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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Investiga-se a concepção arquitetônica através de relações topológicas em complemento à representação geométrica. O desenvolvimento de categorias resulta em decisões baseadas em relações espaciais da vivência do usuário.

english
The architectural design is investigated through topological relationships in addition to the geometric representation. The development of categories results in decisions based on spatial relationships of the user's life experience.

español
La concepción arquitectónica se investiga a través de relaciones topológicas complementario a la representación geométrica. El desarrollo de categorías resulta en decisiones basadas en relaciones espaciales de la experiencia del usuario.


how to quote

PERDIGÃO, Ana Kláudia de Almeida Viana; MENEZES, Tainá Marçal dos Santos; PAIXÃO, Rosineide Trindade da. Representação não geométrica como ponto de partida do projeto arquitetônico em experimentações na Amazônia. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 271.03, Vitruvius, dez. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.271/8678>.

O processo envolvido no ato de projetar tem sido objeto de reflexão teórico-conceitual e metodológica (1). As pesquisas pautadas na teoria da produção arquitetônica (2) visam a um processo projetual mais explícito e transparente, conforme a caixa de vidro de Chistopher Jones (3), referente ao espaço da concepção (4), validando instrumental para apoio à prática arquitetônica que possa ser ensinável e transmissível. No entanto, é evidente que muitas vezes não há integração entre as partes voluntárias e involuntárias do processo de concepção, indicando uma série de lacunas no pensamento projetual ainda passíveis de investigação.

Assim sendo, tem-se buscado a construção de uma base epistemológica voltada à produção de conhecimento sobre questões operativas na medida em que fortalece a prática profissional e o ensino de arquitetura, contextualizadas pela realidade amazônica (5). Um dos eixos busca a instrumentalização do projeto para concepção arquitetônica na escala do edifício, em que o investimento teórico-metodológico centra-se na relação entre ser humano e espaço construído para dar conta da problemática envolvida na produção de habitação social, investigada pelo ponto de vista do usuário, que geralmente não é o cliente. O desafio encontra-se na elaboração de estratégias de compartilhamento de conhecimento de modo a impulsionar a assimilação do saber popular pelo conhecimento formal de arquitetura.

As pesquisas realizadas no âmbito da instrumentalização do projeto, em termos cognitivos e operativos, têm apresentado importantes contribuições por meio do desenvolvimento de categorias analíticas que condicionam a configuração do espaço, buscando resultados que inaugurem temas não tradicionais (6) a serem incorporados no percurso projetual a fim de que o repertório se especialize em níveis de aprofundamento da compreensão do espaço arquitetônico e sua consequente formação (7), ultrapassando as representações geométricas como ponto de partida da concepção (8) pela introdução de representações topológicas, e as relações espaciais decorrentes, na elaboração do projeto de arquitetura na escala do edifício, como já adotado no projeto em escala urbana desde a década de 60 do século 20.

Essa ampliação do olhar técnico do arquiteto, que alcança um pensamento projetual envolvendo operações geométricas e não geométricas, vem impactando diretamente no ensino de graduação, quando revela uma alternativa para as decisões de projeto pautadas em estudos do uso espacial que fortalecem um conhecimento detalhado da interação entre ser humano e o espaço construído, contribuindo com a prática profissional do arquiteto ao incluir decisões de projeto baseadas na vivência espacial do usuário.

As repercussões diretas desse pensamento podem ser observadas em Trabalhos de Conclusão de Curso — TCC em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Pará — UFPA, fundamentados em estudos que vem sendo desenvolvidos na pós-graduação com a pesquisa em projeto. Portanto, busca-se demonstrar a presença de um círculo virtuoso entre pós-graduação (Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará — PPGAU UFPA) e graduação (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará — FAU UFPA) em torno de atividades coordenadas entre pesquisa e ensino de projeto, conforme os resultados alcançados na linha de atuação do Laboratório Espaço e Desenvolvimento Humano — Ledh UFPA, sob a coordenação da professora doutora Ana Klaudia Perdigão.

Qualidades espaciais em estudos topológicos

As pesquisas em projeto desenvolvidas no Ledh UFPA visam à instrumentalização do projeto de arquitetura e são compostas por estudos sobre as representações espaciais (9) e os respectivos pontos de partida da concepção arquitetônica em termos geométricos, topológicos e pulsionais. Tratam-se de investigações que buscam superar temas tradicionais do projeto de arquitetura e, de modo inclusivo, objetivam uma compreensão teórica para somar novas possibilidades, com especial atenção à descrição do espaço construído na Amazônia, preenchendo lacunas de teorias hegemônicas que, via de regra, deixam escapar peculiaridades significativas a esse modo de vida.

Tradicionalmente, o pensamento arquitetônico esteve voltado para a compreensão do espaço sob o ponto de vista geométrico, a forma sempre obteve destaque na concepção arquitetônica. Com os estudos topológicos, a experiência dos usuários ganha atenção por meio de investigações sobre a sua percepção que, muitas vezes, esconde algo além do espaço físico em si, ou seja, as relações espaciais podem descrever melhor a interação entre o ser humano e o espaço construído no uso espacial. Enquanto a geometria revela um aspecto manifesto e percebido dos objetos — ela tem uma forma, é vista em pontos, linhas e superfícies — a topologia é menos visível. De fato, as características topológicas decorrentes do arranjo espacial de um objeto arquitetônico, seja edifício ou situação urbana, são invisíveis em sua totalidade. A topologia está escondida, imersa em “relações espaciais” (10).

Dessa maneira, as categorias de natureza topológica, menos tradicionais ao escopo do projeto de arquitetura, permitem a investigação da vida espacial em determinados contextos do espaço construído, o que possibilita a reflexão e a especulação sobre a produção do espaço mediante a um leque ainda mais abrangente, e até certo ponto invisível para a tradição do ofício da arquitetura, com variáveis e necessidades humanas mais em destaque.

Os resultados das pesquisas em projeto, realizadas no Ledh UFPA, têm oportunizado a sistematização de soluções físico-espaciais referentes à produção do espaço com e sem arquitetos que podem ser incorporadas ao conhecimento formal da arquitetura em termos geométricos e não geométricos, especialmente como subsídio à concepção em projetos (11) inseridos nas especificidades da realidade amazônica, sendo uma delas o habitat ribeirinho no âmbito da arquitetura vernacular.

Nessa linha de pesquisa, o tipo palafita amazônico foi caracterizado por Tainá Menezes (12) a partir de qualidades topológicas desenvolvidas por Christian Norberg-Schulz (13): relações de proximidade, de continuidade e de sucessão, para descrever a interação da casa ribeirinha com o ambiente natural e entorno construído, bem como no seu interior, em programa governamental de remanejamento/reassentamento na cidade de Belém PA. As relações de proximidade referem-se ao contato com o ambiente natural, o rio e a floresta, e no interior da casa referem-se à localização do banheiro; enquanto que as relações de continuidade envolvem a presença do sistema mata-rio-roça-quintal (14), indicando que a dinâmica da habitação é muito mais do que um local de abrigo, assim como representa o fluxo da circulação no interior da casa, o qual é conectado ao ambiente de uso e geralmente não separado fisicamente por corredores; por fim, a relação de sucessão aponta para os espaços de transição entre a edificação e o entorno construído, representado por varandas, jiraus na cozinha, escadas, estivas privadas ou qualquer outro elemento que se faça presente entre o público e o privado na habitação ribeirinha amazônica (15).

Os estudos sobre o tipo palafita amazônico tiveram início com a investigação das relações espaciais de natureza topológica — proximidade, continuidade e sucessão — na comunidade Vila da Barca, Belém, Pará, Brasil, comparando a habitação formal em sobrados e a habitação informal em palafitas. Identificou-se que a comunidade possui fortes traços de uma cultura ribeirinha, mesmo em perímetro urbano, observados pela presença de elementos físico-espaciais para reprodução de relações topológicas da palafita, que, a priori, foram abandonadas com o processo de remanejamento habitacional no âmbito do projeto denominado Vila da Barca, mas que buscaram ser resgatadas, pelos próprios moradores, a partir de modificações nas habitações após o reassentamento (16). Os resultados permitiram a compreensão da vida espacial das famílias e uma associação direta com referências espaciais significativas que levam à caracterização do uso de tipos, o que apoiaria a análise e concepção arquitetônica em contextos de reassentamento habitacional mediante a complexidade que é a mudança tipológica da palafita para o sobrado.

Na mesma direção, Rosineide Paixão (17) realizou estudo longitudinal no contexto de programa de intervenção pública em assentamentos precários na comunidade Cubatão e o correspondente projeto de reassentamento, o projeto Taboquinha, localizados no distrito de Icoaraci, Belém, Pará, Brasil. A pesquisa buscou apoio teórico nos estudos de Jan Gehl (18), ao elencar categorias de natureza topológica, próprias da escala urbana, mas que pudessem ser aplicadas na escala do edifício, assumindo assim a incorporação da dimensão humana no projeto de arquitetura. Dessa forma, os conceitos de distância e dos espaços de transição suave foram tomados como categorias analíticas investigadas na escala do edifício (19).

A categoria distância, em seus desdobramentos, trouxe para a discussão conceitos, como espaço pessoal (20), amplidão (21) e parâmetro projetual: casa longa e estreita (22), gradiente de intimidade (23) e privacidade (24). Já a categoria espaços de transição suave, corresponde a parâmetros projetuais de Christopher Alexander (25), como espaço de transição, ambiente de entrada e varandas, e galerias, os quais proporcionam inúmeras qualidades, tanto para o espaço externo (ruas), quanto ao interno (habitação), contribuindo de forma harmoniosa para enriquecer a relação entre usuário e espaço construído. Essas categorias foram evidenciadas a partir dos estudos nas casas de origem dos moradores (palafitas na comunidade Cubatão — antes do remanejamento), nas casas dos sonhos (retratadas por desenhos e falas dos moradores — antes do remanejamento), bem como nas casas da produção formal (casa do projeto Taboquinha — após o remanejamento) por meio das modificações realizadas e planejadas pelos próprios moradores, o que permite apontá-las como categorias relevantes como ponto de partida na concepção arquitetônica de habitação social para auxílio do projetista.

A sistematização de categorias topológicas tem se mostrado um mecanismo profícuo para instrumentalização do projeto de arquitetura, abrindo caminhos para a incorporação de temas não tradicionais e contribuindo para a adoção de um ponto de partida não geométrico. A discussão de temas relacionados à vida humana vem demonstrando a importância das referências espaciais no escopo do projeto de arquitetura, ou seja, a complementação de dados vivenciais permite um aprofundamento da relação entre usuário e lugar, suscitando a formação de repertório com aspectos significativos. Logo, os repertórios passam a não ser mais referências exclusivamente geométricas, conforme o tradicional percurso de projeto pautado nos aspectos formais e funcionais, mas também com adoção de soluções como forma de resgatar espacialidades de um saber local, um cotidiano peculiar moldado por espaços e também por relações espaciais (26) a serem decifradas.

No Ledh UFA, essas categorias tem evidenciado o conhecimento sobre o habitat ribeirinho, o qual ainda é pouco discutido na escala do edifício, e tem apresentado importantes contribuições para o desenvolvimento de projetos de arquitetura de estudantes na fase de trabalhos de conclusão de curso voltados para esta realidade, abrindo caminhos para a incorporação de conteúdos projetuais ligados ao saber informal na prática profissional. O quadro “Qualidades espaciais do habitat ribeirinho” ilustra a síntese de um acúmulo resultante de investigações realizadas em torno de qualidades espaciais, reforçando a importância da relação entre teoria e prática no ateliê de projeto (27). Em seguida serão apresentados três projetos desenvolvidos, à época, por estudantes de graduação com orientação da professora doutora Ana Klaudia Perdigão, que partiram de temas não tradicionais ao projeto de arquitetura (categorias topológicas) como norteadores da concepção arquitetônica.

Qualidades espaciais do habitat ribeirinho [Acervo Ledh UFPA]

O projeto de arquitetura visto sob o olhar de temas tradicionais e não tradicionais

Análise, síntese e avaliação representam as sequências fundamentais nas decisões de projeto (28). A análise de temas tradicionais (condicionantes de projeto) e não tradicionais (qualidades topológicas) é uma fase na qual o arquiteto define os critérios adotados como ponto de partida do projeto. Já na fase de síntese, ele organiza as ideias e reúne os temas tradicionais e não tradicionais para concepção do partido arquitetônico, cuja espacialidade resultante de um conjunto de decisões, ainda que preliminar, contém a essência da proposta. Por fim, na fase de avaliação, o arquiteto pondera se a solução adotada responde ao problema de projeto, o que consequentemente será satisfatório se os objetivos alcançarem demandas espaciais mais imediatas do ponto de vista físico e, também menos imediatas, contudo existenciais, da vida humana.

Seguindo essa lógica projetual, que ultrapassa os aspectos geométricos, os Trabalhos de Conclusão de Curso — TCC de Tainá Menezes (29), Rosineide Paixão (30) e Danielli Felisbino (31) adotaram qualidades topológicas como ponto de partida da concepção arquitetônica buscando atender às espacialidades associadas à realidade amazônica, baseando-se em resultados de pesquisas científicas que, por sua vez, geraram instigações para aprofundamento teórico na pós-graduação. Faz-se necessário também ressaltar a experiência dos estudantes nas áreas de pesquisa referentes a remanejamento/reassentamento habitacionais, tornando possível cumprir um ciclo virtuoso no processo de projeto enolvendo análise, síntese e resultados de avaliação em áreas habitacionais.

Na fase de análise, as categorias topológicas têm contribuído para a decisão de projetar a partir do lugar e das relações espaciais predominantes na realidade local. A motivação para a concepção arquitetônica provém de um pensamento projetual pautado nas pesquisas do PPGAU UFPA que repercutem no ensino de graduação. Na fase de síntese, as categorias integram-se aos condicionantes tradicionais do projeto de arquitetura como definidores do partido arquitetônico. Já na etapa de avaliação, elas respondem às necessidades expressas pelos usuários em pesquisas realizadas pela equipe do Ledh UFPA em áreas de assentamentos precários, evidenciando que esse instrumento de concepção atende à dimensão humana do projeto de Arquitetura e tem resultado em conhecimento operativo para subsidiar a prática arquitetônica.

Nota-se que as categorias de natureza topológica trazem correspondência direta com elementos geométricos, assim, elas ajudam na compreensão da integração de tais representações espaciais (32). Os TCCs a serem apresentados manifestam, em sua ação projetual, a linha de pensamento que estabelece o ponto de partida não geométrico, evidenciando também que esses trabalhos cada vez mais demonstram um processo de projeto explícito, com uma metodologia que organiza o raciocínio projetual e a tomada de decisões passa a ser referenciada não só em aspectos geométricos, mas também em qualidades espaciais de natureza topológica.

Localização das áreas de estudo [Acervo Ledh UFPA]

Diversidade tipológica e humanização na Vila da Barca

O TCC de Tainá Menezes (33), intitulado Tem gente aí! Diversidade tipológica em projeto arquitetônico para os moradores da Vila da Barca (Belém PA) apresentou uma proposta arquitetônica de habitação de interesse social para os moradores da Vila da Barca, comunidade historicamente ocupada por populações ribeirinhas advindas do interior da Amazônia no início de século 20. A partir de consulta realizada no ano de 2011, a proposta de projeto apoiou-se nas respostas dos moradores, tendo como norteadores da concepção arquitetônica a humanização por meio do resgate de hábitos do modo de vida ribeirinho e a diversidade de tipologias habitacionais.

A Vila da Barca está localizada em região central da cidade de Belém, às margens da Baía do Guajará, em terreno com características topográficas de solos alagáveis, o que facilitou o tipo de ocupação em habitações sobre as águas, ficando conhecida como comunidade flutuante (34). Os problemas de infraestrutura e saneamento motivaram a Prefeitura, por meio da Secretaria de Habitação — Sehab a apresentar, no ano de 2003, um projeto de erradicação das palafitas com a implantação de 634 unidades habitacionais em sobrados de alvenaria estrutural, além de saneamento, aterramento e infraestrutura urbana. O projeto não teve suas obras concluídas, e ainda hoje há uma parcela de moradores residindo em palafitas na área.

A solução proposta teve como ponto de partida o resgate de algumas relações espaciais, próprias do tipo palafita amazônico. A relação de sucessão pode ser observada nas três soluções projetuais: na casa térrea e nos sobrados, observa-se o uso de avarandados como espaços de transição, mas que também podem ser utilizados para futuras ampliações, dotando a habitação também de flexibilidade; nos edifícios em pilotis o corredor semiaberto cumpre o papel de elemento de transição entre o interior e o exterior da casa, especialmente quando o pavimento é destinado a um mesmo grupo familiar ou a antiga vizinhança, tornando a circulação mais restrita. A relação de proximidade com o rio procurou ser mantida através da visibilidade: as casas térreas e os sobrados foram dispostos de maneira que os caminhos que levam ao rio não fossem obstruídos, assim como a circulação horizontal linear e semiaberta do edifício também propicia essa visibilidade ao meio externo. Tais soluções também permitem que a relação de continuidade entre a casa e o entorno seja mantida.

Concepção arquitetônica e projeto de habitação para a Vila da Barca, Belém PA
Elaboração Tainá Menezes [Acervo Ledh UFPA]

A síntese entre condicionantes tradicionais e não tradicionais resultou em uma solução que priorizou a diversidade tipológica em uma mesma quadra, com casas térreas destinadas aos moradores mais antigos e que necessitavam de maior flexibilidade para resgatar o modo de vida habitual, habitações em sobrados e edifícios em pilotis, disponibilizados aos moradores de palafitas mais precárias. A humanização, presente desde a concepção, priorizou as relações espaciais anteriores, bem como soluções que remetem à tipologia em palafita, como o uso de pilotis e madeira, as venezianas e guarda-corpo; o uso de quintal na tipologia sobrado, o uso de pilotis e a configuração linear da circulação horizontal do edifício, estratégias essas que buscam o melhor aproveitamento da ventilação natural, da orientação solar, além de dotar a proposta de identificação, bem como de promover a vitalidade no uso habitacional.

Flexibilidade e personalização na Taboquinha

O TCC de Rosineide Paixão (35) intitulado Projeto Arquitetônico para reassentamento de famílias do Cubatão em Icoaraci, Belém — Pará foi uma proposta arquitetônica habitacional elaborada como alternativa aos conflitos identificados no reassentamento de famílias do projeto Taboquinha, originários da comunidade Cubatão, assentamento precário localizado no distrito de Icoaraci. O trabalho foi parte integrante dos resultados de pesquisa aprovada no edital MCTI/CNPq/MCIDADES n.11/2012 Universal.

As famílias da comunidade Cubatão passaram por um processo de remanejamento e reassentamento habitacional, iniciado no ano de 2008, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento — PAC do Governo Federal no eixo Urbanização de Assentamentos Precários, denominado de projeto Taboquinha. Tratava-se de intervenção pública em área alagada, com ações de regularização fundiária, infraestrutura e erradicação de palafitas com produção de 978 unidades habitacionais padronizadas em tipologias arquitetônicas térreas e em sobrados (66 unidades térreas e 912 unidades em sobrados), replicadas em outros programas habitacionais de diferentes regiões brasileiras, não respeitando o contexto local e cultural onde foram inseridas.

A proposta desenvolvida fundamentou-se nos resultados da pesquisa realizada na área de reassentamento do projeto Taboquinha, os quais apontaram uma série de conflitos arquitetônicos ocasionados pela dificuldade de adaptação dos moradores ao tamanho mínimo dos ambientes e ao rompimento de referências habitacionais anteriores, próprias de um modo de morar ribeirinho. Dessa maneira, foram adotadas como ponto de partida da concepção arquitetônica as diretrizes de flexibilidade e personalização como estratégias para agregar a qualidade arquitetônica do ponto de vista do espaço físico e do espaço vivido dos moradores.

Por meio de experimentações espaciais, decidiu-se explorar a flexibilidade a partir de habitações desenvolvidas por meio de uma matriz de módulos 3x3, organizados de diferentes maneiras, mas sempre com a possibilidade de expansão da casa a partir de dois elementos recorrentes no habitar ribeirinho, a varanda e o quintal, os quais atuam como espaços de transição suave entre o interior e exterior da casa. A categoria distância é observada na configuração linear do espaço que procurou trazer para a proposta maior gradiente de intimidade e privacidade entre os cômodos, além da amplitude proporcionada, tanto pelas áreas de expansão, quanto que pela opção do pé-direito elevado e valorização da luz natural. A personalização apoiou-se em aspectos da tipologia palafita, agregando elementos construtivos da cultura local, como a diversidade do acabamento em madeira nas varandas e a disposição do telhado em duas águas aparentes, com acabamento em madeira, além do uso de cores variadas, muito presente em comunidades ribeirinhas amazônicas.

Concepção arquitetônica e projeto de habitação para a comunidade Cubatão — Taboquinha, Icoaraci PA
Elaboração Rosineide Trindade da Paixão [Acervo Ledh UFPA]

O lugar como premissa para a Unidade Básica de Saúde Furo do Nazário

Danielli Felisbino (36), em seu TCC intitulado O projeto arquitetônico para unidade básica de saúde pelo tipo palafita (Barcarena PA): experimento com o lugar amazônico, apresentou uma proposta para a Unidade Básica de Saúde — UBS localizada no Furo do Nazário, Barcarena, Pará, Brasil, tendo como premissa respeitar o lugar e a cultura ribeirinha da comunidade circundante. O TCC se inseriu como parte integrante de um projeto de extensão do Ledh UFPA em parceria com os profissionais da área da saúde da atual UBS Furo do Nazário, o qual visava uma discussão mais abrangente sobre arquitetura institucional de saúde comprometida com o lugar, além da tensão entre o papel desempenhado pelo poder público com a peculiaridade regional e a atuação profissional da arquitetura.

A concepção arquitetônica teve como premissa o tipo palafita amazônico (37) na intenção de propor uma solução integrada ao lugar. Dessa maneira, o partido buscou manter a proximidade da unidade com o ambiente natural através da conservação da vegetação do entorno e da criação de um espaço destinado a uma piscina natural com aproveitamento da água do rio, oferecendo um novo uso ao elemento hídrico. A continuidade entre o ambiente natural entorno e à UBS foi pensada a partir de um partido com blocos distribuídos de maneira orgânica, conectados por uma estiva principal que contorna a vegetação circundante e acessa o rio. A sucessão pode ser vista de duas maneiras: através do trapiche de acesso, que atua como um espaço de transição entre o entorno e a UBS e no uso de varandas em todos os blocos de atendimento, muito comuns em habitações ribeirinhas, as quais podem sem usadas como espaço de espera dos pacientes e acompanhantes, demarcando a transição entre o exterior e o interior da edificação.

Para a formação de repertório tradicional, adotou-se a análise da configuração espacial, acessibilidade e circulação (38), selecionando-se exemplares na produção arquitetônica regional e internacional como meio para viabilidade construtiva de baixo impacto e integração à paisagem local, através do uso de materiais locais, como a madeira para esquadrias, uma cobertura que favorecesse a ventilação natural, beirais para sombreamento e proteção contra radiação solar e chuvas, piso elevado do solo, uso de venezianas como recurso para renovação do ar e amenização da temperatura nas obras de arquitetos. Neste sentido, a proposta adotada para UBS buscou soluções menos impositivas e mais humanizadas, possibilitando o equilíbrio entre requisitos de espaço físico e requisitos humanos.

Concepção arquitetônica e projeto de UBS no Furo do Nazário, Barcarena PA
Elaboração Danielli Felisbino [Acervo Ledh UFPA]

Considerações finais

As experimentações projetuais apresentadas apontam possibilidades inerentes à atividade acadêmica, portanto, admitem avaliação e transformação continuamente. Constata-se que o projeto de arquitetura ainda é um campo bastante desafiador na diminuição de dualidades inerentes ao fazer arquitetônico e, consequentemente, ao conhecimento que subsidia a prática. Entre a teoria e a prática, a criatividade e o método, o geométrico e o topológico, encontram-se lacunas do conhecimento que os estudos de natureza projetual buscam enfrentar e transpor oferecendo maior transparência ao processo projetual no ensino e na prática profissional.

A pesquisa em projeto desenvolvida no Ledh UFPA vem, há quinze anos, construindo estratégias de superação de lacunas enfrentadas no dia a dia da sala de aula e na interpretação de contextos de projeto que impactam na prática profissional, valorizando a articulação entre ensino e pesquisa ao considerar que o conhecimento formal organizado para subsidiar as operações de projeto pode contribuir sobremaneira para ampliação do olhar técnico, humanizando-o.

Por meio da busca de aproximações sucessivas para produção de conhecimento pelo interior da prática, os resultados dos trabalhos científicos produzidos em doze anos de pós-graduação na região norte do Brasil têm buscado integrar mais os conteúdos da pesquisa em projeto para apoiar a prática com a humanização, a personalização e o sentido de lugar. Desse modo, a concepção é motivada pela produção de conhecimento que ultrapassa paradigmas estabelecidos dentro da cultura arquitetônica vigente, menos formalista, investindo na expansão do pensamento que permite experimentações baseadas mais em princípios e menos na forma física como representação imediata para solucionar o projeto na escala do edifício.

Constata-se com isso que o método de tentativas e erros foi superado quando vai além da adoção eminentemente geométrica do partido arquitetônico. O uso de qualidades espaciais baseada em relações mostra-se como um caminho virtuoso com a complementação de categorias topológicas à tradicional representação geométrica do espaço arquitetônico no pensamento projetual.

Os exemplos apresentados objetivaram demonstrar a prática de uma articulação entre a graduação e a pós-graduação que estimula cada vez mais a importância da ciência para fortalecimento das teorias de produção arquitetônica, quando a produção de conhecimento científico preenche lacunas, tanto de natureza operativa quanto para consolidação de um vocabulário arquitetônico local, com a solidificação da pesquisa em projeto na discussão do lugar amazônico.

Os resultados das pesquisas científicas e os resultados dos trabalhos de graduação, juntos, deixam transparecer as repercussões diretas de um pensamento mais reflexivo e humanizado na prática arquitetônica, decorrentes de um quadro teórico-metodológico ampliado e com um processo de projeto envolvendo complexidade e expansão do pensamento projetual devido ao pensamento científico associado. A complexidade e expansão do pensamento projetual na concepção arquitetônica para pontos de partida não geométricos é um dos pilares do Ledh UFPA, o que provoca um desafio ainda maior na medida em que se trata da contribuição teórica para a produção arquitetônica envolvendo a cultura ribeirinha da Amazônia.

notas

1
VELOSO, Maísa. A pesquisa no campo de projeto de arquitetura e urbanismo no Brasil na perspectiva dos Seminários Projetar 2003–2015. Revista Projetar, v. 1, 2015, p. 53–58.

2
SILVA, Elvan. Novos e velhos conceitos no ensino do projeto arquitetônico. Anais do 1º Seminário Nacional sobre Ensino e Pesquisa em Projeto de Arquitetura, Natal, UFRN, 2003, p. 49.

3
JONES, Chistopher. Informe sobre la situación de la metodologia del diseño. In BROADBENT, Geoffrey. Metodologia del diseño arquitectonico. Barcelona, Gustavo Gili, 1973, p. 385–395.

4
BOUDON, Philipe. Do espaço arquitetural ao espaço de concepção. In DUARTE, Cristiane Rosa; RHEINGANTZ, Paulo Afonso; AZEVEDO, Giselle; BRONSTEIN, Laís (org.). O lugar do projeto no ensino e na pesquisa em arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2007, p. 42–50.

5
PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana. Teoria da produção arquitetônica na Amazônia. In CARDOSO, Ana Claudia (org). Trajetória de Pesquisa: PPGAU UFPA. Belém, Edufpa, 2019, p. 53–67.

6
DEL RIO, Vicente. Arquitetura: pesquisa e projeto. São Paulo/Rio de Janeiro, Pro Editores/FAU UFRJ, 1998.

7
OLIVEIRA, Rogério de Castro. Construção, composição, proposição: o projeto como campo de investigação epistemológica. In CANEZ, Anna Paula; SILVA, Cairo Albuquerque da (org.). Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação. Porto Alegre, Livraria do Arquiteto, 2010, p. 33–45.

8
PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana; BRUNA, Gilda Collet. Representações espaciais na concepção arquitetônica. Anais do 4º Seminário Projetar. Projeto como investigação: ensino, pesquisa e prática, São Paulo, Alter Market, 2009.

9
Idem, ibidem, p. 6.

10
AGUIAR, Douglas Vieira de. Planta e corpo: elementos de topologia na arquitetura. In DUARTE, Cristiane Rosa; RHEINGANTZ, Paulo Afonso; AZEVEDO, Giselle; BRONSTEIN, Laís (org.). Op. cit., p. 388–396.

11
PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana. Considerações sobre o tipo e seu uso em projetos de arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 114.05, Vitruvius, nov. 2009 <https://bit.ly/3YEWyxe>.

12
MENEZES, Tainá Marçal dos Santos. Referências ao projeto de arquitetura pelo tipo palafita amazônico na Vila da Barca (Belém PA). Dissertação de mestrado. Belém, PPGAU UFPA, 2015.

13
NORBERG-SCHULZ, Christian. Existence, space and architecture. New York, Praerger, 1971.

14
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Pressupostos do modelo de integração da Amazônia aos mercados nacional e internacional em vigência nas últimas décadas: a modernização às avessas. In COSTA, Maria José Jackson (org.). Sociologia na Amazônia: debates teóricos e experiências de pesquisa. Belém, Edufpa, 2001, p. 47–70.

15
MENEZES, Tainá Marçal dos Santos; PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana; PRATSCHKE, Anja. O tipo palafita amazônico: contribuições ao processo de projeto de arquitetura. Oculum Ensaios, v. 12, Campinas, 2015, p. 237.

16
MENEZES, Tainá Marçal dos Santos. Referências ao projeto de arquitetura pelo tipo palafita amazônico na Vila da Barca (Belém PA) (op. cit.); MENEZES, Tainá Marçal dos Santos; PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana; PRATSCHKE, Anja. Op. cit.

17
PAIXÃO, Rosineide Trindade da. Estudo longitudinal de famílias remanejadas e reassentadas no Projeto Taboquinha (Icoaraci, Belém, Pará) como subsídio ao projeto de Arquitetura em habitação social. Dissertação de mestrado. Belém, PPGAU UFPA, 2019.

18
GEHL, Jan. Cidade para pessoas. 2ª edição, São Paulo, Perspectiva, 2013.

19
PAIXÃO, Rosineide Trindade da. Estudo longitudinal de famílias remanejadas e reassentadas no Projeto Taboquinha (Icoaraci, Belém, Pará) como subsídio ao projeto de Arquitetura em habitação social (op. cit.), p. 8.

20
SOMMER, Robert; IACHINI, Tina. Personal Space. Reference Module in Neuroscience and Biobehavioral Psychology, Elsevier, 2017; SOMMER, Robert. Personal Space. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1969; ALEXANDER, Christopher. Uma linguagem de padrões. Porto Alegre, Bookman, 2013.

21
BARROS, Raquel R. M. Paula et al. Conforto e psicologia ambiental: a questão do espaço pessoal no projeto arquitetônico. Anais do Encac/Elacac, Maceió, 2005, p. 135–144.

22
Idem, ibidem, p. 535.

23
Idem, ibidem, p. 610.

24
REIS, Antônio Tarcísio. Repertório, análise e síntese: uma introdução ao projeto arquitetônico. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002; REIS, Antônio Tarcísio da Luz; LAY, Maria Cristina Dias. Privacidade na habitação: atitudes, conexões visuais e funcionais. Ambiente construído. Revista da Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído, v. 3, n. 4, Porto Alegre, out./dez. 2003, p. 21–33.

25
ALEXANDER, Christopher. Op. cit.

26
AGUIAR, Douglas Vieira de. Op. cit.

27
ZEIN, Ruth Verde. A síntese como ponto de partida e não de chegada. In LARA, Fernando; MARQUES, Sonia (org.). Projetar: desafios e conquistas da pesquisa e do ensino de projeto. Rio de Janeiro, EVC, 2003, p. 81–85.

28
BROADBENT, Geoffrey. Diseño arquitectónico: arquitectura y ciencias humanas. Barcelona, Gustavo Gili, 1976, p. 256.

29
MENEZES, Tainá Marçal dos Santos. Tem gente ai! Diversidade tipológica em projeto arquitetônico para os moradores da Vila da Barca (Belém PA). Trabalho final de graduação. Belém, FAU UFPA, 2011.

30
PAIXÃO, Rosineide Trindade da. Projeto arquitetônico para reassentamento de famílias do Cubatão em Icoaraci, Belém — Pará. Trabalho final de graduação. Belém, FAU UFPA, 2016.

31
FELISBINO, Danielli de Araújo. Projeto Arquitetônico de unidade básica de saúde pelo tipo palafita (Barcarena PA). Trabalho final de graduação. Belém, FAU UFPA, 2018.

32
PERDIGÃO, Ana Klaudia de Almeida Viana; BRUNA, Gilda Collet. Op. cit.

33
MENEZES, Tainá Marçal dos Santos. Tem gente ai! Diversidade tipológica em projeto arquitetônico para os moradores da Vila da Barca (Belém PA) (op. cit.).

34
DIOGO, Adriane Augusta Melo. Interpretação urbanística situacional de espaços de moradia autoconstruídos: Vila da Barca morando sobre as águas. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, ProUrb UFRJ, 2002.

35
PAIXÃO, Rosineide Trindade da. Projeto arquitetônico para reassentamento de famílias do Cubatão em Icoaraci, Belém — Pará (op. cit.).

36
FELISBINO, Danielli de Araújo. Op. cit.

37
Idem, ibidem.

38
REIS, Antônio Tarcísio. Repertório, análise e síntese: uma introdução ao projeto arquitetônico (op. cit.).

sobre as autoras

Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão é doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 2006), professora da FAU UFPA e do PPGAU UFPA. Publicou “Considerações sobre o tipo e seu uso em projetos de arquitetura” (Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 114.05, Vitruvius, nov. 2009).

Tainá Marçal dos Santos Menezes é arquiteta e urbanista (UFPA, 2012), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFPA, 2015) e doutoranda (PPGAU UFPA). Publicou “O tipo palafita amazônico: contribuições ao processo de projeto de arquitetura” (Oculum Ensaios, 2015).

Rosineide Trindade da Paixão é arquiteta e urbanista (UFPA, 2016) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFPA, 2019). Publicou “Experimentações projetuais em habitação social na Amazônia, Taboquinha, Pará, Brasil” (Anais do 8º Projetar: la experimentacion proyectual, 2017).

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