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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo foi originalmente apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na disciplina “A recepção das tradições artísticas no Brasil: apropriações e reelaborações (séculos 16–20)”.

english
This paper was originally presented at the Faculty of Architecture and Urbanism of the University of São Paulo, in the course “The reception of artistic traditions in Brazil: appropriations and re-elaborations (16th–20th centuries)”.

español
Este artículo fue presentado originalmente en la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad de São Paulo, en el curso “La recepción de las tradiciones artísticas en Brasil: apropiaciones y reelaboraciones (siglos 16-20)”.


how to quote

CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Artífices escravos, libertos e livres no campo da construção em São Paulo colonial. O caso de Tebas. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 271.04, Vitruvius, dez. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.271/8686>.

Bom dia a todos.

Quero agradecer o convite do professor Luciano Migliaccio e da professora Renata Martins. E dizer que me sinto muito feliz por terem me dado essa oportunidade para falar um pouco sobre minhas pesquisas acerca do mestre canteiro Joaquim Pinto de Oliveira e sobre tudo por terem me instigado a pensar Tebas como um caso dentre os artífices escravos e libertos no campo da construção em São Paulo, de onde decorreram as reflexões e a hipótese que vou apresentar hoje para vocês.

Antes de falar sobre Tebas gostaria de tecer algumas considerações sobre a taipa de pilão visto que, embora a participação desse mestre de cantaria de pedra na cidade de São Paulo tenha sido fundamental para a remodelação da paisagem urbana na segunda metade do século 18, introduzindo a pedra no aformoseamento das edificações, a taipa de pilão era o sistema construtivo predominante na capital e no interior paulista e continuou por muito tempo ainda, adentrando o século 19.

De modo que quero inicialmente dedicar algumas palavras à taipa que tanto caracterizou o antigo cenário paulista de serra acima, dizendo que era um modo de construir que associava primordialmente a terra a outro elemento natural, a madeira.

Aprendemos com os estudos de Luís Saia (1) que o sistema construtivo da taipa de pilão requeria uma superfície plana, que nem sempre é encontrada na natureza. Daí a necessidade de aplainar o terreno antes de dar início à construção do edifício sobre a plataforma assim constituída. Valas profundas eram escavadas (de cerca de 50 centímetros ou mais de profundidade e com espessura variando de 40 a 60 centímetros) onde o barro já era apiloado até a atingir a superfície, de onde prosseguia o erguimento das paredes por meio de um aparelho de madeira chamado taipal. As envasaduras dos edifícios eram já definidas pela carpintaria que fixava previamente os batentes das portas e janelas à medida em que eram erguidas as paredes até a altura desejada, momento em que eram sobrepostos frechais de madeira para acolher a estrutura do telhado. A taipa de pilão era, portanto, uma técnica construtiva associada íntima e naturalmente à madeira, mas que se valia da pedra quando havia necessidade.

Esta — a pedra — lhe servia para amparar, proteger e corrigir o declive do terreno aonde assentava o edifício, ampliando a superfície ao mesmo tempo em que o elevava em relação à área frontal do entorno, enobrecendo desse modo o pórtico da edificação. Isso é o que se verifica nas residências rurais paulistas desde o segundo século de colonização, cujo exemplar mais conhecido é a morada do Sítio Santo Antônio, construção de meados do século 17, restaurada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional entre 1939 e 1941.

Sítio e Capela Santo Antonio, São Roque SP
Foto Irene Tsueko H. Cerqueira

Esse mesmo recurso foi ainda melhor utilizado na capela que lhe é contígua, construída igualmente em taipa de pilão em 1681. O arquiteto que a construiu soube aproveitar o leve declive do terreno para dar uma solução de inegável qualidade plástica. Construiu uma base de pedra à frente do terreno, prolongando-o num patamar assoalhado onde alojou o alpendre coberto por um telhado de três águas, que por sua vez apoia-se sobre pilares de pedra. O acesso ao alpendre se faz por uma escadaria igualmente de pedra.

Sítio e Capela Santo Antonio, São Roque SP
Foto Irene Tsueko H. Cerqueira

Sítio e Capela Santo Antonio, São Roque SP
Foto Irene Tsueko H. Cerqueira

Outro detalhe importante: essa graciosa capela tem, unida ao seu corpo, a sua torre, que, por sua vez, é inteiramente de pedra, coberta com argamassa de barro.

Assim vemos dois corpos construídos, um de taipa de pilão e outro de pedra, formando uma só edificação. De modo que, embora construídos por sistemas e materiais distintos, a junção dos dois corpos se fez perfeitamente e revelou-se duradoura — como se pode verificar na fotografia tirada à época em que foi descoberta por Mário de Andrade e Luís Saia em 1938.


Foto Herman Graeser, 1938 [Acervo Iphan SP]

Aqui, os méritos são do taipeiro. Não se verificava abalroamento, nem fissuras significativas na taipa. O que significa associação e compatibilidade entre os dois sistemas construtivos.

Outro exemplo de utilização da pedra associada à taipa, porém já adentrando o século 18, ocorreu numa ocasião especial — os paulistas comemoravam as sucessivas descobertas do ouro que deram início à ocupação e povoamento do vasto continente brasileiro. Promovia-se a reconstrução da igreja do Colégio Jesuíta de S. Paulo.

Informa o padre Serafim Leite que ao cederem “os alicerces [...] arrastaram consigo parte da fachada” (2) da igreja e a sua torre, ambas de taipa.

Conta-nos o historiador jesuíta que a reconstrução foi produto da generosidade de duas senhoras, Ângela Siqueira e Leonor de Siqueira, figuras da aristocracia paulistana que doaram vultosos recursos para que fosse reconstruída a torre, impondo como condição que fosse ela edificada com material nobre; tarefa que exigiu não só a condução da pedra desde o litoral como a vinda de profissional habilitado para o seu preparo e aplicação.

Não cita outros documentos acerca desse acontecimento, mas somos propensos a concordar com a sua interpretação, quando diz:

“Como quer que seja a Tôrre do Colégio ergueu-se na primeira década do século 18 e marcou um momento histórico, na arquitetura paulista” (3).

Vale observar, porém, que a construção de torres não era algo excepcional às igrejas paulistas; construíam-se igrejas com altas torres de taipa. Apenas as capelas dos aldeamentos jesuíticos paulistas ao redor da capital não ostentavam torres. A exceção foi a de Nossa Senhora do Rosário de M’Boy (Embu), edificada pelo padre Melchior de Pontes no início do século 18, portanto contemporânea à do colégio, com a torre figurando na junção dos corpos da capela com o convento, construída em taipa de pilão (4).

Há registro de outro profissional, este sem dúvida um canteiro, vindo também de Santos, cerca de quarenta anos depois (1746). Cypriano Funtã veio para fazer uma fonte de água defronte ao convento franciscano. Não se sabe se a obra foi mesmo executada ao todo, pois segundo apura Luís Gustavo Reis (5), não havia água suficiente em razão da seca que castigava a cidade. Penso que deva ter sido feita sim, visto que anos depois, Tebas será contratado pela Câmara para repara-la (1770).

Assim, o destaque dessa notícia serve apenas para tirar de Tebas a primazia das obras de cantaria em São Paulo.

Bem, chegamos a Tebas. Ele vem a São Paulo no ano de 1766 e já nesse primeiro momento deixa um testemunho material de sua presença que só virá a se desvelar um século e meio depois.

Sua vinda a São Paulo coincide com a chegada de Dom Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Mateus, para assumir o governo da Capitania. E foi neste ano que o governante nos presenteou com uma descrição assaz interessante, valiosa mesmo, porque a retrata num momento pouco anterior às mudanças que irão se operar relativamente às feições das principais edificações urbanas.

Diz ele numa carta ao Conde de Oeyras:

“Está edificada a Cidade de São Paulo no meyo de huma grande campina em sítio hum pouco elevado que a descobre toda em roda. [...] Todas as paredes dos edifícios são de terra, os portaes e alizares de páu por ser muito rara a pedra, mas não deixa de ter conventos e bons templos, e altas torres da mesma matéria com bastante segurança e duração: os mais sumptuosos e melhores são a Sé, este colégio q’ foy dos Jezuitas, especialmente o seminário em que estou aquartelado, a Igreja do Carmo, e o seu convento que se está reedificando, a de S. Bento, que não está acabada, e o de S. Francisco que he antigo, e o pertendem reformar; tem cazas grandes e de sobrado, todas as mais são baixas com quintaes largos, que a fazem parecer de mayor extenção” (6).

Essa sucinta e bela descrição da cidade nos diz como eram os edifícios até então. Naquele ano (1766) todos ainda eram construídos de terra socada, as casas e as igrejas, com suas altas “torres da mesma matéria, por ser muito rara a pedra (7), explica.

Informa noutra carta (1767) que determinou a reedificação do Colégio: “mandei fazer quase que de todo novo a torre deste Colegio, todo o alpendre da portaria, todas as prisões e corpo da guarda deste governo e hospital dos soldados, e negros”.

Essa segunda carta nos diz algumas coisas interessantes, das quais saliento apenas duas: a torre do colégio já mencionada, aquela do início do século 18 patrocinada pelas senhoras paulistanas, é por ele reedificada e transformada em residência oficial do governo e a menção aos “negros”, dita de maneira que parecem pertencer à esfera do governo; e visto que citados junto com os soldados, pergunto se seriam componentes de um corpo da guarda negro.

Muitos outros negros já existiam na cidade, mas ignoramos as suas ocupações, ou seja, ao que se dedicavam, serviços que prestavam ou ofícios que exerciam (8).

Mas volto à primeira carta, a de 1766, para colocar em destaque uma informação do maior interesse para nós. Nela, Morgado diz que a igreja dos beneditinos “não está acabada”. Pois foi exatamente nessa obra que Tebas iniciou a sua longa trajetória na cidade de São Paulo: na fatura do frontispício da igreja, o primeiro que fez uso da pedra de cantaria na cidade.

E isso por uma razão fácil de entender: eram os beneditinos os mais bem preparados para tal empreendimento. Possuíam eles uma pedreira em Santos, de onde trouxeram as pedras para confeccionar os elementos em cantaria da nova fachada. Possuíam, além disso, uma olaria na região de São Bernardo do Campo, que abasteceria dos tijolos necessários para o revestimento prévio da taipa de pilão — sem o que seria impossível inserir os elementos de pedra.

Daí presumirmos que o corpo da igreja beneditina, construído ainda em taipa de pilão, já estivesse pronto em 1766, restando apenas o frontispício. O qual se fará por um sistema misto, aliando a taipa de pilão ao tijolo e à pedra de cantaria, permitindo dessa maneira superar os limites que a taipa de pilão impunha às fachadas dos edifícios, sem abandoná-lo, todavia.

A novidade se limitava à fachada dos edifícios, estendendo-se às torres no caso das igrejas. O restante, isto é, os corpos da igreja bem como o do mosteiro, inicialmente mantiveram a feição tradicional da taipa, protegidos por largos beirais — o que dava um sabor todo especial, algo distintivo das igrejas paulistas em relação às do restante da colônia que optam em alguns casos por estender o uso da pedra de cantaria às laterais do edifício, embelezando-o com cunhais, colunas e cimalhas nas bordas do telhado.

Mas porque enfatizo tanto o frontispício beneditino?

Porque o único documento que restou sobre ele, nos interessa sobremodo. Dom Martinho Johnson, O.S.B., arquivista do Mosteiro, em seu Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade de São Paulo nos fornece o dado precioso:

“A pedra fundamental da nova fachada da Igreja de São Bento, lançada em 1766, foi trabalhada pelo mestre Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas” (9).

Dom Martinho extraiu a informação do Livro de gastos da Mordomia do mosteiro, do qual transcreveu o seguinte:

“Gasto vindo de Santos em 15 de Novº de 1766 ... Obra — drº que dey ao pardo Joaquim Pedreyro pla. Pedra em que se puserão as relíquias no cunhal da Igrª ceis tostoens”.

Dom Martinho no livro que publicou, com prefácio de Sérgio Buarque de Holanda, explica a foto estampada na página 203:

“Como se observa na gravura, a pedra é um hexaedro irregular de 18x22 cm e foi encontrada em 1911, ao demolir-se a velha fachada da igreja”.

A cavidade lavrada na pedra destinava-se para colocar as relíquias da Ordem. Assim, Tebas veio de Santos para lavrar a pedra fundamental da frontaria da edificação.

Será mesmo? Sua participação teria se limitado apenas à confecção dessa pedra? Infelizmente não restaram outros documentos. Mas seria pouco provável que os monges gastassem dinheiro para Tebas fazer apenas a pedra fundamental.

A partir desse momento, Tebas permanecerá em São Paulo, iniciando uma carreira que o conduzirá à condição de mestre e posteriormente a de juiz do ofício de pedreiro de São Paulo.

De modo que somos propensos a concluir que a frontaria da igreja do Mosteiro de São Bento foi obra de Tebas, a primeira das igrejas conventuais da cidade a fazer uso da pedra de cantaria, que consistiu num portal relativamente simples, com o postigo coroado com a insígnia da Ordem, cunhais e cimalhas, prolongadas na torre anexa que termina numa linda sineira bulbosa, três janelas de vergas curvas, frontão ondulado com cornijas seccionadas e encimado por uma cruz. A igreja dispôs ainda três óculos no frontão para melhor iluminação do coro.

O mosteiro, assim como o corpo da igreja, construídos em taipa de pilão, mantiveram inicialmente o beiral largo próprio desse sistema. Assim conciliavam formatos de origem e natureza arquitetônicas distintas, que, todavia, justapostos, criavam uma configuração interessante e bela.

Com o decorrer do tempo essa configuração foi se modificando; introduziram elementos de alvenaria ou pedra de cantaria nos batentes das portas e janelas do mosteiro também, alterando a feição inicial.

Mas, nessa altura, me ocorre perguntar: e o Bento de Oliveira Lima — o senhor de Tebas — por que não foi mencionado? O registro lançado no Livro da mordomia é claro: “ceis tostoens... drº que dey ao pardo Joaquim Pedreyro... ao pagamento da pedra fundamental. Fica claro que Bento de Oliveira Lima não estava presente para receber os citados tostoens.

O que nos permite indagar: já usufruiria Tebas de tanta liberdade, a ponto de subir a serra sozinho e tratar pessoalmente preço e recebimento pelo serviço?

Episódios futuros parecem confirmar que, se não usufruía de liberdade propriamente dita — porquanto era escravo —, parece que desfrutava de larga autonomia no exercício do ofício, a ponto de, digamos, estar autorizado a sozinho tratar, orçar, executar serviços e obras e receber pelo seu senhor.

Se assim entendemos, vale perguntar: devemos creditar essa autonomia ao conhecimento e às habilidades com que exercia o seu ofício e à confiança que conquistara de seu senhor, e assim usufruísse de uma posição que hoje transparece acima até de quem devia servir e obedecer?

De qualquer modo, Bento de Oliveira Lima se fará presente em São Paulo já no ano seguinte (1767) quando firma contrato valioso (quatro mil cruzados) com a Sé de São Paulo, encarregando-se da obra do frontispício da Matriz.

Bento era, acima de tudo, inteligente e corajoso, pois sabia fazer uso de seu capital, invertendo-o em mão-de-obra escrava especializada para esse tipo de construção numa conjuntura extremamente promissora para tal empreendimento (10).

Vivia a cidade um momento de grande significação: acabara de recobrar a condição de Capital da Capitania, restaurada no ano anterior (1765). Portugal resolvera implantar medidas que davam papel de relevante importância à ainda vasta Capitania Paulista, tanto de natureza político-administrativa, como de segurança e proteção às áreas de mineração, tratando de expandir a ocupação dos territórios ao sul da Colônia, neles incrementando atividades agropecuárias e fomentando a fundação de novas povoações e vilas, enquanto o litoral seria beneficiado com um plano de fortificações — encargos que Morgado de Mateus caberia desenvolver.

Tais medidas repercutiam na cidade, e vinham de encontro aos interesses das elites paulistanas, que aspiravam equipara-la às mais ricas e importantes capitais da Colônia. Essas aspirações encontraram expressão sobretudo na arquitetura religiosa. Um “movimento de renovação estilística” (11) opera-se então no centro urbano da Capital atingindo quase todas as igrejas e capelas fundadas no período anterior, quer através de reformas quer por edificações novas, seguindo o estilo então vigente. De modo que, o que vemos hoje de mais antigo no centro da cidade de São Paulo, provém desse período, da segunda metade do século 18.

É interessante observar que esse período que vai de 1765 até o início do século 19 corresponde também à de inúmeras igrejas mineiras que se valeram também da taipa de pilão na construção do corpo dos edifícios. Dentre as quais se destacam a Igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, a Catedral de Nossa Senhora da Assunção de Mariana e a Igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rey. Apenas os frontispícios em pedra de cantaria, tal como as nossas paulistanas — o que indica transferência e intercâmbio entre as duas regiões. Isso é muito importante assinalar (12).

Em 1767 Bento contratou ao menos duas importantes obras. Disse ao menos porque se tem notícia de que o convento da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo também estava em obra — que os frades não souberam infelizmente preservar, nem mesmo a documentação para que pudéssemos saber quem executou, muito embora recaia sobre Bento e Tebas as nossas suspeitas. Contentemo-nos com as belas aquarelas deixadas por Debret e Miguelzinho Dutra, o desenho de Thomaz Ender e as fotografias de Militão.

O que sabemos com certeza é que os planos de Bento de Oliveira Lima não se concretizaram como esperava. Sua morte o colheu de surpresa dois anos depois, em 1769, com a idade de sessenta anos. Mas de uma coisa hoje estamos certos: já havia iniciado a obra da Sé, e sua morte a deixou inconclusa.

Esse fato criou uma situação que, ao se desenvolver, irá se caracterizar tal qual a um drama onde as condições vivenciadas por aqueles que figuravam no palco dos acontecimentos, defendendo interesses pessoais, familiares, de grupos, de corporações e instituições acabaram por explicitar posições, convergentes e antagônicas, que deixaram revelar certa dinâmica do regime estamental escravagista, revelando aspectos de um enredo urdido em contradições que melhor poderia ser descrito pelo nosso maior escritor, o também afro-brasileiro, neto de escravos, o romancista Machado de Assis.

Pois o infortúnio de Bento acabaria por desgraçar a viúva, Dona Antonia Maria Pinta, que, analfabeta, por não saber administrar os negócios do marido, viu-se inteiramente nas mãos de Tebas — garantia quase única da sua sobrevivência e de seus filhos, todos menores.

Tebas percebe-se no centro da trama que se desenvolve. E preocupa-se, pois, para além da condição escrava, dele dependiam igualmente a sua mulher, Natávia de Souza, parda também, e a pequena Natávia Liberia, filha do casal. De modo que o trabalho de Tebas se torna o esteio das duas famílias, a da sua senhora e a própria.

Tebas vê-se num emaranhado complexo: de um lado, percebe-se comprometido, profissionalmente, perante os compromissos deixados pelo seu antigo senhor, dentre os quais destacava-se a obra do frontispício da Matriz, paralisada desde a morte de Bento, e que os Cônegos da Sé passam a pressiona-lo a retomar, e, de outro, diante do desespero de sua senhora, e, numa tentativa de remediar a situação, aceita contratar novas empreitadas, comprometendo a sua própria pessoa, como foi o caso da obra do frontispício da Igreja dos Terceiros Carmelitanos, em 1772, cujo contrato é hoje já bastante conhecido.

Esse episódio, porém, revela um Tebas já consciente de seus atos. Ao comprometer-se a realizar novas obras sabe que se torna mais e mais necessário. Age, portanto, com vista a um objetivo que não era outro senão alcançar a liberdade (13).

A viúva, por sua vez, mesmo empregando Tebas em obra nova, não consegue quitar as dívidas deixadas pelo marido, e se vê cada vez mais enredada nas malhas da Justiça.

De modo que, o processo judicial foi comprometendo bens constituídos pelo casal, forçando-a a buscar acordos que lhe permitissem garantir a sobrevivência, sem, contudo, obter êxito. De outra parte, os membros da Sé, liderados pelo Arcediago Matheus Lourenço de Carvalho, agem de modo a assegurar que Tebas conclua a obra da Matriz, e passam a impetrar ações que fragilizam ainda mais a situação de Antonia Maria Pinta, com a venda de bens de raiz, como o sítio que possuía em Caaguassú, onde tinha cabeças de gado, mas sendo-lhe imposto a condição de receber o pagamento do valor estimado (300 mil réis) somente quando a obra da Sé fosse concluída.

O processo judicial evolui e chega, por fim, ao momento da execução dos bens em leilão público. A viúva é obrigada a dispor de Tebas, o seu mais valioso bem, que acaba nas mãos do Arcediago Matheus Lourenço de Carvalho. Seu novo senhor alcançava por fim o objetivo das ações que promovera junto com outros cônegos da Sé: Tebas concluiria a obra da Matriz!

Em 1777 Tebas ver-se-á livre da escravidão. Antes, porém, foi autorizado pelo seu novo senhor a entrar na Justiça contra sua antiga senhora, cobrando importâncias devidas por diárias quando já não era seu escravo. Suponho que, se ganhou a ação, deva ter utilizado o dinheiro auferido para ressarcir o Arcediago pelos 400 mil réis que pagou no leilão — valor por ele estimado no inventário de Bento de Oliveira Lima.

Bem, nos meus escritos sobre Tebas tenho afirmado algo que agora me ocorre possa não ser verdadeiro.

Argumentei já em meu primeiro texto que “Joaquim provinha da região litorânea: era natural da Vila de Santos [...] região onde se construía em pedra e cal”. E completei: “em Santos teria aprendido e desenvolvido suas habilidades na cantaria de pedra” (14). Mas, arrisquei dizer que Bento de Oliveira Lima, afora ser o seu senhor, era também o seu mestre, querendo dizer com isso que Bento ensinou a Tebas o ofício de canteiro. E tenho repetido isso.

Baseava-me numa linha de interpretação que busca entender os artífices nacionais do período colonial brasileiro de conformidade ao regramento corporativo tradicional de origem medieval europeia. Que não está errada, mas requer comprovação. E, por meio dela, me foi fácil e tranquilo supor que o seu senhor, teria ensinado o ofício de canteiro a Joaquim Pinto de Oliveira.

Bento ganhava assim uma aura de preceptor, ao ensinar e orientar seu discípulo de forma a conduzi-lo ao aprimoramento de que mostrava ser capaz. É, digamos, uma virtuosa construção imagética que fiz de Bento de Oliveira Lima, capaz de amenizar o lado oculto ou não revelado da intenção real, qual seja, especializar o escravo, conquistar a sua confiança e fidelidade, para melhor explorar sua força de trabalho e obter maiores ganhos.

Mas, ao aceitar o convite do professor Luciano Migliaccio e da professora Renata Martins (que procuram entender o cenário artístico colonial sob um novo prisma), me ocorreu, quando dissertava sobre o episódio da pedra fundamental da fachada da igreja beneditina e constatar a ausência de Bento de Oliveira Lima, que este possa não ter sido o seu verdadeiro mestre em cantaria de pedra. Pedreiro, sim, confirmado no maço de população de 1765, mas a ser mestre canteiro também, não encontrei registro nenhum.

Confesso que fui descuidado ao fiar-me numa perspectiva historiográfica que busca no aparato cultural europeu modelo capaz de explicar a evolução das atividades artesanais e artísticas locais, como se essas reproduzissem naturalmente o percurso da matriz portuguesa na formação corporativa colonial, pressupondo o aprendizado dos ofícios mecânicos e artísticos, regido somente por medievas regras corporativistas.

Ora, aqui no Brasil o corporativismo teve que se adaptar, desde o início, ao escravismo estrutural. Em parte, porque o artesão, mestre de ofício, não contava com jovens aprendizes, livres e brancos como ele, a demanda-lo como na Europa. A vida em solo brasileiro fez do colono um beneficiário natural do escravagismo desde cedo implantado, submetendo quer o indígena quer o negro extraditado da África. O artesão urbano não escapou dessa lógica escravagista. Muito embora exercesse trabalho mecânico, diferenciava-se do trabalho comum pela especialização artesanal que lhe conferia posição algo diferenciada na sociedade colonial. Mas ele próprio comprava escravos para realizar uma enormidade de serviços domésticos.

Ao se arraigar na sociedade colonial o trabalho simples, físico, sem qualificação, imposto ao negro africano e ao indígena, esse tornou-se sinônimo de trabalho escravo, e foi esconjurado pelo colono branco e livre. Nesse sentido, a casa do artesão em nada diferia das demais. Mas esse costume logo penetrou o campo da produção, a oficina, modificando a natureza das relações de trabalho artesanal, tradicionalmente baseadas na servidão temporária, mas que conduziam ao trabalho livre, formando oficiais para o mercado de trabalho. Ao introduzir o escravo na oficina, o trabalho não perde sua característica artesanal — a qualificação —, mas deixa de contribuir para o desenvolvimento do mercado de trabalho livre.

Aqui, me permito ousar um pouco mais e propor um entendimento a respeito.

O mestre artesão se convence de que ensinar seu ofício a um escravo poderia consistir num investimento promissor, porque lhe daria renda, talvez modesta, mas segura, e lhe dava também garantia de possuir permanentemente essa força de trabalho assim formada — o que a tradicional formação corporativa não lhe assegurava. Essa, penso eu, constituiu a via de formação artesanal da força de trabalho escrava no Brasil (ou compulsória para incluirmos os povos da América), e fez do artesão um empresário escravagista. Ao ceder à pressão do escravagismo estrutural, a tradicional distinção do trabalho artesanal se alterou, adaptou-se melhor ao cenário colonial, ganhando outra configuração; porém, repito, sem prejudicar a qualidade laboral que o escravo-artesão soube manter, e até surpreender em alguns casos ao criar obras de excelência artística.

Essa via seguiu em paralelo à que era própria da corporação de ofício, porém ambas, pressionadas pelo escravagismo estrutural, demonstraram não reunir condições e força suficientes para se firmarem como alternativa para o trabalho livre. A via compulsória, por sua vez, poderia constituir um meio para a progressão ao trabalho livre por meio da alforria, concedida ou ressarcida; entretanto não evoluiu nesse sentido, embora tenha sido bastante utilizada, pois, em razão da natureza mesma da relação que a originava, obedecia a impulso reverso, cíclico, que a arrastava sempre ao ponto onde iniciara.

Prova disso é o próprio Tebas. Após a sua libertação tratou logo de adquirir dois escravos-pedreiros para auxiliá-lo nas obras daí por diante. Se os houvesse comprado e tê-los alforriado depois, mediante ressarcimento, poderíamos raciocinar de maneira diferente.

Mas lembremos dos escravos Maurício, Agostinho e Januário do pardo Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. A literatura histórica conta que ele dividia os lucros com o primeiro, Maurício, e que deixou um documento alforriando-os após a sua morte (15). Tebas teria feito o mesmo? Documento sobre episódio do Cruzeiro Franciscano de Itu mostra Tebas cobrando “27 ½ jornais ... do seu escravo João a 320 réis” cada jornal, que somou “8$800 réis” (16). Pode ser indício de que remunerava esse escravo com vistas a futura alforria, ressarcida?

Livro de receita e despesa do Convento de São Luiz, da Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu, jan. 1795, folha 13
Foto Carlos Gutierrez Cerqueira [Arquivo da Província]

Assim, sou obrigado a concluir que a sociedade escravagista criou um modo de vida, uma maneira de pensar e agir, uma racionalidade que perpassava todos os segmentos da sociedade, os escravos inclusive, e que se sobrepôs à cultura corporativista, tanto a matricial como a sua versão colonial, a compulsória, travando o desenvolvimento de mercados de trabalho que poderiam constituir alternativas para a superação da escravidão.

Temos muito ainda que aprofundar o conhecimento sobre a participação dos afro-brasileiros e dos indígenas (os “negros da terra”, para lembrar John Manuel Monteiro) nas atividades artesanais, desvendar inclusive sua participação nas ordens religiosas e desvelar novos aspectos desse processo (17).

Essas reflexões me levaram a rever a descuidada afirmação acerca do aprendizado de Tebas.

Meu erro, sim, foi basear-me numa tradição historiográfica para concluir, sem maior esforço investigativo, que esse ensino-aprendizado corporativo, essa transmissão de conhecimento técnico e artístico, houvera naturalmente ocorrido no interior da relação senhor/escravo, entre Bento e Tebas. O que não sei se de fato ocorreu.

Daí a pergunta: se não foi com Bento, com quem então Joaquim Pinto de Oliveira terá aprendido a cantaria de pedra? A resposta, penso eu, nos conduzirá a hipótese que não difere da anterior, pois que remete à mesma via mencionada, a da formação artesanal da força de trabalho compulsória. O único proveito em investigar será nos conduzir ao seu verdadeiro mestre em cantaria de pedra.

E, quem sabe, esse caminho nos leve a preencher uma lacuna hoje impensável de se desvendar na história de Joaquim Pinto de Oliveira — qual seja, como se originou o apelido Tebas, quando e quem atribuiu e se já o possuía desde Santos?

Para tanto, acho que teremos de descer a Serra do Mar e procurar Tebas, e o Bento também, nos arquivos de Santos e arredores.

Haveria outra possibilidade?

O historiador Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus critica-me, com justiça, por ter seguido “a historiografia tradicional”. Discorda também quando digo “que o trabalho especializado do escravo era a cantaria”, pois entende que Tebas deva ter sido também especialista em taipa de pilão. Sua hipótese (é a de) que “Tebas poderia ter desenvolvido tal prática sem o conhecimento do seu mestre branco” (18).

Vejam, a questão que Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus apresenta não se refere à pedra de cantaria, mas à taipa de pilão que é o foco de seu interesse. E me recrimina por isso, por eu não supor que Tebas “pudesse ser especialista em taipa, algo [diz ele] um tanto provável, já que boa parte das intervenções que fez foi em Igrejas da cidade de São Paulo, que na época eram de taipa” (19).

Acho improvável. O sistema do barro apiloado não era próprio da baixada santista de onde proveio. Embora tenha sido utilizado nos tempos iniciais da colonização, foi logo abandonado em razão da má qualidade da terra do litoral, imprópria para esse sistema construtivo. Santos, portanto, nada mais tinha a ver com a taipa de pilão à época de Tebas.

No início das obras do frontispício da Terceira do Carmo, antes de Tebas começar a construir os arcos da entrada, localizei dois registros de despesas relativos ao avanço das paredes de taipa que formariam a galilé e alinharia o edifício ao vizinho conjunto arquitetônico dos frades: um relativo aos jornais “negros que Socaram as taipas do fronteespício” e outro pelo dispêndio “com o mestre aprumador dos taipaes”. Em nenhum deles consta a presença de Tebas; já a de negros sim, mas apenas socando as taipas.

Em continuação, Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus diz que a taipa é oriunda da África; lá teria sido conhecida pelos lusos e transplantada para o Brasil através do tráfico de escravos, portadores desse conhecimento. E assim conclui que a historiográfica tradicional peca por desconsiderar a contribuição africana nas edificações coloniais, especialmente na arquitetura paulista.

A despeito do autor menosprezar a contribuição árabe-mourisca em solo luso, a transmissão de práticas e inúmeros conhecimentos por cerca de sete séculos, quero, em respeito às críticas que proferiu, mencionar um pequeno texto que elaborei em 2011, onde procurei chamar a atenção para a participação do braço africano em uma importante morada rural paulista, construída em taipa de pilão — conhecida por Sítio do Padre Ignácio — que apresenta elementos de requintada arte em suas peças de madeira, cujo fundador, Sargento-Mor Roque Soares Medela, esteve entre os primeiros povoadores saídos de São Paulo para fundar Mariana no final do século 17. Lá enriqueceu explorando mina de ouro, e fez carreira política na Câmara onde foi presidente galgando também cargos militares e retornou a São Paulo por volta de 1717.

Essa morada difere num importante aspecto do exemplar que apresentei, o do Sítio Santo Antonio, de meados do século 17, onde a mão-de-obra era prevalentemente indígena. Redigi nos seguintes termos:

“Para além da riqueza, tida como das maiores de seu tempo, a ausência do indígena, substituído pelo cativo de origem africana, é o fator que chama a atenção. Embora a morada siga ainda o modelo vigente, os agentes responsáveis pelo seu agenciamento não são mais exatamente os mesmos. [...] A ‘mestiçagem’ — aqui entendida nos termos propostos por Luís Saia (Morada paulista), como resultante de uma estrutura social onde a participação do índio no processo de mestiçagem das gentes e da arquitetura, assim como nas diferentes famílias de técnicas que estavam na base da vida bandeirante —, d’ora em diante se fará de modo algo diferente, com a inserção cada vez maior de elemento antes raro no cenário paulista. [...] Na propriedade de Roque Soares Medella, desde o início a força de trabalho é unicamente constituída por escravos de origem africana. E isso é relevante. Afora o requinte, a sofisticação de seus elementos, a casa de morada [...] revelaria algum outro componente em seu agenciamento que se possa indicar como representativo desse momento inicial de ruptura? Questão que remeto diretamente aos estudiosos da arquitetura brasileira”.

Eis, em síntese, o que escrevi há nove anos atrás.

Sim, nesse artigo supus tão somente uma contribuição auxiliar dos negros, mantendo a presunção de que a mão-de-obra especializada — carpinteiro, taipeiro e especialmente um ótimo entalhador — era composta por artesãos livres, quando, poderia também supor, por que não, que tais profissionais existissem entre seus escravos trazidos de Mariana, aonde Roque Soares Medella viveu por cerca de vinte anos, e onde os paulistas faziam uso da taipa de pilão para construir suas moradas e igrejas — sistema que, como vimos, nunca foi inteiramente abandonado nas cidades mineiras.

Mas, retorno a Tebas, e para dizer que a taipa nas edificações das igrejas paulistanas de meados do século 18 não era a questão principal. Fazia parte do problema, sem dúvida. Lembremos o que Morgado de Mateus apontou em sua carta ao descrever a cidade de São Paulo: “todas as paredes dos edifícios são de terra”. A questão era como introduzir a pedra na paisagem urbana da Capital a partir da taipa.

Assim é que Tebas contribuiu para solucionar a questão, independentemente de ser ou não experiente na técnica construtiva da taipa de pilão.

A solução encontrada para adornar as frontarias de edifícios construídos em taipa foi revesti-las com tijolos de modo a permitir a incrustação da pedra de cantaria. Por essa razão é que, desde o meu primeiro texto a respeito, denominei a solução adotada então como um sistema misto de construção, aliando à taipa o tijolo e a pedra de cantaria.

Jean Baptiste Debret, Entrada de São Paulo pelo caminho do Rio de Janeiro
Imagem divulgação, 1827

Mas, se lermos com atenção o contrato que a Ordem Terceira do Carmo de São Paulo firmou com Tebas em 1772 para a construção dos arcos do frontispício observaremos que a solução encontrada então não era assim tão simples, pois que Tebas exigiu a montagem de um alicerce de pedra especialmente para a sustentação dos arcos.

Leio trecho respectivo do contrato:

“[O] alicersse o fara a dita ordem a Sua custa porem eu hei de aprovar o fixo dele como o do como que há de ser feito demarcando e riscando e aprovando a segurança e fixo do dito alicersse athe o por capaz dele eu asentar”.

Ou seja, os arcos da Carmo exigiam fundação própria, uma base de pedra aonde se apoiar. E assim deve ter sido feito também nos arcos da igreja franciscana ainda presente no cenário paulistano.

Os três casos que apresentei — o da torre de pedra da Iigreja do Colégio Jesuítico na primeira década do século 18; o do chafariz do convento de São Francisco, chamado Cypriano Funtã, em 1746; e o de Tebas em 1766 com a pedra fundamental da igreja de São Bento — demonstram que não existiam então profissionais habilitados na cidade de São Paulo para esse tipo de obra, sendo, portanto, necessário importa-los de Santos.

A diferença entre eles é que Tebas subiu a serra e não voltou como os dois primeiros, aqui permanecendo. E permaneceu em razão do contexto em que se encontrava — contexto onde a cidade se abria para uma relação mais intensa com o governo metropolitano, em razão de sua função defensiva que Morgado de Mateus veio implementar e também em razão do advento da lavoura da cana-de-açúcar que inseriu São Paulo na economia colonial. Tudo isso exigia uma capital condizente com as novas funções e a importância de seu papel no panorama colonial. Foi necessário, então, que se promovesse uma renovação da paisagem urbana, renovação que favoreceu Tebas pois, para atender ao gosto estilístico da época se fazia necessário valer-se da pedra de cantaria, sua especialidade, o que lhe proporcionou inúmeras demandas ainda na condição escrava e que se estenderam até a sua morte, em 1811.

Por outro lado, São Paulo não tinha corporações de ofício robustas e mais bem organizadas como existiam nas capitais nordestinas, no Rio de Janeiro e nas cidades mineiras onde a qualificação do trabalho artesanal, a relação de aprendizagem mestres/aprendizes, embora tenha existido, não se fez como na metrópole, pois os aprendizes livres, como já referimos, foram, numa certa medida, substituídos por afro-brasileiros, escravos e libertos. O mesmo ocorreu em São Paulo e Tebas é o que melhor representa esse processo.

Assim se estabeleceu uma variante que, se por um lado descaracterizou o regime corporativo matricial, por outro lado beneficiou um número significativo de afro-brasileiros (assim como ocorreu com os indígenas sob a tutela dos Jesuítas), pois lhes ofereceu possibilidades de conhecer e desenvolver técnicas de produção artesanal e artística, forjando uma via alternativa de sujeição que possibilitou aos afro-brasileiros, escravos e libertos, alguma melhoria de vida, e, penso eu, gosto e contentamento com o trabalho que realizavam, identificando-se com as obras e nelas imprimindo traços próprios, como nos dá a entender o professor Benedito Lima de Toledo: “Tebas partia da experiência de mestre-pedreiro, captava a religiosidade da época e dava sua marca pessoal às obras” (20).

Ademais, recebeu o reconhecimento público em vida e hoje, passados mais de dois séculos, temos a sorte de desvelar alguns aspectos de sua trajetória profissional e algumas de suas obras, presentes e ausentes.

Obrigado pela atenção.

notas

NE — Este artigo foi apresentado originalmente em 23 de setembro de 2020, durante aula ministrada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, para os alunos da disciplina AUH 5860 — A recepção das tradições artísticas no Brasil: apropriações e reelaborações (séculos 16–20), tendo como docentes responsáveis Luciano Migliaccio e Renata Martins.

1
SAIA, Luís. Morada paulista. Coleção Debates. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2012.

LEITE, Padre Serafim. Capítulo 8: A Igreja do Colégio. In História da Companhia de Jesus no 2
Brasil
. Tomo 6. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945.

3
Idem, ibidem. Grifo do autor.

4
SILVA, Angélica Brito. O aldeamento jesuítico de Mboy: administração temporal (séculos 17–18). Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 2018; CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Afinal quem tinha mesmo razão era Luís Saia. Nota sobre a primitiva torre da capela jesuítica do Embu. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 255.05, Vitruvius, ago. 2021 <https://bit.ly/3BSEBRY>.

5
REIS, Luis Gustavo. A trajetória de Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas: trabalho, escravidão, autonomia e liberdade em São Paulo colonial (1733–1811). Dissertação de mestrado. Guarulhos, EFLCH Unifesp, 2021.

6
Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo
, v. 72, São Paulo, Daesp, 1962.

7
Idem, ibidem. Grifo do autor.

8
MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo. Povoamento e população (1750–1850). São Paulo, Pioneira Educação/Edusp. 1974.

9
JOHNSON, Dom Martinho, O.S.B. Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Coleção da Revista de História, 1977.

10
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Vida e atuação na São Paulo colonial. Arte e Arquitetura Coloniais, São Paulo, 2011.

11
SAIA, Luís. A arquitetura em São Paulo. In São Paulo, terra e povo. Porto Alegre, Globo, 1967.

12
PEIXOTO, Maria Virgínia Simão; SOUZA, Luiz Antônio Cruz; REZENDE, Marco Antônio Penido de. O acervo em taipa de pilão em Minas Gerais e novas estratégias de conservarção. 6º Congresso de Arquitetura e Construção com Terra no Brasil, Bauru, Rede TerraBrasil, 8 a 12 nov. 2016

13
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Tebas e o dia da consciência negra. Resgate História e Arte, São Paulo, 2019.

14
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Capela de Santa Teresa da V.O.T. da Cidade de São Paulo. Resgate História e Arte, São Paulo, 1988.

15
JORGE, Fernando. O Aleijadinho: sua vida, sua obra, sua época, seu gênio. 7ª edição. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006.

16
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Thebas em Itu. Resgate História e Arte, São Paulo, 2016.

17
São muitos os autores que poderiam ser aqui citados, a começar por Luciano Migliaccio e Renata Martins

18
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de. Entre escravos e taipas: o modo de fazer africano na arquitetura paulista. História, v. 39, Assis/Franca, 8 jun. 2020 <https://bit.ly/3v6Ovfl>.

19
Idem, ibidem. Grifo do autor.

20
HENRIQUES, Grijalva Maracajá. Tebas, o escravo arquiteto do século 18. O talento de construtor transformou o escravo Tebas em figura lendária; mas até hoje continua pouco conhecido. Contador de Histórias, Campina Grande, 27 nov. 2016 <https://bit.ly/3WBPQGI>.

sobre o autor

Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan SP desde 1983.

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