Oswaldo Arthur Bratke (1907–1997) foi um arquiteto que, apesar de sua extensa, criativa e particular obra, sempre acabou relegado a um papel um tanto coadjuvante na historiografia da arquitetura brasileira, sobretudo por conta de sua relativa distância do cânone carioca que, por muitos anos, definiu de forma unívoca a arquitetura moderna nacional. Além disso, em sua carreira ainda há pontos que permaneceram um tanto obscuros, caso das obras realizadas nos anos 1930 e 1940. Bratke não teve uma grande preocupação em manter um registro completo de sua produção, e tal como seu contemporâneo Eduardo Kneese de Mello (1906–1994), aparentemente “deixou de reconhecer valor nessa primeira produção, logo depois de sua conversão ao movimento moderno” (1).
Constatando as lacunas ainda existentes a respeito de sua trajetória, que diversos estudos a partir da década de 1990 se propuseram a solucionar, resolvemos oferecer uma contribuição por meio de nossa pesquisa de mestrado (2). E, como morador da cidade de Campos do Jordão (3), não poderia haver objeto mais pertinente que o bairro jordanense Jardim do Embaixador, cujo plano urbanístico e a concepção das primeiras casas de campo ficaram a cargo de Bratke, a partir de 1944.
Num momento em que o governo estadual realiza uma série de investimentos em infraestrutura hoteleira e planejamento urbano com o objetivo de incentivar a atividade turística em Campos do Jordão, o Jardim do Embaixador foi idealizado “tendo em vista construções do tipo residencial campestre, de fino gosto” (4). Nosso estudo pretendeu contribuir para um melhor entendimento de Bratke enquanto arquiteto empreendedor, que adquire terras, elabora um plano de arruamento baseado nos preceitos de bairros-jardins, incentiva parentes, amigos e conhecidos a comprar terrenos e projeta e constrói as primeiras habitações.
O Jardim do Embaixador é a primeira iniciativa consistente e sistemática de Bratke como urbanista. Antecede, por exemplo, a Ilha Porchat no litoral paulista, o Morumbi em São Paulo e as vilas Serra do Navio e Amazonas, no Amapá. Em nossa pesquisa, constatamos que a atuação do arquiteto no bairro foi bastante expressiva: foram seis estudos para casas de campo publicados na revista Acrópole (todos não construídos), seguidos pelo plano urbanístico e o projeto de um restaurante na quadra central da localidade (pensados como norteadores de um conjunto) e por fim, muito provavelmente, duas dezenas de habitações, criando um acervo que até hoje se destaca do clichê arquitetônico da cidade.
Nossa pesquisa obteve fontes primárias inéditas junto ao arquivo de projetos da prefeitura municipal jordanense: o memorial do plano de urbanização, uma lista com os nomes dos dezenove primeiros proprietários e três conjuntos de desenhos técnicos referentes a edificações no bairro. O quarto capítulo da dissertação faz uma descrição do acervo construído pelo arquiteto no Jardim do Embaixador, que pretendemos aqui sintetizar.
Através da análise temática das implantações, uso de espaços, desenvolvimento de aberturas e coberturas, e emprego de materiais tradicionais (madeira e pedra) junto com novos (vidro e telha de fibrocimento), identificamos continuidades e rupturas entre o que Bratke estava fazendo antes do Jardim do Embaixador e o que iria fazer depois. E, no panorama internacional, constatamos semelhanças físicas, conceituais e cronológicas com as habitações em madeira de Marcel Breuer (1902–1981) nos Estados Unidos, as casas usonianas de Frank Lloyd Wright (1867–1959) e as modernas residências californianas, temática já estudada pelo professor Hugo Segawa (5).
Nosso trabalho com foco no Jardim do Embaixador, além de analisar a primeira experiência do tipo na trajetória profissional de Bratke, trouxe à tona algumas características peculiares: na carreira do arquiteto, o programa da casa de campo e estratégias de conforto para clima frio; e na arquitetura brasileira em geral, a temática do abrigo rústico de montanha e o protagonismo da madeira como material construtivo. Pontos que o arquiteto atendeu com qualidade e que, justamente por isso, não merecem permanecer incógnitos.
Implantações
Bratke se deparou com dois tipos de terrenos no Jardim do Embaixador: alguns praticamente planos, correspondendo a topos de morros e pequenas planícies próximas a um curso d´água; e outros com topografia acidentada e inclinações consideráveis, sendo desenvolvidas duas estratégias de implantação. Em ambos os casos, foram respeitados alguns preceitos dos bairros-jardins, tais como a baixa taxa de ocupação do lote e a preocupação em manter a maior parte do terreno vegetada e permeável.
A implantação nos lotes praticamente planos, mais simples, envolvia quase nenhuma movimentação de terra. Pequenos desníveis eram regularizados por uma base de pedra — que também servia de fundação para a estrutura — em alguns casos formando um platô sobre o qual se assentava a construção, tal como vemos na Casa Paschoal Scavone (6). Marcel Breuer adotou estratégia similar em algumas das residências projetadas por ele nos Estados Unidos entre o fim dos anos 1930 e os anos 1950 como, por exemplo, a Casa John Hanson.
A esse respeito o pragmático Bratke justificou para Geraldo Ferraz que “a necessidade de se conservar a casa destacada do chão, preservando-se assim a construção da umidade [é apenas] uma condição intemporal de habitabilidade” (7), sobretudo nesse caso, em que são feitas em madeira. Simbolicamente, James Ackerman (8) lembra que esse pódio também representa um distanciamento do cenário natural. Há então, em alguns projetos de Bratke, certa ambiguidade: o arquiteto concebe um edifício “ligado ao meio que o circunda”, ao mesmo tempo em que ele se encontra “ligeiramente desligado do solo” (9).
Outro interessante exemplo de desligamento ocorre na fachada frontal da Casa Firmino Whitaker, que se encontra elevada do terreno cerca de 40 centímetros, transmitindo ao observador, sob alguns pontos de vista, a impressão de que a moradia flutua sobre o solo. Esse efeito ilusório se relaciona com “a característica visual do[s] bungalow[s] [de transmitir a] impressão de leveza e de fácil montagem” (10).
Nos terrenos acidentados, a implantação foi pensada de forma mais cuidadosa, tirando “partido dos acidentes topográficos locais e [reduzindo] ao máximo os movimentos de terras” (11), aspecto notado por Maria Lúcia Bressan Pinheiro em seu estudo sobre a arquitetura paulistana em meados do século 20. No início da década de 1940 Bratke já experimentava essa relação da edificação com o sítio, como na casa da rua Rio de Janeiro, em Higienópolis.
Em alguns casos o acesso principal se dá pela parte mais alta dos lotes, que se encontra ligada à via. Com essa escolha, as vistas mais amplas — e consequentemente as maiores aberturas — ficam voltadas para o interior do terreno, ao passo que a frente da residência é recuada da rua e mais fechada — de forma a garantir mais privacidade aos moradores — tal como ocorre nas casas usonianas construídas nos Estados Unidos entre os anos de 1930 e 1950. Alguns exemplos são a ausência de janelas na frente da Casa Noé Ribeiro, ou a malha de brises quadrados que oculta as janelas frontais da Casa Firmino Whitaker.
Usos do espaço
O programa básico original das casas no Jardim do Embaixador era geralmente um grande ambiente de estar e jantar, uma cozinha e dois ou três dormitórios. Eventualmente, poderiam existir também garagem, área de serviço, instalações para empregados e espaços extras de lazer, tais como terraços, caramanchões ou uma sala de uso mais informal ou íntimo, denominada por Bratke como sala da família em alguns de seus projetos paulistanos. Os dois primeiros estudos para casas de campo em Campos do Jordão, publicados pelo arquiteto na edição de abril de 1944 da revista Acrópole mostram esse programa se desenvolvendo em um ou dois pavimentos, com a já comentada adaptação ao terreno e plano único de cobertura.
Em planta, percebemos algumas das mudanças em curso na arquitetura residencial do século 20, como a “integração entre sala de estar e de refeições” (12) e a tendência à “compartimentação por [meio de] móveis e painéis deslizantes” (13). Na morada para Adhemar de Campos, por exemplo, a separação entre quartos é feita com armários embutidos e esbeltos planos de madeira. Já na Casa Firmino Whitaker, “os quartos eram interligados à sala com grandes painéis de correr, e quando abertos havia integração total dos ambientes” (14). Posteriormente, a Casa Oswaldo Bratke da rua Avanhandava em São Paulo (1947), com os aspectos mencionados, se tornaria uma síntese-propaganda de sua arquitetura, ao ser publicada em Arts & Architecture (15).
O interior das casas no Jardim do Embaixador se assemelha ao de uma cabana. Há madeira no assoalho, nas paredes, no teto e nos móveis, criando um ambiente confortável para vencer o frio da Serra da Mantiqueira, junto às onipresentes lareiras de pedra. E além de seu caráter funcional, de acordo com Érica Sogbe (16), as lareiras também carregam conotações antropológicas, simbólicas e formais, às quais Bratke — assim como Breuer, Wright e diversos discípulos ou admiradores desse último na Califórnia das décadas de 1930 a 1950 — certamente não estava alheio. Explicamos: as lareiras servem como um ponto para união familiar e podem até representar um genius loci, além de atuarem como um “núcleo expressivo da habitação” (17), na visão de Christian Norberg-Schulz.
Nas cozinhas, é possível que os projetos originais especificassem fogões industrializados à lenha — como vemos nas casas Paschoal Scavone e Adhemar de Campos — já que o combustível seria muito mais abundante que o gás na Campos do Jordão dos anos 1940 e seriam menores e mais adequados às cozinhas compactas das habitações. O binômio lareira-fogão também poderia funcionar como pontos de um sistema de calefação. O arquiteto Roberto Bratke, filho de Oswaldo, recorda-se de que as paredes da casa de campo da família eram, de alguma forma, aquecidas.
Na planta da Casa Adhemar de Campos e nas ruínas da Casa Paschoal Scavone, também constatamos que havia uma única parede hidráulica, estrategicamente posicionada entre a cozinha e o banheiro. Tal decisão poderia simplificar o processo de construção, tornando-o mais rápido e econômico. Tal solução também foi empregada por Bratke nas habitações operárias das vilas mineradoras Serra do Navio e Amazonas (1955–1960).
Aberturas
No Jardim do Embaixador, Bratke criou na fachada frontal da Casa Firmino Whitaker uma malha de brises móveis pivotantes que protege os moradores de olhares indesejados vindos da rua e do sol da manhã, além de conferir dinamismo à composição. Como visto anteriormente, essa forma de tratamento da fachada frontal é comum na linguagem moderna: o arquiteto californiano Harold Bissner (1925–2020) usou um esquema parecido em sua própria residência, construída por volta de 1949. Bratke posteriormente aprimorou esse elemento de vedação das janelas, com os brises pivotantes se transformando em palhetas móveis basculantes, como visto nas vilas mineradoras Serra do Navio e Amazonas.
Duas soluções com uso de vidro no Jardim do Embaixador merecem atenção. Na primeira, uma malha de caixilhos que ocupa quase todo o pé-direito, como vemos idealizado no terceiro “Estudo para casa de campo em Campos do Jordão”, de abril de 1944, e executado na Casa Firmino Whitaker. Sobre essa última, Fernando Serapião observou que “as aberturas [...] lembram, curiosamente, as que Lucio Costa adotou na área social de seu hotel” (18) no Parque São Clemente em Nova Friburgo (1944). Identificamos também semelhança com a fachada posterior do Pavilhão Aricanduva de Bratke em São Paulo (1945), a qual é similar às desenvolvidas por Richard Neutra (1892–1970) em Porto Rico (1944) (19).
Numa segunda solução, algumas janelas têm a forma de bay windows, ampliando a iluminação natural e a relação visual com o exterior. A mais interessante dessas é a da casa Armando Ciampolini, cujos caixilhos possuem inclinação de cerca de 105° em relação ao piso interno, criando uma sensação espacial mais dinâmica, semelhante à percebida na casa-ateliê do arquiteto californiano Quincy Jones (1913–1979), construída em Los Angeles em 1938.
Outra edificação que faz uso de um plano envidraçado inclinado é o Restaurante Jardim do Embaixador, infelizmente demolido na década de 1990, à semelhança de outros estabelecimentos similares, com vista panorâmica, que empregam uma linguagem simultaneamente rústica e moderna, com “combinação de materiais e técnicas vernáculas à uma concepção estrutural que busca a transparência do espaço” (20), segundo o pesquisador Anderson Dall’Alba.
Conforme Hugo Segawa, as interessantes mãos francesas existentes na fachada principal do restaurante, além de elementos de sustentação do telhado, eram parte de um “sistema de caixilhos inventado pelo arquiteto [que] compunha-se de planos envidraçados que, ao serem destravados, abriam por gravidade” (21). Tal solução foi incorporada por Bratke também nas casas Adhemar de Campos e Edmundo Sansone, no Jardim do Embaixador. E posteriormente, na fachada frontal do Pavilhão Aricanduva e no ateliê do arquiteto na rua Avanhandava, na capital paulista.
Estruturas e acabamentos em alvenaria
Em Campos do Jordão, Bratke optou pelo tijolo em poucos fechamentos, como nas paredes laterais do projeto de uma pensão não construída, publicada na edição de maio de 1944 da revista Acrópole como o quarto “Estudo para casa de campo em Campos do Jordão” (22). O material acabou preterido pela pedra, o que pode ser explicado por duas razões. A primeira delas, de ordem econômica, pois a rocha seria um material de mais fácil obtenção na Campos do Jordão dos anos 1940, onde a pedreira municipal realizava explosões diariamente e fornecia aos construtores locais as quantidades necessárias de pedra britada, em suas diversas especificações. O tijolo, por sua vez, vinha das cidades do Vale do Paraíba, e subia a serra nos vagões da ferrovia, o que certamente resultava num custo mais elevado.
Apontado o fator financeiro, a outra razão está no fato de que a pedra no Jardim do Embaixador acentuaria o imaginário de cabana na montanha presente na concepção do bairro. As rochas foram utilizadas abundantemente por Bratke: presentes desde os primeiros esboços, como no quinto “Estudo para casa de campo em Campos do Jordão”, publicado na edição de julho de 1944 da revista Acrópole, elas protegem os fechamentos de madeira da umidade do solo, como visto na Casa Noé Ribeiro, já que são fundação e pavimentação externa de praticamente todas as primeiras construções do bairro; e eventualmente, também dão forma a pilares ou paredes. E, retomando o aspecto simbólico discutido anteriormente, é nas lareiras que o uso da pedra se destaca devido à aparente contradição de sua rusticidade no interior de um ambiente doméstico destinado às classes médias e altas.
O uso da pedra no Jardim do Embaixador também dialoga com as obras de Marcel Breuer nos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1950. Segundo Abílio Guerra, o húngaro fez uso de “paredes de pedra — erguidas com técnicas diferentes, com juntas a seco ou com reboco”, de rochas em embasamentos (como comentado na parte sobre implantações) “e muros externos” (23). Nas obras de Bratke fora de Campos do Jordão, distantes do “imaginário campestre”, o uso da pedra se mantém. Na visão de Anderson Dall’Alba, os planos de madeira que são os fechamentos predominantes no bairro jordanense (como veremos a seguir) “são substituídos pelo tijolo aparente ou por blocos pré-fabricados de elementos vazados”, enquanto que “a pedra bruta é mantida de maneira recorrente como elemento de contenção ou revestimento nos planos externos dos níveis inferiores” (24).
Estruturas e acabamentos em madeira
Principal material utilizado por Bratke no Jardim do Embaixador, a madeira é onipresente nas paredes, esquadrias e elementos de sustentação dos telhados. A abundância e facilidade de obtenção dessa matéria-prima na Campos do Jordão dos anos 1940 certamente contribuiu para o uso ostensivo desse material, além do já mencionado “imaginário de montanha” por trás da concepção das “cabanas”. O arquiteto tinha ainda um “especial interesse pelo trabalho em madeira” (25), confessado numa entrevista realizada na década de 1950, e era reconhecido como um dos profissionais “com maior discernimento sobre o uso da madeira” em sua geração, segundo testemunho de Zanine Caldas (26).
Conforme Marcos Cereto a madeira, material de ampla utilização na construção nacional, foi aos poucos “incorporada ao modus operandi da arquitetura moderna brasileira” (27). E as casas de campo foram um importante vetor para a experimentação e a assimilação desse e de outros materiais ditos tradicionais a um “repertório moderno”. Ainda de acordo com o autor, a madeira no contexto nacional de meados do século 20 serviu para mostrar que o conceito de modernidade “não estava relacionado a um único material”, mas sim à uma associação entre “o pitoresco, o transitório, o bucólico e a tradição” da madeira, da pedra e do tijolo com o gradativo desenvolvimento tecnológico do concreto, do aço e do vidro. Juntos, os materiais do passado e do presente criariam configurações espaciais inéditas até então.
Assim, de uma forma pouco usual na arquitetura moderna brasileira, a maioria dos fechamentos no Jardim do Embaixador foi feita em madeira, com base nos sistemas balloon framing e timber framing. O balloon framing, popular nos Estados Unidos, foi empregado nas áreas “secas” (salas e quartos) das construções no bairro. Já o timber framing, também conhecido como enxaimel, é uma técnica comum na Alemanha. As principais diferenças entre timber framing e balloon framing residem no fato do primeiro ser uma técnica mais antiga e tradicional, empregando tijolos ou pedra no espaço entre as travessas de madeira. Algo similar, envolvendo o uso de telas metálicas e reboco, como vemos nas ruínas da Casa Paschoal Scavone, foi usado por Bratke nas áreas molhadas (cozinhas e banheiros) das habitações no Jardim do Embaixador. Posteriormente, o arquiteto voltaria a optar por estruturas de madeira nas vilas Serra do Navio e Amazonas.
Externamente, são identificáveis no Jardim do Embaixador dois tipos de pranchas de madeira: as lisas e as costaneiras. Essas últimas são as mais recorrentes, talvez por transmitirem melhor ao observador a ideia de um abrigo rústico. As tábuas lisas, por sua vez, se associam mais fortemente à arquitetura doméstica norte-americana de meados do século 20 e à casa que Bratke construiu para si mesmo na rua Avanhandava. Internamente, as duas formas de acabamento em madeira também estão presentes, bem como na forma de painéis. A combinação de costaneiras com painéis lembram as escolhas de Le Corbusier para o petit cabanon, uma cabana-refúgio que o franco-suíço construiu para si mesmo na cidade litorânea de Roquebrune-Cap-Martin, França, em 1951.
Constatamos nas habitações ainda existentes (ou que possuem algum registro a cores, caso da antiga residência de campo do arquiteto, demolida em 2011) que a opção por pintar a madeira (ou os tijolos) com tonalidades fortes foi uma unanimidade no Jardim do Embaixador. Na paleta de Bratke encontramos variações de marrom, os extremos branco e preto e cores quentes como vermelho, laranja e amarelo, as quais criam um interessante contraste com a gama de verdes da natureza que cerca os terrenos e o intenso azul do céu nos dias de inverno sem nuvens. O marrom, o preto e o vermelho escuro dos fechamentos externos, além de servirem como uma proteção à madeira, absorvem grande parte da energia solar, transmitindo mais calor para o interior da edificação, algo benéfico em climas frios como o jordanense.
O uso da cor aproxima Bratke de Marcel Breuer, que também pintava algumas superfícies de seus projetos com tons semelhantes aos usados pelo arquiteto paulista. Em uma análise mais atenta, as cores fortes no bairro jordanense (bem como as coberturas, que veremos a seguir) podem ser consideradas como elementos de distanciamento do cenário, gerando “por contraste, uma relação de autonomia com o entorno natural” (28), na visão de Anderson Dall’Alba. Em contrapartida, a implantação e o uso da pedra são ferramentas do arquiteto para aproximar sua arquitetura da paisagem original, o que acaba por gerar uma relação ambígua de “envolvimento-distanciamento” conforme os estudos de Ackerman (29).
Em entrevista concedida a Fernando Serapião (30), Roberto Bratke especula que o pintor Francisco Rebolo Gonsales pode ter pintado algumas casas no Jardim do Embaixador, uma vez que, segundo Roberto, Rebolo também possuía uma empresa de pintura. Se assim for, a parceria de Bratke com o pintor perdurou até os anos 1950, pois ambos trabalharam junto nas vilas Serra do Navio e Amazonas. Segundo o depoimento de Oswaldo para Hugo Segawa, Rebolo elaborou um estudo cromático para as edificações do empreendimento, com intuito de criar uma variação de cores que evitasse monotonia.
Supomos que tal cuidado também teria sido uma preocupação no bairro jordanense. Pois apesar de formaram uma vizinhança e compartilharem materiais e elementos arquitetônicos semelhantes, cada unidade deveria ter um aspecto próprio: era desejável que o grupo de casas não se parecesse com um conjunto seriado, e acreditamos que Bratke conseguiu criar uma linguagem coesa sem se tornar repetitiva.
Coberturas
Em relação às coberturas das edificações produzidas pela Bratke & Botti entre a década de 1930 e princípios da década de 1940, Mônica Junqueira de Camargo observa que “no início, os telhados eram invariavelmente de duas ou quatro águas [em] telhas francesas ou capa-e-canal” (31). Porém, no fim dos anos 1930 o arquiteto inicia os experimentos com outras soluções de cobertura, variando os materiais, inclinações e formatos usados nos telhados. A Casa Augusto Sampaio, por exemplo, é uma das primeiras residências de Bratke com telhado em uma água.
No Jardim do Embaixador, protegendo o madeiramento das paredes, o arquiteto utiliza beirais amplos, como o visto na Casa Adhemar de Campos, em alguns casos aproveitados como terraços, um convite para atividades ao ar livre, como o tradicional chá da tarde na varanda do restaurante no centro do bairro. Ao invés de telhas cerâmicas, Bratke optou pelas de fibrocimento, permitindo declividades pouco acentuadas e, como notou Serapião, evidenciando preocupação com a “industrialização dos componentes construtivos, influenciado por norte-americanos da Costa Oeste” (32).
Além da semelhança com a arquitetura californiana, as telhas de fibrocimento já na década de 1940 poderiam ser mais econômicas, contribuindo para baratear os custos da construção. E por serem isolantes térmicas, ajudariam a manter o ambiente interno aquecido, protegido das baixas temperaturas comuns na Serra da Mantiqueira. Também com essa escolha o mestre paulista subverteu em Campos do Jordão um dos clichês da arquitetura de montanha: o telhado de alta declividade, próprio para neve.
Mesmo ao usar a cobertura em duas águas simétrica (ou tradicional), o arquiteto adota uma inclinação mais baixa do que o usual no restante da cidade naquela época e atualmente, como vemos na Casa Firmino Whitaker. Obviamente esse telhado em duas águas com baixa declividade não desapareceu do repertório de Bratke ao longo de sua carreira, sendo utilizado sempre que conveniente, como na ampla maioria das edificações nas vilas Amazonas e Serra do Navio. Na igreja dessa última, os suportes inclinados de sustentação da cobertura ecoam os pensados para o restaurante jordanense.
Dentro de um repertório moderno, vemos o arquiteto empregando as coberturas: em duas águas assimétricas (sem cumeeira, conhecida como tipo americano), no projeto para a pensão não construída; em duas águas invertida (borboleta) ou em plano único (uma água). O restaurante e a Casa Armando Ciampolini parecem ter sido as primeiras obras em que Bratke executou telhados borboleta, talvez inspirado pelas obras de Niemeyer na Pampulha (o Iate Clube e a Casa JK), ou mesmo diretamente pela Casa Errazuriz, projeto chileno de Le Corbusier desenvolvido em 1930.
Curioso notar que os três casos, Errazuriz, Pampulha, Jardim do Embaixador, giram em torno de um programa voltado ao lazer: uma casa de campo isolada, um bairro-jardim metropolitano com diversos atrativos e um bairro-jardim com casas de campo, respectivamente. Fato que corrobora as hipóteses defendidas nas teses de Junqueira de Camargo e de Bressan Pinheiro de que “o aspecto lúdico e alternativo” (33), informal e descompromissado das arquiteturas de lazer tornaram esse tipo de programa “um vetor privilegiado para a experimentação de inovações” (34).
Após o Jardim do Embaixador, o mestre paulista empregaria o telhado borboleta em outras obras, entre elas o Pavilhão Aricanduva e a casa rua Avanhandava. Contudo, é o plano único de cobertura que aparece na grande maioria das edificações do bairro jordanense, entre elas o sexto e último “Estudo para casa de campo em Campos do Jordão”, publicado na edição de julho de 1944 da revista Acrópole. Bratke pode ter feito um uso maior do plano único no Jardim do Embaixador com um duplo intuito de evidenciar primitivo e moderno. O primeiro conceito ficaria exposto pela associação do tema da cabana rústica de montanha com a ideia de abrigo simples, quase primordial. Já o segundo, pela telha de fibrocimento e suas baixas inclinações funcionarem como experimentos iniciais ou prenúncios de lajes planas.
Considerações finais
Nossa pesquisa buscou resgatar a importância do bairro Jardim do Embaixador para a ampliação do conhecimento da obra de Bratke. Ao focar uma produção que ficou à margem dos trabalhos sobre o arquiteto, esse trabalho insere-se na trilha aberta por inúmeras pesquisas realizadas nos últimos trinta anos, que vêm problematizando a arquitetura moderna brasileira. Trata-se de questionar o paradigma unívoco que por muito tempo existiu, bem como reconhecer outras expressões do moderno no país.
Ao apresentarmos e comentarmos as edificações que foram nosso objeto de estudo, as quais formam um todo coeso estética e construtivamente, ainda que cada unidade tenha aspecto próprio, ampliamos a relevância da produção arquitetônica de Bratke no Jardim do Embaixador, certamente mais expressiva do que apenas meia dúzia de edificações. Trata-se de um acervo construído numa década importantíssima para a arquitetura brasileira, pautada em experimentalismos e na qual ocorre uma gradativa incorporação de espaços, elementos e estéticas modernas, juntamente com o emprego de novas tecnologias.
O trabalho de campo por nós realizado revelou uma arquitetura singela, peculiar, diversa e rica, que esperamos que essa pesquisa possa tornar mais visível e reconhecida. As interessantes semelhanças entre o Jardim do Embaixador e as produções de norte-americanos e europeus radicados nos Estados Unidos no mesmo período, como as casas de madeira de Marcel Breuer e as usonianas de Frank Lloyd Wright, mostram que, apesar do evidente diálogo, as obras de Bratke se desenvolveram de uma forma muito particular e autônoma, provando que a linguagem moderna na arquitetura dos países ditos periféricos não é necessariamente uma simples versão modificada daquela dos países ditos centrais.
Tanto o arquiteto brasileiro quanto Breuer, Wright e os californianos (nesse texto representados por Neutra, Jones e Bissner) empreenderam significativas transformações nos espaços domésticos de suas regiões de atuação ao longo dos anos 1930 a 1950. Entre elas estão a criação de espaços internos mais integrados, informais e racionais, e o desenvolvimento de sistemas construtivos cada vez mais práticos, rápidos e econômicos.
notas
NE — Este artigo foi apresentado no 11º Seminário Docomomo Brasil. LEITE, Marcelo. Arquitetura moderna na Mantiqueira: os experimentos de Oswaldo Bratke em Campos do Jordão nos anos 1940. Anais do 11° Seminário Nacional do Docomomo Brasil, Recife, Docomomo BR, 2016.
1
REGINO, Aline. Eduardo Kneese de Mello: do eclético ao moderno. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU USP, 2011, p. 3. Grifo do autor.
2
Realizada entre 2016 e 2018, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo — Fapesp e orientação da professora doutora Leticia Coelho Squeff. LEITE, Marcelo André Ferreira. Jardim do Embaixador: uma arquitetura experimental de Oswaldo Bratke nos anos 1940. Dissertação de mestrado. Guarulhos, EFLCH Unifesp, 2018.
3
Cidade turística paulista na região da Serra da Mantiqueira, com população atual de cerca de 52 mil habitantes.
4
BRATKE, Oswaldo; RIBEIRO, Noé. Memorial descritivo do plano de urbanização da gleba de terreno conhecida como Homem Morto, em Campos do Jordão. São Paulo, Sociedade de Imóveis e Melhoramentos Ltda., 1944, p. 1–2.
5
Em SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme. Oswaldo Arthur Bratke: a arte de bem projetar e construir. 2ª edição. São Paulo, PW Editores, 2012 e SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900–1990. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 1999.
6
Ao longo do texto serão citados apenas os nomes dos primeiros proprietários das residências.
7
FERRAZ, Geraldo. Novos valores na arquitetura moderna brasileira 2 — Oswaldo Bratke. Habitat, n. 45, nov./dez. 1957, p. 21–36.
8
ACKERMAN, James. The villa: form and ideology of country houses. Princeton, Princeton University Press, 1989, p. 30.
9
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. 5ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2016, p. 284.
10
TAGLIARI, Ana; GALLO, Haroldo. O movimento inglês Arts & Crafts e a arquitetura norte-americana. Anais do 3º Encontro de História da Arte do IFCH Unicamp, Campinas, Unicamp, 2007, p. 637.
11
PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Uma cidade pitoresca: São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Anais do 5º Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Campinas, SHCU, 1998, p. 2.
12
Idem, ibidem, p. 2.
13
COSTA, Ana Elísia; GERHARDT, Thaís. Regra em meio à natureza: casas refúgio na arquitetura brasileira. Anais do 7º Projetar, Natal, Projetar UFRN, 2015, p. 4.
14
SERAPIÃO, Fernando. Outra montanha mágica. Projeto Design, n. 340, jun. 2008, s/p.
15
BRATKE, Oswaldo. House and studio in Brazil. Arts & Architecture, n. 65, out. 1948, p. 32–33.
16
SOGBE, Érica. El lugar del fuego en la arquitectura de Marcel Breuer. Tese de doutorado. Barcelona, UPC, 2012, p. 9.
17
NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology of architecture. Nova York, Rizzoli, 1980, p. 192.
18
SERAPIÃO, Fernando. Op. cit., s/p.
19
Os projetos residenciais do arquiteto austro-americano também foram uma importante referência para Oswaldo Bratke ao longo de sua carreira.
20
DALL’ALBA, Anderson. Formas modernas em jardins pitorescos: as casas e os planos de Oswaldo Bratke para o Morumbi dos anos 1950. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2017, p. 56.
21
Em SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme. Op. cit., p. 104.
22
Dois meses depois da perspectiva ser publicada em Acrópole, os desenhos técnicos (plantas baixas, cortes e fachadas) desse projeto foram enviados à Prefeitura Municipal de Campos do Jordão, onde se encontram arquivados até hoje.
23
GUERRA, Abílio. A casa binucleada brazuca. In ZEIN, Ruth Verde (org.). Caleidoscópio concreto: fragmentos da arquitetura moderna em São Paulo. São Paulo, Romano Guerra, 2017, p. 129–162.
24
DALL’ALBA, Anderson. Op. cit., p. 195.
25
HORMAIN, Débora. O relacionamento Brasil-EUA e a arquitetura moderna: experiências compartilhadas, 1939–1959. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2012, p. 203. Trata-se da reprodução de uma entrevista que Bratke concedeu ao repórter norte-americano John Peter em algum momento entre os anos de 1955 e 1958.
26
SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme. Op. cit., p. 33.
27
CERETO, Marcos. Severiano Porto: lições para as cidades amazônicas. Pracs, v. 9, n. 1, jan./jun. 2016, p. 193–208.
28
DALL’ALBA, Anderson. Op. cit., p. 56.
29
ACKERMAN, James. Op. cit., p. 30.
30
SERAPIÃO, Fernando. Op. cit., s/p.
31
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Princípios de arquitetura moderna na obra de Oswaldo Arthur Bratke. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2000, p. 82.
32
SERAPIÃO, Fernando. Op. cit., s/p.
33
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Op. cit., p. 99.
34
PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Modernizada ou moderna? A arquitetura em São Paulo: 1938–1945. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1997, p. 297.
sobre o autor
Marcelo Leite é arquiteto e urbanista (UFV, 2014) e mestre em História da Arte (Unifesp, 2018), onde desenvolveu a pesquisa Jardim do Embaixador: uma arquitetura experimental de Oswaldo Bratke nos anos 1940. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.