O arquiteto Gabriel Guevrékian juntamente com Malet Stevens, André e Paul Vera, influenciou o que na época se chamou de jardim moderno na Europa, em uma curta fase de experimentação do jardim francês entre os anos 1910-30. Embora a maioria destes experimentos tenha ficado mais presa ao aspecto da forma moderna do que propriamente à construção de relações que a constituíssem, o fato de Guevrékian ser considerado um dos bons representantes da transposição do cubismo ao jardim, nos possibilita através de sua obra abordar um instigante tema da historiografia do paisagismo moderno que é a estreita relação que se estabelece entre pintura e jardim. Com esse intuito, este escrito estruturou-se em duas partes, que tratarão, respectivamente, dos dados biográficos de Guevrékian e da relação de seus primeiros jardins com a pintura cubista.
O arquiteto Gabriel Guevrékian nasce em Istambul em 1900 e morre em Antibes em 1970. Teve uma vida nômade o que fez com que sua formação e obra tivessem se desenvolvido em países tão diversos quanto a Turquia, Áustria, França, Irã, Inglaterra e os Estados Unidos.
Filho de pais armênios teve sua educação inicial em Teerã, emigrando para Viena em 1910, onde cursou arquitetura entre 1915 e 1921. De 1921 a 1933 viveu em Paris, cidade na qual trabalhou com o arquiteto belga Robert Mallet-Stevens até 1926, quando constitui escritório próprio. Através de Mallet-Stevens conhece o pintor cubista Robert Delaunay, de quem se torna íntimo amigo e colaborador e de cujas experimentações com o cubismo órfico ou simultaneísmo, recebe uma influência significativa, com incidência direta nos seus jardins.
Em 1928 é nomeado secretário-geral do primeiro congresso que funda os CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) em La Sarraz. Um novo período de sua produção é relativo ao trabalho que realiza de 1933 a 1937 em Teerã, como arquiteto e planejador municipal, desenvolvendo importantes projetos públicos e Villas privadas. Em 1937 muda-se para Londres, onde trabalha com Conell, Ward e Lucas, mas a II Guerra o faz deslocar-se a Paris e posteriormente emigrar para os Estados Unidos onde entre 1949 e 1969, desempenha atividades docentes nas universidades de Illinois, Alabama, California e Pitsburgh.
O reconhecimento público de Gabriel Guevrékian inicia com o seu jardim cubista Jardin d’eau et de lumiére e as "lojas simultaneístas" executadas para Sônia Delaunay para a Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, de 1925 em Paris.
O Jardin d’eau et de lumiére, cujos desenhos foram apresentados em 1924, no Salão de Outono e executados na exposição internacional de 1925 em Paris, foi um jardim para ser contemplado,não pisado. Nele Guevrékian aplica quase que literalmente alguns dos princípios do cubismo órfico ou simultaneísmo. Essa afinidade entre jardim e pintura não constitui nenhuma novidade na historiografia do paisagismo. Basta lembrar dos mixed borders de Gertrude Jekyll, ou da representação de vistas (landskip) pintadas em determinado período do jardim paisagista inglês. Guevrékian, no entanto, tratou de trabalhar a superfície do jardim, como se fosse uma tatuagem, no intuito de produzir um jardim “à maneira de” um quadro cubista, principalmente influenciado por Roberto Delaunay.
Roberto Delaunay interessava-se principalmente pelas possibilidades da cor. Para ele, a cor era tudo, tema e forma, e através do contraste de cores era possível criar a idéia de movimento, estabelecendo certos ritmos sem necessitar o recurso da geometria além de lhe permitir produzir arte prescindindo de uma realidade imediata. Ele "nunca se sentiu realmente cubista e Apollinaire teve que inventar um novo qualificativo para sua arte a fim de podê-lo incluir entre os novos pintores cubistas, porém distanciado daqueles” (1). Apollinaire acabava de escrever Le Bestiaire d'Orphée e considerou que o termo orfismo era sinônimo de lirismo o que muito bem podia aplicar-se a esta pintura mais próxima da pintura pura que o resto dos cubistas" (2). O cubismo órfico foi segundo Apollinaire, “a arte de pintar composições novas com elementos não tomados da realidade visual, porém inteiramente criados pelo artista e dotados por ele de uma poderosa realidade” (3).
Essa condição abstrata do cubismo foi o ponto de partida das vanguardas pictóricas construtivas que romperam com a tradição acadêmica nas primeiras décadas do século XX. O quadro que até o cubismo podia ser entendido como documento ou testemunho de um fato determinado – desde a explicação de uma passagem da Bíblia até a fixação de uma paisagem, com determinada atmosfera, passa a ser entendido como um elemento fabricado, construído, autônomo, que se diferencia dos outros objetos da vida cotidiana pois carece de utilidade, ou porque na realidade sua utilidade é de outra ordem, é o próprio prazer da pintura, que já não tenta refletir o mundo externo, mas recriar seu próprio mundo. Nesse sentido, uma das propostas cubistas que mais repercussão teve na formação da arquitetura e paisagismo modernos foi descobrir que entre diferentes formas planas ou geométricas era possível estabelecer relações que, sem tratar-se de simetrias e subordinações, mantivessem a unidade do conjunto criando entre elas um equilíbrio dinâmico.
Em um momento em que o jardim buscava prescindir dos estilos e tratava de organizar leis próprias para "modernizar-se" essa idéia cubista, de quadro-objeto que dispõe as coisas em ordem, sem um modelo/estilo pré-determinado surge como uma possível saída para Guevrékian e tantos outros artistas, paisagistas e arquitetos. Daí a transcender o plano para experimentar o espaço tridimensional do jardim foi só mais um passo.
O primeiro experimento significativo de Guevrékian neste sentido, foi o jardim Jardin d’eau et de lumiére, que se constitui sobre uma base triangular subdividida em um tecido de módulos triangulares menores que ora conformam canteiros, espelho d’água, ou pequenas cerâmicas que revestem dois muros que funcionam como fundo para o jardim.
O fundo do espelho d’água é do próprio Delaunay, que pinta formas circulares e triangulares com uma gama de cores dinâmicas, reforçando a expressão de uma natureza abstrata distanciada de qualquer visão da realidade. Essas cores reaparecem nos canteiros que contornam o espelho d’água. Deste, sai uma fonte com um jato d’água que se refletia sobre um globo giratório revestido de espelhos coloridos.
Embora a abertura de um dos lados do triângulo induza a uma visão frontal do jardim, os efeitos dinâmicos produzidos pelas cores, pela água e o movimento do globo, ajudam a rompê-la, criando diferentes níveis de visão simultâneos. Como no cubismo, tratava-se de fazer que o observador sentisse que se movimentava embora permanecesse parado.
Este desenvolvimento de cores, formas geométricas e de efeitos dinâmicos que conferiam tridimensionalidade à bidimensionalidade, acabou influenciando vários outros jardins que também passaram a propor formas geométricas e coloridas na sua construção. O jardim Jardin d’eau et de lumiére também está na origem dos experimentos que se desenvolvem e aperfeiçoam no jardim de Guevrékian para a Villa Noailles, em Hyéres, França.
Este jardim, concebido em 1926, e executado dois anos depois, foi considerado um marco das origens do que se convencionou chamar de jardim moderno francês. O programa inicial de uma pequena "residência no Midi francês", evoluiu para um complexo cultural e esportivo privado com 1800 m² de superfície habitável. O seu proprietário Charles de Noailles, um mecenas da arte moderna, solicitou o trabalho de vários artistas do círculo de Robert Malet Stevens, arquiteto que projetara sua Villa, para desenvolver uma espécie de "obra de arte total"; entre eles, Pierre Chareau e Eillen Gray como decoradores; Francis Jourdain e Louis Barille (maître-vitreurs), Theo Van Doesburg (pintor), Jacques Lipchitz (escultor), Georges Djo-Bourgeois e Gabriel Guevrékian (arquitetos).
O encargo de Guevrékian para esta Villa foi o de desenhar uma piscina e um dos jardins sob terraço que acompanhava o terreno, situado na encosta da montanha que baixava em direção à cidade de Hyéres. Neste jardim Guevrékian repete o uso da base triangular, subdividida por canteiros de formas geométricas cobertos de flores coloridas, a visão frontal, os muros laterais, a disposição de uma escultura rotativa (de Lipchitz) no centro da cena.
Esta obra vai marcar as pautas do que se convencionou chamar de jardim moderno francês (4). Digo ao que se convencionou chamar de moderno, pois uma observação mais atenta dos jardins aqui abordados nos leva a perceber que eles são ainda inequivocamente miméticos e simétricos, mais presos à tentativa de criar uma aparência moderna que propriamente em estabelecer as relações que constituíssem a forma moderna, Neste sentido, o jardim moderno enunciado por Guevrékian e por outros paisagistas contemporâneos a ele, terá ainda que esperar vários anos para ser concebido com critérios de legalidade própria (5).
notas
1
ROVIRA, Teresa. Problemas de forma, Schoemberg y Le Corbusier. Edicions UPC, Barcelona, 1999.
2
Idem.
3
MICHELI, Mário. Las vanguardas artísticas del siglo XX. Alianza Forma, Madrid, 1996, p. 366.
4
A Villa Noailles foi abandonada pelos seus proprietários após a segunda guerra mundial, e adquirida em 1973, pela cidade de Hyéres após a morte de Marie-Laure de Noailles. Recebeu proteção parcial em 1975 e total em 1987 e sua arquitetura e jardins foram respectivamente restaurados em 1990 e 1991 A sua administração atual está a cargo da Prefeitura de Hyéres.
5
Outras fontes consultadas: IMBERT, Dorothée. The ModernistGarden in France. Yale University Press, New Haven e Londres, 1993; TREIB, Marc. Modern Landscape Architecture. A Critical Review. The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1993; VITOU, Elisabeth. Gabriel Guevrékian, une autre architecture moderne. Connivences, Paris, 1987 <www.esprit-de-france.com>.
sobre o autor
Ana Rosa de Oliveira, pesquisadora e paisagista do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Ana Rosa de Oliveira, Rio de Janeiro RJ Brasil