Há meio século, Aldemir Martins conquistava a maior láurea de sua carreira, o Prêmio Internacional de Desenho da Bienal de Veneza (Prêmio Presidente del Consiglio dei Ministri), por conjunto de obra. Aldemir tinha então 34 anos de idade. A prêmio quebrava dois recordes: antes dele nenhum sul-americano o havia conquistado e nenhum artista de sua idade, de qualquer país, fora anteriormente distinguido com ele.
O prêmio o surpreendeu, embora Aldemir tivesse consciência de que realizava um desenho singular e poderoso, com fortes vínculos com sua região de origem, o nordeste brasileiro. Esta convicção aumentara em 1951, quando recebeu o Prêmio de Melhor Desenhista Nacional, na I Bienal de São Paulo; o Prêmio “Nadir Figueiredo S.A.”, na II Bienal de São Paulo; e novamente o Prêmio de Melhor Desenhista Nacional, dividido com Carybé, na III Bienal de São Paulo. A surpresa ficou por conta do fato de que ele não sabia que estava concorrendo; fora inscrito por amigos.
Aldemir era um jovem desenhista nascido em Ingazeiras, Vale do Cariri, no Ceará, que, depois de transferir-se com a família para Paracatu, nas proximidades da capital cearense, mudou-se aos 11 anos para Fortaleza, onde ingressou no Colégio Militar. Nele, tornou-se monitor de desenho de sua classe e no Exército, para o qual foi convocado após fazer a Companhia de Quadros, desenhou o mapa aerofotogramétrico da cidade de Fortaleza. Após vencer concurso nas oficinas de material bélico, tornou-se Cabo Pintor. No início dos anos 40, criou, juntamente com Mário Barata, Barbosa Leite, Antonio Bandeira, Carmélio Cruz, Inimá de Paula e outros, o Grupo Artys e a SCAP – Sociedade Cearense de Artistas Plásticos, responsável pela renovação do ambiente artístico cearense. Estes são anos de formação e a primeira exposição da qual participou foi o II Salão de Pintura do Ceará, em 1942. Seu desenho desenvolveu-se na feitura de ilustrações para os jornais “O Unitário”, “Correio do Ceará” e “O Estado” e para livros de intelectuais cearenses. Em 1945, transferiu-se para o Rio de Janeiro e, um ano depois, para São Paulo, onde realizou sua primeira exposição individual no Instituto dos Arquitetos do Brasil. Em 1947, foi convidado a participar da exposição “19 Pintores”, que marcou a emergência de toda uma geração de desenhistas e pintores brasileiros. A partir de então, concorreu aos principais salões de arte do país, que era a via de acesso natural ao mercado de arte e, na década de 50, ocorreu sua consagração como desenhista e pintor.
Aldemir sempre foi um bom contador de histórias. Sobre a premiação na I Bienal relatava que, após o anúncio dos prêmios, Ciccilo Matarazzo convidou para um jantar em seu apartamento. Ele foi mas, por não ter uma gravata, subiu pelo elevador de serviço, entrou pela cozinha e chegando à sala “junto com o primeiro prato”. A história está registrada no livro “As Bienais”, de Leonor Amarante. Nesta Bienal, Aldemir apresentou desenhos que já denotavam uma linguagem gráfica fortemente pessoal e uma temática centrada em temas nacionais, sobretudo nordestinos. Justificou a premiação o desenho “Cangaceiros”, exposto juntamente com uma “Figura” e um “Nu”. Aldemir, que chegou a fazer algumas obras na linha das composições geométricas, sob impacto dos concretistas participantes da I Bienal, voltou a concorrer à II Bienal - que ficou conhecida como a “Bienal da Guernica” por expor a importante tela de Picasso - com 7 desenhos figurativos – Saltador, Galo, Gato I, Gato II, Viúva, Figura e Ecológico – obtendo o Prêmio Nadir Figueiredo S.A.
O Prêmio de Melhor Desenhista na XXVIII Bienal de Veneza representou para Aldemir Martins o reconhecimento internacional para seu trabalho, que ele continuou a realizar com entusiasmo e eficácia. Representou também o reconhecimento pelo excelente desenho brasileiro do período, além de estímulo para muitos artistas brasileiros.
A primeira exposição individual de Aldemir Martins a que estive ligado foi realizada em 1989 na Marusan Galeria de Arte, em São Bernardo do Campo. No prefácio do catálogo, Manabu Mabe deu seu testemunho textual da importância desse prêmio para sua carreira: “Em 1956, li no jornal que ele foi premiado na Bienal de Veneza. Pensei comigo, o Brasil também tem artistas extraordinários. Estimulado pela notícia, eu, jovem de enxada em punho, senti-me ainda mais atraído pelos caminhos da arte”. Particularmente, me confidenciou: “Pensei: se ele venceu, eu também posso vencer!”. Em 1957, quando Mabe mudou-se para São Paulo, o destino os aproximou, tornando-os “irmãos”, segundo declarou.
Voltei a organizar uma exposição individual de Aldemir na Casa das Artes Galeria, em São Paulo, em 1994. Esta mostra nos aproximou ainda mais e durante os preparativos de sua realização ele conheceu o Dr. Januário, marido da marchande Marta Velloso, que tornou-se seu médico. Durante sua realização, apareceu na galeria um senhor que constituiu patrimônio vendendo amendoins em São Paulo. Dizendo que seus rendimentos eram sempre canalizados para a sua família, para seus filhos, afirmou: “Hoje quero comprar um Aldemir para mim. Este sempre foi meu sonho: ter um Aldemir” Comprou dois. Aldemir tem uma enorme empatia com o povo brasileiro, que o admira e respeita. Comecei o texto de apresentação dessa mostra, intitulado “Aldemir Martins, artista brasileiro”, falando que o mundo de Aldemir Martins começa e termina no Brasil, mas especificamente no nordeste brasileiro. E continuei dizendo que ele é o desenhista, o gravador, o ceramista, o designer, o pintor da natureza, da flora e da fauna nordestina, da paisagem humana da vasta região em que ele nasceu e começou, ainda menino, a desenhar.
Mesmo trabalhando em São Paulo, Aldemir nunca abandonou a temática nordestina: a paisagem do agreste, as marinhas, o sol, as frutas, as flores, os animais, a gente. Fez dela uma referencia constante no desenvolvimento de uma linguagem plástica originalíssima, única, que o posiciona entre os mais significativos artistas brasileiros. Aldemir Martins desmontou os elementos da paisagem do nordeste e os montou de novo, transfigurados, forma por forma, cor por cor, textura por textura na construção de uma obra que mistura mar com sertão, aspereza com esperança e tem o sabor do araçá, do caju, da mangaba, do umbu e da pitomba. Uma obra que atinge o universal através do regional.
Quando a Metalivros organizou o volume “Arte e Artistas Plásticos no Brasil 2000”, ele concordou que o texto referente a sua vida e obra fosse este a que me referi. E, quando a BM&F preparava a exposição comemorativa de seus 80 anos de vida, em 2003, ao ser perguntado que critico deveria fazer o prefácio do catálogo, ele respondeu com outra pergunta: “Por quê vocês não convidam o Enock?” Fui procurado e o fiz. Com muita honra, pois foi mais uma oportunidade de falar de um artista maior, sobretudo de um desenhista maior, que recriou cangaceiros, rendeiras, flores, frutas, gatos, peixes, pássaros, cavalos, paisagens nordestinas com um traço incisivo e cores vibrantes. De comentar o universo de um artista que sempre soube o que quis e dominava como poucos o instrumento de seu trabalho. O universo de um mestre artista brasileiro.
Estar agora ao lado de seu filho Pedro na curadoria da exposição que comemora os cinqüenta anos de sua grande conquista, o Prêmio de Melhor Desenhista Internacional da Bienal de Veneza, a mais importante do mundo, é uma honra renovada.
Esta é uma oportunidade ímpar de conhecer extensivamente o magnífico desenho de Aldemir Martins.
notas
Texto curatorial para a exposição Aldemir Martins – 50 anos depois de Veneza. Galeria Arte & Eventos, São Paulo, de 23 de outubro a 18 de novembro de 2007.
sobre o autor
Enock Sacramento é membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte.
Enock Sacramento, São Paulo SP Brasil