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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo busca compreender o conceito de significância cultural e apresentar a Declaração de Significância Cultural, como instrumento de gestão patrimonial do Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas.

english
The present paper aims to understand the concept of cultural significance, verifying its applicability as a patrimonial management instrumental for the Hydrothermal and Hotel Complex of Poços de Caldas, study object of this research.

español
El artículo busca comprender el concepto de significación cultural y presentar la Declaración de Significación Cultural, como instrumento de gestión patrimonial del Complejo Hidrotermal y Hotelero, de Poços de Caldas.


how to quote

OLIVEIRA, Anamaria Canuto Sales de; FARAH, Ana Paula. As dimensões turísticas da construção do Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas. A declaração de significância cultural como instrumento de gestão. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 271.06, Vitruvius, dez. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.271/8679>.

A significância cultural

Segundo a Carta de Burra, o objetivo da conservação é a preservação da significância cultural. Esta carta, embora se trate de um documento nacional da Austrália, não referendado pela Assembleia Geral do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios — Icomos, é amplamente citada como referência do tema, por ser a primeira a voltar-se especialmente para a questão da significância cultural, que nela é definida como um conjunto de:

“’Valores estéticos, históricos, científicos, sociais ou espirituais, para as gerações passadas, presentes ou futuras’, que estão ‘incorporados no lugar em si, em seu tecido, configuração, uso, associações, significados, registros, lugares e objetos relacionados’” (1).

Sílvio Mendes Zancheti, Lúcia Tone Ferreira Hidaka, Cecilia Ribeiro e Barbara Aguiar (2), elucidam que a visão presente na carta é ligada a uma perspectiva empírico-positivista, cuja compreensão é de que “os valores são considerados qualidades inerentes” aos bens, de forma que sua “identificação e interpretação depende apenas do estado e do avanço do conhecimento e da precisão dos instrumentos de observação” (3), permanecendo, portanto, o reconhecimento de tais valores a cargo exclusivo de especialistas e técnicos da área da preservação.

Posição oposta a esta seria a do socioculturalismo, na qual o indivíduo é o agente ativo do processo de atribuição de valores aos objetos; esse indivíduo está inserido em um contexto coletivo (social, econômico, cultural), de forma que seu julgamento não é isento da influência desse contexto. Nesse sentido, entende-se que a significância deve ser determinada por diferentes grupos, em oposição ao reconhecimento exclusivo por especialistas, pois é entendida como uma construção social que se dá através da interação desses muitos grupos com o bem ao longo do tempo.

Os autores redefinem, então, a significância como “um conjunto de valores identificáveis resultantes do contínuo julgamento (passado e presente) e da validação social dos significados dos objetos” (4).

A significância cultural se mostra um conceito chave para a compreensão do bem na totalidade de seus valores, em suas relações sociais, culturais, políticas e históricas, e como importante ferramenta de registro da identidade e memória dos grupos relacionados ao bem patrimonial. Pode ser considerada, também, uma base para a avaliação da autenticidade e integridade do patrimônio cultural.

Declaração de Significância cultural: do patrimônio mundial à sua aplicação na gestão do patrimônio local

Uma vez que sintetiza em um só documento o conjunto dos valores atribuídos, julgados e validados pelos stakeholders, os resultados das pesquisas histórico-documentais e levantamentos e, por fim diretrizes gerais para ações sobre o bem, a Declaração de Significância Cultural se mostra um importante e eficaz instrumento para a gestão do patrimônio cultural.

Sendo dinâmica e mutável, a declaração deve sempre abarcar os novos valores que surgem em decorrência das alterações de seus contextos socioculturais, econômicos, políticos, tornando-se um registro dos valores presentes e passados, relevante instrumento de rememoração, retrato das continuidades e transformações não apenas dos bens culturais como das próprias sociedades que os valoram.

No âmbito internacional, a declaração é exigida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco nos processos de pedido de inclusão de bens na Lista do Patrimônio Mundial. É utilizada, ainda, como documento referência para o teste de autenticidade desses bens e para os planos de gestão da conservação, elaborados pelos países que já possuem bens na lista. Ou seja, a declaração é um documento basilar que estrutura a gestão do patrimônio cultural da humanidade.

Como definido anteriormente, os valores que compõem a significância de um bem são aqueles atribuídos e reconhecidos pela “sociedade a partir da interação de indivíduos, grupos e instituições [...], criados por processos intersubjetivos” (5). Entende-se que a significância é uma construção social, de forma que, para sua declaração, devem ser ouvidos tantos grupos e atores sociais envolvidos com o bem quanto for possível. Ouvidos os stakeholders, devem ser registrados os valores levantados — tanto os do passado, como os do presente e os que se encontram em disputa —, de forma que possam ser julgados e validados, identificando aqueles que serão priorizados na preservação do bem. A declaração de significância construída a partir desses princípios se torna um registro de valores, interações e mudanças de uma sociedade, em relação ao bem.

Tendo em vista que este documento registra um julgamento presente dos valores atuais e passados do bem, e, por mais que se busque consultar e ouvir o maior número de pessoas possível em sua elaboração, a declaração será sempre um registro parcial e temporal desses valores, uma vez que é impossível abarcar todos os valores existentes, é importante reafirmar que a declaração não é um documento perpétuo: sendo a significância dinâmica e mutável, sua declaração também o é, e deve ser periodicamente revista e atualizada. Quanto a essa periodicidade de revisão da Declaração, não há ainda um consenso sobre período de tempo entre as revisões. Gabriela Azevedo, Virgínia Pontual e Silvio Zancheti (6) explicam que, no relatório periódico dos Estados Árabes, elaborado em 2004 pela Unesco, o órgão estipula que um plano de gestão geralmente vigora por um prazo de cinco a dez anos, de forma que, entendida como parte essencial para esse tipo de plano, a declaração pode ter o mesmo prazo para revisão.

Podemos afirmar que a elaboração da Declaração de Significância Cultural possibilitaria a aproximação da gestão patrimonial dos bens culturais poçoscaldenses do rigor metodológico almejado para as ações sobre esses bens, diminuindo as ações empíricas e embasando as decisões em parâmetros técnicos e transparentes, que levem em conta a totalidade do bem, em seus aspectos materiais e imateriais, históricos, técnicos, estéticos etc., e a relação deste com a população que dele se apropria e reconhece sua significância. Por fim, tratando-se de um documento que deve ser periodicamente revisto, mantendo-se dinâmico e aberto a novos valores e interpretações sobre o bem, a declaração contribuiria para sua não estagnação no tempo e sua integração à vida cotidiana das gerações presentes e futuras.

As dimensões turísticas poçoscaldenses e a interface com o patrimônio

A partir do entendimento sobre a significância cultural e sobre as possibilidades de gestão fornecidas pela Declaração de Significância Cultural, foi possível perceber a necessidade de uma leitura totalitária dos bens que se pretende preservar, seus contextos socioculturais, econômicos e políticos, a fim de se compreender os valores passados e presentes, aqueles tradicionalmente aceitos pelos técnicos e especialistas da preservação e aqueles relativos às comunidades associadas ao bem.

A leitura da história de Poços de Caldas busca evidenciar não apenas a história oficial, que a coloca como cidade construída para cura, mas também a sua inserção nos contextos nacional e internacional, a fim de tecer um panorama mais amplo dos valores que regeram a construção dessa paisagem, chegando aos dias de hoje, com suas formas contemporâneas de apropriação e os dilemas de sua gestão.

A fim de construir um raciocínio que possibilite visualizar esses processos históricos de maneira mais objetiva, levando em consideração que o principal foco da cidade sempre foi a atração de público, delimitamos três períodos distintos no turismo de Poços de Caldas. Esses recortes têm por finalidade facilitar a análise dos contextos nacionais e internacionais, nos quais a cidade se insere, sob a ótica do turismo e da preservação, como veremos a seguir.

O termalismo e as vilegiaturas

A formação das estâncias balneárias no Brasil

O interesse pelas fontes hidrominerais no Brasil, que já vinha sendo relatado por viajantes e estudiosos desde o final do século 18, os quais as descreviam em seus relatórios de viagem publicados em periódicos científicos, e tornou-se ainda maior após a chegada da Família Real Portuguesa ao país, em 1808, trazendo consigo os costumes europeus das caldas e banhos e das vilegiaturas. Dessa forma, a partir de meados do século 19 foram construídos os primeiros estabelecimentos hidroterápicos do país, com a aplicação de recursos privados (7). O interior do país, junto às fontes hidrominerais e no litoral, com os banhos de mar, principiava a implementar uma estrutura de saúde e lazer que viria a se desenvolver e consolidar nas décadas posteriores.

A ampliação da malha ferroviária também teve um papel significativo no desenvolvimento do que viria a ser o turismo no brasil, possibilitando não apenas o desenvolvimento econômico, principalmente do ramo cafeeiro, com consequente acúmulo de riqueza da elite que, assim, dispunha de recursos e tempo para a prática das vilegiaturas; evidentemente, a ampliação também facilitou o deslocamento e o acesso entre as capitais e os destinos situados no interior e no litoral (8).

As décadas de 1920 e 1930 foram consideradas “os anos dourados”, ou a “Belle Époque” do desenvolvimento desse “gérmen” do turismo brasileiro. A partir de 1920, os cassinos de bailes e jogos passaram a desempenhar um papel central na economia das estâncias brasileiras, assim como havia ocorrido nas estâncias balneárias da Europa. Neste ano, o então presidente Epitácio Pessoa assinou o Decreto n. 3987 de 1920, que tinha por finalidade reorganizar a situação da saúde pública no país; para esse fim, uma das medidas aprovadas foi a autorização para a realização de jogos de azar nas estâncias balneárias. Os impostos arrecadados com a atividade, segundo o decreto, seriam empregados para fins de saúde pública, de forma que a implementação dos cassinos ajudou a financiar, ao longo dos anos, boa parte das obras de infraestrutura e saneamento das cidades balneárias. Além disso, os jogos e bailes promovidos ampliavam a gama de visitantes que acorriam à essas cidades, não mais apenas em busca de descanso e saúde, mas em busca da grande profusão de formas de entretenimento e lazer que se desenvolviam.

A cidade de Poços de Caldas se desenvolveu entre os anos de 1889 (com a chegada da ferrovia) e 1920 (com a implementação do Decreto n. 3.897 de 1920) tendo como principal foco as atividades termais do Balneário Pedro Botelho, que atraíam turistas voltados aos tratamentos medicinais; a cidade recebia, ainda, membros da elite de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que, em busca de seu clima ameno e paisagens naturais, construíam chalés de veraneio na cidade. Assim, até cerca de 1920, Poços de Caldas tinha seu foco voltado ao termalismo e à descoberta das propriedades medicinais de suas águas e clima; paralelamente, também já se apresentava como recanto de quietude para as elites que construíam suas casas de veraneio e que, no período seguinte (dos cassinos e entretenimento), seriam parte importante da lotação de cassinos e bailes na cidade.

Porquanto é em 1925, que se tem executada a primeira grande obra de reformulação do que viria a ser o Complexo Hidrotermal, conformação que apresentava pela primeira vez um cassino implantado junto ao hotel e ao balneário, marcando o início do período dos jogos e entretenimento na cidade.

Os cassinos e o entretenimento

Esse cenário, portanto, abriu caminho para que, a partir da década de 1930 (mais especificamente até 1946), impulsionados pelo contexto político nos âmbitos federal e internacional, os cassinos passassem de secundários à principal atividade econômica das estâncias.

A prática de uma forte propaganda com a promoção de ideias nacionalistas de patriotismo e defesa do governo do Estado Novo e, em paralelo, a recorrente presença de Getúlio Vargas e sua esposa nos salões de bailes dos cassinos mais importantes do país, reforçavam a criação de um imaginário em relação a esses ambientes, ligado aos “valores da nação”.

É nesse contexto que o Complexo Hidrotermal e Hoteleiro de Poços de Caldas é construído. As obras, iniciadas em 1928, alinhavam os anseios da medicina, inspirados na hidrologia europeia, à essa tendência nacional de ampliação da infraestrutura turística das estâncias, com hotéis e cassinos maiores e mais glamorosos. No mesmo período, estâncias como Águas da Prata, Águas de Lindóia, Águas de São Pedro, Lambari e outras, também passaram pelo mesmo processo, recebendo incentivos governamentais para a contratação de profissionais de renome (Saturnino de Britto, Dierberger e Victor Dubugras foram alguns dos nomes mais recorrentes) e execução de grandes obras de infraestrutura e saneamento (9).

Mapa demonstrando a localização dos cassinos e casas de jogos (pontos em rosa) no entorno imediato do Complexo (em amarelo), até 1946, segundo informações da Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento
Elaboração das autoras com base nos dados da Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento U

Nesse período, a grande produção imagética, tanto de fotos como de vídeos, promovia não apenas os bailes e festas no interior dos cassinos, como os desfiles e festas de rua que se realizavam anualmente. Pode-se interpretar tais fatos, portanto, como indícios de que, já nesse período, havia um redirecionamento da imagem divulgada da cidade, não tão ligada apenas ao termalismo, mas a toda uma ambiência de entretenimento dentro e fora dos cassinos, tendo como principal locus o Complexo Hidrotermal e Hoteleiro e suas imediações.

A cidade, assim como as demais estâncias balneárias que investiram no jogo como uma das principais atividades econômicas, presenciou o absoluto sucesso até 1946, quando, como um de seus primeiros atos após eleito, Eurico Gaspar Dutra restabeleceu a vigência do artigo n. 50 da Lei de Contravenções Penais, por meio do Decreto-Lei n. 9.215 de 30 de abril de 1946, proibindo os jogos de azar e obrigando o fechamento de todos os cassinos e casas de jogos no país.

A economia esteve bastante abalada após a proibição dos jogos, mas a cidade conseguiu se manter como referencial turístico, apoiada no imaginário criado através de décadas de propaganda nos jornais e revistas, que ajudaram, nesse momento, a redirecionar o foco do turismo. Dessa forma, criaram-se outras imagens associadas a Poços de Caldas, que tinham potencial para atrair públicos mais variados e manter a economia circulando. É notável nos veículos de comunicação as matérias publicadas dando ênfase a esse novo enfoque turístico, não mais voltado aos jogos, mas sim a práticas de viagens de lua de mel na cidade.

O fim dos jogos não determinou o fim do turismo na cidade. Apesar da fase ter sido marcada pela intensa industrialização do município, os anos 1950 e 1960 já demonstravam a tendência que se consolidaria no período seguinte, com a grande atração de um público de estadia curta e poucos gastos, em busca de atividades de lazer rápido e barato, sem necessária vinculação à história termalista da cidade, mas à essas novas imagens criadas e amplamente difundidas.

O patrimônio e o turismo de massa

A relação turismo-patrimônio

Os anos 1950 marcaram a crescente industrialização do país, especialmente nos anos do Governo Juscelino Kubitschek. As cidades enfrentavam problemas urbanos decorrentes desse processo, com a pressão demográfica ocasionada pelo êxodo do campo para as cidades levando ao crescimento acelerado e ao aumento dos fluxos de automóveis e veículos pesados; nas cidades turísticas, esse aumento se refletia no grande fluxo de turistas (10).

Assim, no início dos anos 1970, no Brasil, a Empresa Brasileira de Turismo — Embratur iniciava suas atividades de estruturação da promoção turística no país. Dentro dos ideais nacionalistas do período de ditadura militar, o patrimônio desempenhava ainda um importante papel na construção de uma identidade nacional, a ser conhecida e popularizada.

Marcia Sant’Anna (11), busca explicar a construção da ligação entre planejamento urbano e a recuperação do patrimônio como resultante de processos de reordenamento econômico em âmbito mundial. A autora estabelece nos anos 1970, durante o período do capitalismo tardio, a descentralização dos meios de produção, deslocados para países periféricos em busca de baixos custos de produção e mão-de-obra visando o lucro máximo das multinacionais. Essa descentralização da produção não significou, no entanto, a retirada das sedes dessas empresas dos países centrais. Os centros de comando e controle das atividades se mantiveram concentrados nos países da América do Norte, Europa e Pacífico Asiático, criando as chamadas cidades globais, fenômeno que ampliou a competição urbana por postos nessa rede.

Nesse processo competitivo urbano, as cidades globais se tornaram o principal destino de residência das elites envolvidas no gerenciamento dessas atividades; nas grandes metrópoles, as áreas escolhidas eram, geralmente, as áreas históricas preservadas ou reabilitadas para este fim. Por consequência, observou-se grande aumento do valor comercial de imóveis antigos localizados nessas áreas.

O patrimônio passou a ser visto, então, como elemento de valorização dessas localidades, passando à condição de recurso econômico e levando a um aumento exponencial no número de intervenções urbanas em centros históricos que propunham, sob um discurso de requalificação e resgate da memória e identidade local, a reversão dos processos de degradação de áreas antigas para adequação ao mercado imobiliário. Este processo se consolidou como um modelo de atuação difundido por todo o mundo como solução não só para a questão do patrimônio, mas para os mais diversos problemas urbanos.

Esse modelo chega ao Brasil nos anos 1990, em meio a um contexto de busca por uma descentralização da gestão urbana e do patrimônio, saindo do âmbito do Governo Federal e promovendo a maior integração com outros atores, com ênfase na parceria público-privada (12).

Marketing urbano e o turismo de massa

Portanto, nesse período, nota-se uma forte relação do turismo com estratégias de marketing comercial, tanto nas propagandas, como na elaboração de estratégias de atuação a partir de pesquisas de público, que possibilitaram a segmentação da oferta do produto turístico nacional através do desenvolvimento de programas e destinos específicos para cada público.

Transpondo essas estratégias do âmbito empresarial para o planejamento urbano, nesse contexto de competitividade, as cidades passaram utilizar-se da cultura e do patrimônio como forma de destacar-se umas das outras, dentro de um cenário em que a importação de modelos prontos de planejamento urbano homogeneíza as paisagens. Dessa forma, as operações de valorização (ou de valoração, no sentido econômico do termo) e utilização do patrimônio como estratégia comercial ajudaram a transformá-lo em um produto “médio” adequado ao consumo de massa.

Ao refletir sobre os efeitos desses processos na percepção dos bens patrimoniais, Marcelo Antonio Sotratti (13), comenta que há a criação de uma nova imagem da cidade adequada à promoção turística, que tem como consequência uma redução na narrativa do patrimônio, resumindo sua complexidade a uma imagem estereotipada de cidade moderna, viva e reciclada (14), de fácil absorção e apropriada ao consumo rápido. Sua complexidade e diversidade histórica, social e cultural, que construíram sua identidade ao longo do tempo, fica assim reduzida a um produto standart, que apenas reforça o apelo consumista e espetacularizante dos espaços produzidos nessas operações.

Paralelamente, a inserção de novos usos e significados nessas áreas substituem, progressivamente, a memória e identidade desses espaços e criam, assim, novas identidades urbanas. Segundo Josep Maria Montaner (15), nesses processos de eliminação das “memórias reais”, há a invenção de memórias temáticas que se estabelecem, ao longo do tempo, como as novas “memórias reais” desses espaços, sem que a população esteja muito consciente disso. Um dos mecanismos utilizados nessa alteração da memória é a produção da apropriação de um lugar “mediante o esvaziamento de seu conteúdo simbólico e a mudança de seu significado” (16), o que vai de encontro com as colocações feitas por Sotratti (17).

Carros militares expostos e tendas para a venda de alimentos durante evento de exposição de carros antigos
Foto Anamaria Canuto Sales de Oliveira, 2019

Dessa forma, os projetos de refuncionalização turística de áreas centrais históricas, nos quais o patrimônio se apresenta como um produto bem embalado e pronto para o consumo sob a justificativa de sustentabilidade dos bens, torna-se um processo de distração da memória relativa a esses bens, levando a redução de seus significados. A importação de modelos prontos de planejamento urbano, sem levar em conta os contextos únicos de cada localidade, transforma o patrimônio, gerido sob esses padrões, em um cenário standart para um turismo voyeurista, que não tem maior relação com o patrimônio que não a simples contemplação e o consumo de subprodutos desse turismo. Essa forma de intervenção influenciou projetos executados em diversas cidades brasileiras, tanto nas capitais, como no interior.

O concurso Poços Centro Vivo e seus resultados

Sob essa perspectiva, o concurso para a Revitalização da Área Central da Cidade de Poços de Caldas, ou Poços Centro Vivo, idealizado em 1993, promovido pela Prefeitura Municipal dentro do que estava ao seu alcance — compreendemos aqui que toda intervenção é feita a partir dos instrumentos teórico-críticos disponíveis em seu tempo, a partir dos contextos socioeconômicos existentes —, buscando a recuperação dessa área central. Trazia aliado ao discurso de desenvolvimento econômico a ideia de modernização, com a criação de um ambiente urbano limpo, organizado, com ares de novidade, com seu patrimônio restaurado e pronto para uma apreciação estética, um cenário perfeito para a ampliação da atividade turística. Esse centro vivo estava muito mais voltado à criação de condições para a apreciação dos bares e das lojas de suvenires destinados ao turista, com o Complexo como um belo pano de fundo, do que de fato à restauração desse patrimônio, no sentido do resgate e difusão de seu conteúdo simbólico e histórico.

É importante pontuar, no entanto, que não há uma crítica ao concurso ou ao seu formato. Entendemos que elaboração foi baseada no que havia de mais recente em relação à intervenção urbana: a recuperação dos centros urbanos em um contexto de fomento ao turismo de massas. Além disso, no contexto local, a prefeitura municipal carecia da recuperação desse centro e de seu reestabelecimento como potencial atrativo econômico e o fez dentro de suas possibilidades (econômicas e teórico-conceituais), ainda que os bens fossem de propriedade e gestão do Governo do Estado.

Dessa forma, a criação de uma nova imagem para o turismo poçoscaldense, iniciada desde o fim dos jogos e reforçada pelo Concurso, demonstra alguns aspectos como apresentados por Sotratti (18) e Montaner (19). A “cidade das rosas”, ou a “cidade da lua de mel” pode ser mais facilmente apreendida do que a complexidade de sua história de cidade balnearia termalista; além disso, tais imagens simplificadas da cidade possuem maior apelo comercial e imagético, pois, por serem tão genéricas, possuem potencial para alcançar uma diversidade maior de pessoas.

Data desse mesmo período, como registrado no edital do concurso, a propagação do uso dos espaços públicos do Complexo como palco para os mais variados eventos culturais e comerciais, como o próprio festival de inverno do município, iniciado em 1994, que foi elaborado pelo poder público e que, até hoje, tem o Complexo como cenário de parte de suas atrações.

Ao longo dos anos, outros eventos passaram a se apropriar desse patrimônio como suporte para sua execução. Um exemplo da espetacularização desses bens é a realização da Sinfonia das águas, evento que ocorre no parque José Affonso Junqueira, composto pela apresentação musical da Orquestra Sinfônica do Conservatório Municipal e pela projeção de show de luzes na fachada do Palace Hotel. Nota-se que os eventos que se realizam na área não têm qualquer relação com os significados desses bens, mas sim com sua ambiência.

Criaram-se, assim, todas as condições para a consolidação da imagem de uma cidade de belezas excepcionais, de fácil acesso a partir dos principais centros urbanos, organizada e sinalizada, com grande oferta de pontos turísticos e grande infraestrutura hoteleira, de comércios e de serviços e com diversas opções de atrações culturais não apenas em épocas de temporada, mas ao longo de todo ano. Mas a cidade balneária termal que construiu toda essa paisagem e infraestrutura não foi de fato transmitida juntamente com essa nova imagem; pelo contrário, as novas imagens se sobrepõem ao histórico, relegando-o a pano de fundo dessa nova identidade que substitui a primeira, desvanecendo a “memória real”, como explicado por Montaner (20).

Palco com apresentação musical e grande reunião de pessoas, durante feira de Cervejas Artesanais
Foto Anamaria Canuto Sales de Oliveira, 2019

Considerações finais

Percebe-se que, nos dois primeiros períodos analisados — o Termalismo e as Vilegiaturas e os Cassinos e o Entretenimento —, o complexo tinha papel de protagonista ativo nas atividades turísticas não apenas como contenedor dessas atividades, mas como próprio veículo pelo qual essas se realizavam: tanto no período termalista, quando os elementos do complexo eram considerados parte do tratamento, como no período do entretenimento e lazer, com os bailes e jogos dos cassinos e os eventos a céu aberto. No período do turismo de massa, no entanto, esse patrimônio se torna cartão postal, mero elemento de promoção da cidade, não mais protagonista desse turismo; sua imagem passa a ser o cenário para as atividades de atração que se realizam nele, e não através dele.

Quando o poder público hoje, especialmente na figura do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico — Condephact, questiona os usos dessa área e critica a apropriação da população sem respeito ao bem histórico, ignora o fato de que essa população sequer toma conhecimento desse valor histórico que não lhe foi transmitido ao longo do tempo, de forma que se apropria desses espaços patrimoniais como espaços públicos habituais ou costumeiros.

A promoção de uma atividade turística massificada, meramente voyeurista, ou seja, pautada no consumo visual, que tem o complexo como mero instrumento dos eventos que nele se realizam, sem relação com seu conteúdo simbólico e histórico, colaborou para que esses valores caíssem no esquecimento da maioria da população, ficando relegados apenas ao saudosismo dos memorialistas e dos estudiosos da história e da arquitetura.

O turismo não pode, no entanto, ser simplesmente considerado o vilão da história. De fato, a construção da cidade de Poços de Caldas esteve, desde seus primórdios, ligada à intenção de atração de público, estando seu desenvolvimento urbano intimamente ligado ao seu desenvolvimento turístico.

Entendemos que o turismo pode ser um elemento essencial para a sustentabilidade econômica do patrimônio, como enunciado nas Normas de Quito, mas é fundamental que esteja alinhado com a transmissão desse patrimônio em sua totalidade simbólica, histórica e social, de maneira a colaborar para a educação patrimonial, forma pela qual se preserva efetivamente o patrimônio cultural. Para esse fim, a Declaração de Significância Cultural, enquanto documento basilar para qualquer ação sobre bens patrimoniais, é de fundamental importância para balizar as ações e gestão desses bens.

notas

1
The Burra Charter. Icomos Austrália, Burra, 2013, art. 1º <https://bit.ly/2vQbVGQ>. Tradução da autora.

2
ZANCHETI, Sílvio Mendes; HIDAKA, Lúcia Tone Ferreira; RIBEIRO, Cecilia; AGUIAR, Barbara. de. Judgement and validation in the Burra Charter Process: introducing feedback in assessing the cultural significance of heritage sites. City & Time (online), v. 4, 2009, p. 50.

3
Idem, ibidem, p. 50.

4
Idem, ibidem, p. 51.

5
ZANCHETI, Silvio Mendes; HIDAKA, Lúcia T. Ferreira. A declaração de significância de exemplares da arquitetura moderna. Texto para discussão. Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada, v. 57, Olinda, 2014. p. 5.

6
AZEVEDO, Gabriela; PONTUAL, Virgínia; ZANCHETI, Silvio. Declaração de Significância: um instrumento de salvaguarda do patrimônio arquitetônico. Anais do 12º Congresso Internacional de Reabilitação do Patrimônio Arquitetônico e Edificado, Bauru, 2014, p. 10.

7
FRANCO, Amanda Cristina. Os primeiros registros do uso de águas termais e a formação das estâncias hidrominerais no Brasil. Cadernos de Naturologia e Terapias Complementares, vol. 3, n. 5, p. 31, 2014.

8
PAIXÃO, Dario Luiz Dias. Thermae et Ludus: o início do turismo de saúde no Brasil e no mundo. Turismo em Análise, v. 8, n. 2, 2007, p. 141.

9
FRANCO, Amanda Cristina. Op. cit., p. 36.

10
NASCIMENTO, José Clewton do. (Re)descobriram o Ceará? Representações dos sítios históricos de Icó e Sobral: entre Areal e patrimônio nacional. Tese de doutorado. Salvador, Faufba, 2010, p. 104.

11
SANT’ANNA, Marcia. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas centrais no Brasil dos anos 1990. Salvador, Edufba PPG AU Faufba, 2017.

12
NASCIMENTO, José Clewton do. Op. cit., p. 111.

13
SOTRATTI, Marcelo Antonio. Imagem e Patrimônio cultural: as ideologias espaciais da promoção turística internacional do Brasil — Embratur 2003–2010. Tese de doutorado. Campinas, IGE Unicamp, 2010.

14
Idem, ibidem, p. 69.

15
MONTANER, Josep Maria. Os traumas urbanos: o apagamento da memória. In MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativo. São Paulo, Gustavo Gili, 2017.

16
Idem, ibidem, p. 159.

17
SOTRATTI, Marcelo Antonio. Op. cit.

18
Idem, ibidem.

19
MONTANER, Josep Maria. Op. cit.

20
Idem, ibidem

sobre as autoras

Anamaria Canuto Sales de Oliveira é arquiteta e urbanista (PUC MG) e mestranda (Posurb ARQ PUC Campinas), com pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Capes.

Ana Paula Farah é professora associada na PUC Campinas, nos departamentos Centro de Ciências, Exatas, Ambientais e de Tecnologia, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo.

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