeu des acteurs et la production de l’espace. Annales de Géographie, 2004, p. 588–611.
23
GRAVARI-BARBAS, Maria. Op. cit.
24
GRAVARI-BARBAS, Maria. Op. cit, p. 597. Tradução das autoras.
25
GRAVARI-BARBAS, Maria. Op. cit.
26
UNESCO. Op. cit.
27
MACDONALD, Susan. Materiality, monumentality and modernism. Los Angeles, Getty Conservation Institute, 2005 <https://bit.ly/3Jd7c7g>.
28
A manutenção, como pode ser depreendida da interpretação da Carta de Veneza diz respeito às ações de cuidado com o bem que devem ser permanentes, sendo essa uma premissa básica da conservação.
29
GRAVARI-BARBAS, Maria. Op. cit.
30
GRAVARI-BARBAS, Maria. Op. cit.
31
GARGIANI, R. Le Havre de Auguste Perret, ville idéale du béton armé. Faces, 1996, p. 18-22. Apud GRAVARI-BARBAS, Maria; RENARD, Cécile. Une patrimonialisation sans appropriation? Le cas de l’architecture de la reconstruction au Havre. Norois, 2012 <https://bit.ly/3Jfx960>. Tradução das autoras.
32
UNESCO. Op. cit., p. 19. Tradução das autoras.
33
MACDONALD, Susan. Op. cit.
34
SILVA, Jéssica Gomes da. O GT-Brasília na trajetória de patrimonialização da capital. Dissertação de mestrado. Brasília, PPG FAU UNB, 2019.
35
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo, Editora Unesp, 2001.
36
Idem, ibidem, p. 180.
37
Idem, ibidem, p. 180.
38
UNESCO. Op. cit.
39
Representação da Unesco no Brasil. O patrimônio: legado do passado ao futuro. Unesco <https://bit.ly/3JgnIDh>.
40
UNESCO. Op. cit., p. 116. Tradução das autoras.
41
UNESCO. Op. cit.
sobre as autoras
Jéssica Gomes da Silva é arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda pela UNB. Autora da dissertação de mestrado O GT-Brasília na trajetória de patrimonialização da capital (UNB, 2019).
Ana Elisabete de Almeida Medeiros é arquiteta e urbanista pela UFPE, mestre pelo Intitut d´Urbanisme de Grenoble e doutora em Sociologia pela UNB, onde também é professora. Publicou diversos artigos sobre patrimonio cultural, dentre eles, “Por uma prática preservacionista verde da arquitetura moderna” (Revista Patrimônio e Memória, v. 16, 2020).