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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo debate a importância do programa de necessidades participativo e traz como contribuições dispositivos de apoio à interação, capazes de atuar como objetos de fronteira entre os mundos sociais dos diversos atores envolvidos no processo.

english
This article discusses the importance of the participatory architectural program and brings as contributions tools to provide the interaction, capable of acting as boundary objects between the participant’s social worlds.

español
El artículo discútelo la importancia de un programa de necesidades participativo y trae como contribuciones dispositivos de apoyo para interactuar, capaces de actuar como objetos de frontera entre los mundos sociales de los diversos actores involucrados.


how to quote

LIMA, Flávia Schmidt de Andrade; AZEVEDO, Giselle Arteiro Nielsen. Necessidades de quem? Os objetos de fronteira como dispositivos de apoio à participação na construção coletiva do programa de necessidades. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 271.05, Vitruvius, dez. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.271/8676>.

O objetivo do artigo é apresentar os métodos e meios utilizados em uma experiência prática de pesquisa e projeto: a pesquisa-ação como método de investigação para a coexistência dos papéis de pesquisador e projetista em um mesmo ator, e os objetos de fronteira como meios de acesso, tradução e negociação entre diferentes atores.

A oportunidade da pesquisa se deu quando os pesquisadores do Grupo Ambiente Educação — GAE do Programa de Pós Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro — Proarq FAU UFRJ, dedicado a investigações do ambiente escolar e território educativo, foram convidados para desenvolverem um projeto de arquitetura para a construção da terceira unidade de um grupo escolar existente. Além de empreender a Avaliação Pós-Ocupação — APO nas duas primeiras unidades, aquela era também a oportunidade de investigar o processo participativo na idealização do ambiente (e não apenas na sua avaliação), muitas vezes evitada em investigações anteriores do grupo que não estavam associadas a uma real possibilidade de execução, por receio de criar expectativas nos participantes em relação a mudanças que não se concretizariam e acabariam gerando frustrações.

Na primeira reunião os gestores da escola forneceram um programa de necessidades. Na expectativa deles, a primeira etapa de desenvolvimento do projeto seria o estudo preliminar, baseado no programa de necessidades por eles fornecido. Entendendo que o programa de necessidades deveria ser parte integrante e fundamental do desenvolvimento do projeto (1), foi incluído no escopo da proposta uma etapa inicial com o objetivo de construí-lo coletivamente.

Diante da duplicidade de papéis dos pesquisadores/projetistas e o caráter participativo desejado, recorreu-se à pesquisa-ação como método para a investigação. De modo a promover o processo participativo, foram utilizados dispositivos de apoio à interação, capazes de atuar como objetos de fronteira entre os mundos sociais dos diversos participantes promovendo o acesso, a tradução e a negociação entre eles.

A pesquisa-ação como método de investigação

Devido ao duplo papel exercido pelos projetistas/pesquisadores e o caráter participativo desejado, recorreu-se à pesquisa-ação como método. Interventiva e participativa, nela, “os autores de pesquisa e os autores sociais se encontram reciprocamente implicados: os atores na pesquisa e os autores na ação” (2).

Idealizada pelo alemão Kurt Lewin, a pesquisa-ação foi difundida no Brasil principalmente pelo sociólogo Michel Thiollent que a define como:

“Um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo” (3).

Como a investigação se deu concomitantemente ao desenvolvimento do projeto, dissociar os papéis de ator e autor seria uma tarefa árdua ou mesmo impossível. Adotar um método que considerasse uma implicação recíproca entre os autores (também atores) e os atores (também autores) foi uma solução para lidar com a sobreposição de papéis dos pesquisadores/ projetistas.

A pesquisa-ação é comumente confundida com pesquisa participativa. No entanto, nem toda pesquisa participativa é pesquisa-ação. Este é o caso de pesquisas em que os atores são apenas convidados, sem uma postura de co-autoria. A pesquisa-ação proporciona a “participação social, entendida como direito ao exercício de uma ação influente” (4), e tem sido uma busca permanente do grupo de pesquisa ao qual essa investigação é vinculada. Por outro lado, e inversamente, nem toda pesquisa-ação é participativa, podendo ser uma pesquisa pessoal ou uma pesquisa feita “em solitário” (5). O caso em tela, em que participaram ativamente da pesquisa e do projeto tanto os projetistas/pesquisadores quanto os futuros gestores, professores e estudantes da escola, podemos classificar o estudo como uma pesquisa-ação participativa.

Segundo Henri Desroche (6), a pesquisa-ação pode ser classificada em três diferentes tipos, em função de sua relação com a ação e seus atores. Uma pesquisa de explicação é do tipo “sobre”, enquanto uma pesquisa de aplicação é do tipo “para” e uma pesquisa de implicação é do tipo “por”, definindo, respectivamente, diferentes tipos de participação: informativa, usuária e espontânea. A pesquisa relatada contemplou investigações “sobre” as unidades escolares existentes, “para” o projeto de uma nova unidade escolar, realizada “pela” ação conjunta dos atores envolvidos, o que define a participação do tipo integral.

Os objetos de fronteira como meios de interação

Susan Star e James Griesemer (7) introduziram a noção de objetos de fronteira. Os autores definem os objetos de fronteira como:

“Objetos que são plásticos o suficiente para se adaptar às necessidades locais e as limitações dos vários usuários, porém robustos o suficiente para manter uma identidade comum nos diversos ambientes. [...] Mesmo com significados diferentes em diferentes mundos sociais eles são reconhecíveis, funcionando como um meio de tradução, devido a sua estrutura ser comum o suficiente para mais de um mundo” (8).

Pra eles os objetos de fronteira são recursos de comunicação que devem ser desenvolvidos e gerenciados para funcionarem como pontes, mesmo que temporárias, entre os diferentes mundos, maximizando concomitantemente a autonomia entre os diferentes mundos e a comunicação entre eles.

A noção de objetos de fronteira está fortemente relacionada com a complexidade da interação entre os diferentes mundos das especializações técnicas (ou “object world”) presente no trabalho de Louis Buccirelli (9), para quem “o projeto é um processo social”. É por meio dos objetos que atores de diferentes mundos sociais se comunicam e negociam ao longo do desenvolvimento de um projeto.

Pascale Trompette e Dominique Vinck, em um artigo entitulado “Revisiting the notion of Boundary Object” (10), traçaram a carreira acadêmica da noção de Objetos de Fronteira. Segundo os autores, muitas vezes o termo foi utilizado de maneira simplista, deixando de lado a complexidade da interação entre diferentes mundos sociais presente nos estudos de Star e Griesemer. Paul Carlile (11) não deixou de lado essa complexidade. Ele distingue três tipos de atividades exercidas pelos objetos de fronteira e por meio das quais se dá a gestão do conhecimento nas fronteiras: transferência, tradução e transformação. As três diferentes atividades estão relacionadas com três diferentes fronteiras: sintática, semântica e pragmática.

Segundo o autor, a transferência se dá através da fronteira sintática, onde as diferenças e dependências entre os atores são conhecidas, e um léxico comum suficiente é desenvolvido para trocar e acessar o conhecimento. Na fronteira semântica novidades geram algumas diferenças e dependências que não são claras ou significados ambíguos. Aqui faz-se necessária a tradução, ou seja, são desenvolvidos significados compartilhados fornecendo meios de compartilhar e acessar o conhecimento. Os objetos de fronteira aqui são mediadores cognitivos (12). Por fim, na fronteira pragmática os interesses dos atores divergem. Neste ponto, o objeto de fronteira torna-se um mediador social (13).

No caso em tela, os objetos de fronteira atuaram como dispositivos de apoio à interação entre os projetistas/pesquisadores, os gestores, os educadores e as crianças, nas três diferentes fronteiras:

  • Na fronteira sintática, como dispositivos de acesso;
  • Na fronteira semântica, como dispositivos de tradução;
  • Na fronteira pragmática, como dispositivo de negociação.

Nem todos os autores que trabalharam a noção dos objetos de fronteira o fizeram utilizando o mesmo termo. Dominique Vinck e Alain Jeantet introduziram o termo “objetos intermediários” (14). Enquanto a noção de objetos de fronteira compreende uma relação dialógica entre diferentes atores ou mundos sociais, a noção de objetos intermediários inclui a relação dialógica de um ator com a situação que Donald Schön nomeou de “reflexão na ação” (15), incluindo no repertório de diálogos mediados aquele do projetista com o seu projeto. Seja ele um projetista profissional, seja ele um gestor, educador ou mesmo uma criança convidada a colaborar em um processo participativo. Os objetos intermediários registram momentos da “reflexão na ação”, permitindo que esse processo, que é cognitivo, seja acessado por terceiros, ainda que parcialmente.

O processo ciclíco: planejar-agir-observar-refletir

Conforme preconizado na metodologia da pesquisa-ação, a investigação aconteceu de forma cíclica em que a sequência [planejamento — ação — observação — reflexão] se dá em um processo contínuo de retroalimentação. É válido registrar, no entanto, que a observação não se caracterizou como uma etapa em si, se dando durante a ação e de forma integrada à reflexão.

Representação do processo cíclico com quatro etapas preconizado pela metodologia da pesquisa-ação
Elaboração das autoras com base em The action research planner [Deakin University, 1988]

Representação do processo cíclico com três etapas tal qual praticado na investigação
Elaboração das autoras

O desenvolvimento do programa de necessidades previu oficinas com os diversos atores: gestores, professores e crianças, além dos projetistas/pesquisadores. O objetivo das oficinas era superar as barreiras sintáticas, semânticas e pragmáticas entre os diferentes mundos sociais envolvidos. Para promover o acesso, a tradução e a negociação das variadas demandas dos referidos atores, foi utilizado o repertório de dispositivos do grupo de pesquisa e desenvolvidos novos, ampliando tal repertório. Os dispositivos de pesquisa fazem existir o próprio objeto de pesquisa, ou melhor, versões desse objeto, já que os performam de maneiras particulares. Potentes, porém limitados, os dispositivos de pesquisa dão visibilidade a complexidades, mas sempre de forma localizada, parcial e provisória (16).

Devido à distância física entre os municípios de Volta Redonda — contexto do projeto, e Rio de Janeiro — local de origem dos pesquisadores, planejou-se que as diversas oficinas seriam concentradas em dois dias não consecutivos de modo que houvesse tempo para a etapa de planejamento do segundo dia em função das observações e reflexões da ação realizada no primeiro dia.

Planejamento 01

As oficinas do primeiro dia foram planejadas considerando o ferramental usualmente adotado nas avaliações pós-ocupação realizadas pelos grupos de pesquisa GAE e ProLugar (17): entrevistas semi-estruturadas e análise walkthrough com os gestores, e questionários e poema dos desejos (18) com os educadores.

Enquanto a análise walkthrough e o questionário tinham a intenção de avaliar a adequação das unidades existentes, a entrevista e o poema dos desejos tinham a intenção de idealização da nova unidade a ser construída, em uma visão prospectiva. Já considerando que a entrevista e o poema dos desejos são instrumentos normalmente utilizados para escuta das demandas de forma irrestrita, em que o participante elenca requisitos/necessidades/desejos a serem atendidos pelos projetistas, planejou-se a aplicação de um dispositivo adicional que convidasse os participantes a exercitar a prática do projeto, que inclui tomadas de decisão frente a possíveis demandas contraditórias. A atividade proposta, denominada Implant(ação) (19), consistiria em dimensionar e situar os ambientes no terreno disponível, trabalhando coletivamente os desafios da implantação.

Ação 01

A primeira atividade do dia foi a entrevista com oito membros da família gestora da escola, que reunia atores de mundos distintos: pedagógico, administrativo e da construção, pois a família é proprietária também de uma empresa construtora que construiu as duas unidades existentes e construirá a terceira unidade. Todos eles acumulam ainda papéis do mundo dos clientes, já que exercem também os papéis de mãe, pai, tio(a) ou avô(ó) de crianças da escola. Além deles, a atividade contou ainda com a participação da atual coordenadora do ensino médio e da futura coordenadora da educação infantil.

A entrevista trouxe à tona o histórico da instituição e o motivo pelo qual o grupo fazia só agora a expansão para a educação infantil, após se consagrar no ensino fundamental e médio: o rompimento de uma parceria de muitos anos com uma escola de educação infantil da qual foram também sócios fundadores no passado. Quanto às demandas colocadas, centrou-se nas rotinas diárias e festivas de forma prescritiva, considerando as diferenças etárias dos grupos. Notou-se razoável consenso entre as falas dos diversos atores e uma especial preocupação de todos com os momentos de chegada e saída das crianças na escola, tanto no papel de gestores preocupados com questões operacionais, quanto no papel de familiares, preocupados com questões emocionais da despedida das crianças.

Na sequência, os participantes se dividiram em grupos representantes dos diversos mundos para a realização da atividade projetual utilizando o dispositivo Implant(ação), que consistia em um exercício de implantação dimensionando e posicionando os ambientes demandados durante a entrevista no lote. Foi notória a dificuldade dos participantes de lidarem com a representação bidimensional em vista superior. Apesar da dificuldade, as propostas foram realizadas e foi possível observar divergências entre soluções que, em teoria, materializavam as demandas comuns, colocadas de forma consensual na entrevista.

Implant(ação)
Foto Aydam de Paula, 2018

Na sequência, foi realizada a análise walkthrough nas unidades de ensino médio e ensino fundamental existentes. Observou-se que muitos dos desejos colocados na entrevista, tais como abundância de áreas externas, contato com a natureza e espaços coloridos não estavam presentes nas unidades existentes.

Em seguida, realizaram-se as atividades com nove educadoras do ensino fundamental, algumas delas também mães de alunos, que puderam, mais uma vez, dar voz aos anseios desses atores indiretamente. A primeira atividade realizada pelo grupo foi o poema dos desejos (20), em que cada participante escrevia em uma folha individual dez frases que completassem o enunciado “Eu quero que a escola...” e em seguida apresentavam oralmente suas frases, complementando com verbalizações livres. Foi observada, mais uma vez, a forte presença dos desejos de áreas externas, natureza e cores, não percebidas nas unidades em operação, reforçando a contradição relatada anteriormente. Contradições relativas aos desejos entre eles também foram observadas, tais como: contato com a natureza versus limpeza. Ao serem percebidas, tais contradições eram ressaltadas pelos pesquisadores/projetistas e suscitavam alguns debates sobre o entendimento particular de cada indivíduo dos conceitos aparentemente contraditórios.

Por fim, o mesmo grupo respondeu a um questionário com perguntas do tipo múltipla escolha de avaliação das unidades existentes quanto ao: entorno urbano, acessos e percursos, espaços livres, organização dos espaços, parâmetros ambientais, padrão construtivo e oportunidades educativas do edifício. Os pesquisadores/projetistas acompanharam todas as atividades fazendo observações e anotações daquilo que era percebido durante a ação para posterior análise.

Reflexão 01

De volta ao laboratório de pesquisa, novas observações foram realizadas com base no material coletado no campo. Alguns objetos foram processados para darem origem a outros de maior legibilidade. Os poemas dos desejos foram compilados em uma nuvem de palavras de modo a identificar as de maior recorrência. Já os questionários foram compilados em gráficos de barras com uso de cores.

Processamento dos questionários: gráficos de barras
Elaboração Denise Pinheiro, 2018

As contradições notadas durante a ação foram reforçadas. Por exemplo, os “espaços verdes”, expressão mais recorrente nos poemas dos desejos e pouco observado nas unidades existentes durante a análise walkthrough, foram avaliados como “bom” pela maioria dos participantes.

A compilação das demandas expostas durante o primeiro dia de ação apontava ainda para um excesso de ambientes que, considerando a área total construída máxima permitida, resultaria em ambientes pequenos, contrariando a demanda por “espaços amplos” manifestada pelos participantes. O quadro “Programa de necessidades educadores” apresenta os diversos ambientes solicitados pelos educadores.

Programa de necessidades dos educadores
Elaboração Denise Pinheiro, 2018

Foi percebida então a necessidade de incluirmos no segundo dia de oficina atividades que apoiassem a solução das contradições e conflitos, seja pelo esclarecimento das variadas abordagens de um mesmo conceito, seja pela mediação entre propostas divergentes para a construção de acordos. Por fim, houve reflexões sobre o prejuízo que o formato individual trouxe para a atividade do poema dos desejos, seja pela possibilidade de identificar as opiniões pessoais, seja pela pressão por “fazer correto”.

Planejamento 02

Para o segundo dia de oficina com os adultos foram planejadas duas atividades que apoiassem os participantes na visualização das contradições e na construção de acordo a partir delas: uma para a materialização de conceitos abstratos e uma atividade de prática projetual. Para a atividade de prática projetual, a extensa lista de ambientes demandados, como sala de música, biblioteca, laboratório, brinquedoteca etc foram traduzidos em verbos: cantar, tocar instrumentos, ler, fazer experiências, de modo a desconstruir a ideia de “sala de” e permitindo que os verbos fossem arranjados por afinidade, suscitando a proposição de espaços multi-uso.

As crianças que participariam da oficina eram do primeiro ano do ensino fundamental. Para elas foram planejadas duas atividades: uma do tipo mapa mental (21) — referente à outra escola de educação infantil que elas frequentaram no passado — e uma do tipo poema dos desejos (22) — em relação a como elas gostariam que essa escola tivesse sido. Diante da reflexão em relação às dificuldades da atividade individual, optou-se por grandes painéis para o suporte das manifestações coletivas, em ambas as atividades. Na primeira, sobre o passado, optou-se pelo desenho como forma de expressão das memórias revisitadas. Para a atividade propositiva, optou-se pela colagem de imagens pesquisadas em revistas, pois poderiam trazer um repertório mais amplo de situações até então desconhecidas para eles.

Ação 02

O segundo dia de oficinas teve o período da manhã dedicado às atividades com os adultos e o período da tarde dedicado às atividades com as crianças. O grupo de adultos reunia os integrantes da família gestora e uma coordenadora pedagógica. Na primeira atividade, com o objetivo de materializar conceitos abstratos e construir pontes entre os diferentes mundos, foi utilizado o dispositivo Conceitos Ilustrados (23), em que os participantes pesquisavam e recortavam imagens de revistas variadas que ilustrassem o que para eles representavam os termos: natureza, confiança, segurança, agradável, alegre, confortável, funcional, e transformador, todos eles mencionados por eles na entrevista. As imagens selecionadas foram coladas em painéis. Foi curioso observar figuras tão dispares como um capacete, a companhia dos pais e um sabonete bactericida materializando o conceito “segurança”. Além de imagens diversas para um mesmo conceito, observou-se também imagens contrárias para conceitos igualmente desejados: superfícies de inox completamente assépticas representando o conceito “segurança” e estofados e tapetes representando o conceito “agradável” e “confortável”. Frente a essas situações, eram provocadas negociações, tais como priorizar um ou outro conceito em ambientes distintos.

Conceitos ilustrados
Foto Aydam de Paula, 2018

Em seguida, foi tratada a problemática do excesso de ambientes, em contradição com o desejo de ambientes amplos. Foi utilizado o dispositivo Program(ação) (24) em que o programa de necessidades traduzido em verbos pelos pesquisadores deveria ser agrupado pelos participantes por afinidade/complementariedade em ambientes multi-uso, e disposto no arranjo espacial da escola, nos moldes de um diagrama de bolhas.

Program(ação) — agrupamento e arranjo espacial das ações
Foto Aydam de Paula, 2018

Durante as atividades, novas ações foram acrescentadas àquela inicialmente apresentadas pelos pesquisadores, resultando o “programa de necessidades em ações” listado na imagem “Program(ação) — quadro de ações”, que agrupa as ações em diferentes colunas em função do sujeito que a realiza. Cabe esclarecer que muitas das ações listadas se dão na interação de dois ou mais sujeitos: criança-educador, criança-família, educador-família etc. A classificação do sujeito objetiva explicitar o sujeito ativo, protagonista da ação.

Program(ação) — quadro de ações
Elaboração das autoras

Com as crianças foram utilizados os dispositivos Painel cognitivo e Painel dos desejos (25), remodelação, quanto à forma, dos instrumentos mapa mental (26) e poema dos desejos (27). O grupo de crianças que participou foi o dobro do esperado, o que deixou as atividades mais intensas, demandando um esforço extra dos cinco pesquisadores para acompanhar o que as cerca de sessenta crianças faziam ao mesmo tempo. O formato do painel se mostrou muito adequado por sua dimensão coletiva, que resolveu a questão da inércia do papel em branco, resultando inclusive na complementariedade entre as expressões de vários participantes, tanto em desenho quanto em colagens.

Trecho do painel cognitivo “gosto”
Foto Aydam de Paula, 2018

Trechos do painel cognitivo “não gosto”
Foto Aydam de Paula, 2018

Reflexão 02

A atividade realizada com a utilização do dispositivo Conceitos Ilustrados foi muito esclarecedora e suscitou boas reflexões, debates e negociações, se mostrando um efetivo objeto de fronteira. O programa de necessidades em verbos deixou muito claro que ações aparentemente muito diversas como cozinhar, pintar e fazer experiências têm muitos requisitos funcionais em comum, como bancadas, água e facilidade de limpeza, podendo coexistir em ambientes multi-funcionais. Neste caso, incompatibilidades relativas às ambiências é um desafio que o projeto de interiores precisa equacionar.

No Painel Cognitivo, as adjetivações “gosto” e “não gosto” representadas pelos pictogramas de “felicidade” e “tristeza” ajudaram a tornar a atividade do mapa mental também projetiva, considerando-se que é esperado que as representações de “gosto” sejam reproduzidas no projeto e as de “não gosto” evitadas. Considerou-se suficientes as contribuições dos diversos atores acumuladas ao longo dos dois dias de oficina, confirmando como adequado o pré-dimensionamento dos ciclos e autorizando a passagem para o terceiro e último ciclo.

Planejamento 03

O terceiro ciclo tinha como objetivo a concepção arquitetônica da edificação no nível de estudo de massa, a partir do programa de necessidades construído coletivamente. Esse ciclo contou com a participação exclusiva dos projetistas/pesquisadores. Optou-se por utilizar como ferramental um híbrido entre os dispositivos Implat(ação) e program(ação) para os estudos de implantação e arranjos espaciais. Para a validação do que era proposto nos estudos foi utilizado o desenho em software CAD e para apoiar a composição volumétrica e a comunicação da proposta final para os demais atores foi utilizada a maquete física.

Ação 03

O grupo de cinco pesquisadores/projetistas trabalhou nos três objetos de fronteira concomitantemente, de modo cíclico, reproduzindo dentro da etapa a dinâmica de retroalimentação do processo como um todo.

Implant(ação) + program(ação)
Foto Aydam de Paula, 2018

Estudo de massa em planta baixa
Elaboração das autoras

Estudo de massa em maquete
Foto Aydam de Paula, 2018

Reflexão 03

Normalmente, pressupõem-se que o programa de necessidades é uma etapa que antecede a fase de concepção arquitetônica (28). Observou-se, no entanto, que se faz necessário, não só incluir o desenvolvimento do programa de necessidades na concepção, como estendê-lo de modo que haja sobreposição com a etapa de estudo preliminar. Isso porque os arranjos espaciais resultantes do estudo podem demandar novos ambientes ou dispensar ambientes previstos inicialmente no programa de necessidades.

Observou-se que grupo de atores que podem ser considerados como de um mesmo mundo social no que diz respeito à profissão (todos arquitetos projetistas e pesquisadores), podem pertencer a mundos sociais distintos sob outros aspectos, fazendo com que os objetos de apoio à interação exerçam o papel de objetos de fronteira mesmo dentro de um mesmo mundo social.

Resultados

A experiência é meio para que possamos refletir sobre a práxis — dialética entre teoria e prática — da pesquisa e do projeto. Ela coloca em questão o entendimento tradicional de método — impresso na própria etimologia da palavra de caminho pré-estabelecido para se alcançar um objetivo (metá=caminho + hódos=objetivo). No processo cíclico “planejar, agir, observar e refletir” da pesquisa-ação não há caminho pré-determinado, sob pena de não se adaptar às necessidades e oportunidades que a investigação desvela enquanto se desenrola. Nele, o caminho é traçado enquanto se caminha. Não se trata, no entanto, de uma oposição ao meta-hodos, hodos-meta, pois o caminho, apesar de não ser pré-determinado, tampouco é o objetivo. O caminho segue sendo o meio para se alcançar um objetivo. Que no caso em tela são dois:

  • Viabilizar coexistência dos papéis de pesquisador e projetista em um mesmo ator;
  • Construir coletivamente o projeto de uma edificação, com acesso, tradução e negociação das demandas concorrentes de diferentes atores.

Ao longo da investigação foram propostos, aplicados e testados alguns meios de acesso, tradução e negociação, dispositivos de superação de fronteiras sintáticas, semânticas e pragmáticas conceituadas por Paul Carlile (29), que ampliam o ferramental de apoio à participação no desenvolvimento do programa de necessidades. Os dispositivos propostos foram sistematizados e podem ser adaptados a outros contextos ou objetivos em investigações futuras.

Dispositivo: conceitos ilustrados
Elaboração das autoras

Dispositivo: program(ação)
Elaboração das autoras

Dispositivo: painel cognitivo
Elaboração das autoras

Dispositivo: painel dos desejos
Elaboração das autoras

Considerações finais

O artigo apresenta os métodos e meios utilizados em uma experiência prática de pesquisa/projeto para o desenvolvimento de uma escola de educação infantil no município de Volta Redonda RJ no segundo semestre de 2018. O objeto de pesquisa era, ao mesmo tempo, a pesquisa/projeto em desenvolvimento e a prática de pesquisa/projeto.

Os resultados validam a pesquisa-ação como método de investigação em que coexistam em um mesmo ator os papéis de pesquisador e projetista, confrontam a visão de que o programa de necessidades é uma fase que precede o projeto e reafirmam a importância da participação nos projetos como sinônimo de ação influente. Por fim, propõem ferramental de apoio à essa participação: objetos de fronteira que acessam, traduzem e mediam mundos sociais distintos, permitindo a superação das fronteiras sintáticas, semânticas e pragmáticas, da qual a ação influente é dependente.

notas

NA — Agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Capes, pelo financiamento da pesquisa. Ao Grupo Ambiente Educação — GAE, pelas ricas trocas. Aos pesquisadores/projetistas envolvidos na pesquisa-ação: Alain Flandes, Aydam de Paula, Denise Pinheiro e Flora Fernandez.

1
ALVARES, Sandra. Programando a arquitetura escolar: a relação entre ambientes de aprendizagem, comportamento humano no ambiente construído e teorias pedagógicas. Tese de doutorado. Campinas, FEC Unicamp, 2016; KOWALTOWSKI, Doris; MOREIRA, Daniel; DELIBERADOR, Marcela. O programa arquitetônico no processo de projeto: discutindo a arquitetura escolar, respeitando o olhar do usuário. In SALGADO, Monica; RHEINGANTZ, Paulo; AZEVEDO, Giselle; SILVOSO, Marcos (org.). Projetos complexos e os impactos na cidade e na paisagem. Rio de Janeiro, UFRJ, 2012, p. 160–185; ELALI, Gleice; PINHEIRO, José. Relacionando espaços e comportamentos para definir o programa do projeto arquitetônico. Projetar — Seminário Nacional de Ensino e Pesquisa em Projeto de Arquitetura, Natal, 2003.

2
DESROCHE, Henri. Pesquisa-ação dos projetos de autores aos projetos de atores e vice-versa. In THIOLLENT, Michel (org.). Pesquisa-ação e projeto cooperativo na perspectiva de Henri Desroche. São Carlos, Edufscar, 2006, p. 36.

3
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18 edição. São Paulo, Cortez Autores Associados. 2011, p. 20.

4
SARMENTO, Manuel. A criança cidadã: vias e encruzilhadas. Imprópria: Política e pensamento crítico, n. 2, 2012, p. 45–49.

5
DESROCHE, Henri. Pesquisa-ação dos projetos de autores aos projetos de atores e vice-versa (op. cit.).

6
Idem, ibidem.

7
STAR, Susan; GRIESEMER, James. Institutional Ecology, 'Translations' and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley's Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, v. 19, n. 3, 1989, p. 393.

8
Idem, ibidem.

9
BUCCIARELLI, Louis. An ethnographic perspective on engineering design. Design Studies, v. 9, n. 3, 1988, p.159–168.

10
TROMPETTE, Pascale; VINCK, Dominique. Revisiting the notion of boundary object. Revue d'anthropologie des connaissances, v. 3, n. 1, 2009, p. 3–25.

11
CARLILE, Paul. Transferring, Translating, and Transforming: An Integrative Framework for Managing Knowledge Across Boundaries. Organization Science, v. 15, n. 5, 2004, p. 555–568.

12
TROMPETTE, Pascale; VINCK, Dominique. Op. cit.

13
Idem, ibidem.

14
VINCK, Dominique; JEANTET, Alain. Mediating and commissioning objects in the sociotechnical process of product design: a conceptual aproach. Management and new technology, 1995, p. 111–129.

15
SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo. 1ª edição. Porto Alegre, Artmed, 2000.

16
COSTA, Rodrigo; GOMES, Rafael; MENDONÇA, Daniel. Modos de leitura e imersão do/no território. In AZEVEDO, G (org.). Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação. Rio de Janeiro, Paisagens Hibridas, 2020. p. 92–103.

17
RHEINGANTZ, Paulo; AZEVEDO, Giselle; BRASILEIRO, Alice; ALCANTARA, Denise; QUEIROZ, Mônica. Observando a qualidade do lugar: procedimentos para a avaliação pós-ocupação. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009.

18
SANOFF, Henry. School Building Assessment Methods. Washington, National Clearinghouse for Educational Facilities, 2001.

19
LIMA, Flávia; PINHEIRO, Denise. Fronteiras semânticas e pragmáticas na concepção participativa: dispositivos de superação. In AZEVEDO, G (org.). Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação. Rio de Janeiro, Paisagens Hibridas, 2020, p. 252–268.

20
SANOFF, Henry. Op. cit.

21
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins fontes, 1997.

22
SANOFF, Henry. Op. cit.

23
LIMA, Flávia; PINHEIRO, Denise. Op. cit.

24
Idem, ibidem.

25
Idem, ibidem.

26
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade (op. cit.).

27
SANOFF, Henry. Op. cit.

28
PEÑA, Willian; PARSHALL, Steven. Problem Seeking: An Architectural Programming Primer. New York, John Wiley & Sons, 2001; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 13531: Elaboração de projetos de edificações — Atividades técnicas. São Paulo, ABNT, 1995.

29
CARLILE, Paul. Op. cit.

sobre as autoras

Flávia Lima é professora adjunta da  Faculdade de Engenharia da UERJ, doutora em Arquitetura (Proarq UFRJ, 2021), mestre em Engenharia de Produção (Coppe UFRJ, 2013), arquiteta e urbanista (FAU UFRJ, 2006). Profissional com experiência no projeto e execução de diversas escolas e autora de dois artigos na coletânea Diálogos entre arquitetura, cidade e infância: territórios educativos em ação (2019).

Giselle Azevedo é professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Vice-coordenadora e docente da Pós-graduação em Arquitetura e coordenadora do Grupo Ambiente-Educação na mesma universidade. Doutora em Engenharia de Produção (Coppe UFRJ, 2002), mestre em Arquitetura (Proarq UFRJ, 1995) e arquiteta (UFF, 1988). Autora e organizadora de diversos livros sobre edifício escolar e território educativo.

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271.00 conforto ambiental

Contribuições da arquitetura árabe para os elementos de controle solar da arquitetura brasileira

Egon Vettorazzi, Helenice Maria Sacht, Katia R. G. Punhagui and Patricia S. Teixeira

271.01 gênero e arquitetura

Ilustres desconhecidas: a trajetória das arquitetas no Recife

Uma reflexão sobre gênero e estratégias profissionais em arquitetura

Maria Luiza Rocha Mariz Valença, Guilah Naslavsky and Rafaela Silva Lins

271.02 arquitetura moderna brasileira

Jardim do Embaixador

Uma análise temática de casas de campo projetadas por Oswaldo Bratke

Marcelo Leite

271.03 projeto de arquitetura

Representação não geométrica como ponto de partida do projeto arquitetônico em experimentações na Amazônia

Ana Kláudia de Almeida Viana Perdigão, Tainá Marçal dos Santos Menezes and Rosineide Trindade da Paixão

271.04 arquitetura colonial

Artífices escravos, libertos e livres no campo da construção em São Paulo colonial

O caso de Tebas

Carlos Gutierrez Cerqueira

271.06 significância cultural

As dimensões turísticas da construção do Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas

A declaração de significância cultural como instrumento de gestão

Anamaria Canuto Sales de Oliveira and Ana Paula Farah

271.07 participação popular e cidadania

Projetos de participação popular e a construção da cidadania

Gabriela Capuano Pedro and Alessandra Natali Queiroz

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